A HERANÇA

A HERANÇA

O menino nasceu em família pobre, de prole numerosa e, desde cedo, destacou-se dos demais pela argúcia, inteligência e perspicácia. A precocidade da desenvoltura chamou a atenção dos professores que instigaram a família a incentivar o menino nos estudos, colocando os recursos disponíveis da escola para que ele pudesse desenvolver-se e aproveitar melhor a sua capacidade cognitiva.

Pertinaz e objetivo, dizia querer ser um homem de negócios. Não se sabe o porquê dessa preferência, tendo em vista se tratar de indivíduo de origem humilde. Era uma obstinação, talvez pelo fato de ver, na mídia televisiva e em revistas que folheava, a classe de empresários, sempre bem vestidos e engravatados, que o fascinava. Leitor compulsivo, concluiu o primário e o ginasial com louvor. Os colegas apelidaram-no de CDF (sigla empregada para os estudantes muito dedicados).

Como sói acontecer com os nordestinos, emigrou para São Paulo, com a finalidade de dar prosseguimento aos estudos e obter trabalho que lhe proporcionasse essa condição. Empregado, logo foi notado pela direção da empresa que o promoveu com destaque de chefe.

Formou-se em economia e, em pouco tempo, já fazia parte da diretoria, uma carreira vertiginosa de muito sucesso. O status social do cargo exigia-lhe contatos com renomados empresários e frequência em reuniões sociais de negócios que incluíam jantares, almoços e coquetéis, oportunidades que requeriam habilidade e competência para entabular a realização dos contratos comerciais, destacando-se, nesse particular, com êxitos pelo sucesso alcançado.

Parte de sua ambição e objetivo estava concretizada. Faltava-lhe a realização do sonho amoroso, desposar uma mulher dotada de beleza encantadora, de respeito e recato e constituir uma família conforme sua idealização. Foi nos encontros sociais de negócios que conheceu uma moça que preencheu as qualidades idealizadas e por quem se apaixonou. Tratava-se de filha única que tinha um irmão adotivo, filhos de um empresário aposentado e bem-sucedido. Casaram-se e tiveram filhos que foram educados nos moldes convencionais da classe média alta.

Viviam em ambiente exclusivamente familiar. A mulher a cuidar dos filhos, da administração da casa e da aparência do marido. O executivo era homem de pouco sair. Vivia envolvido com o mundo dos negócios, analisando e pesquisando revistas, livros e jornais especializados, os quais o deixavam bem informado, o que o distinguia dos colegas de profissão.

Com o decorrer do tempo, a mulher passou a reclamar a sua presença, alegando que estava solitária e exigia dele tempo para a vida social. Precisavam sair: ir a cinema, teatro, festas, visitar amigos, compromissos e badalações que o marido detestava e que a esposa arguia ser essencial para o deleite familiar, porém encontrava, sempre, a resistência do cônjuge.

Uma prima da esposa que morava em Fortaleza/CE e se desquitara havia pouco tempo, recebia vantajosa pensão. Recém-chegada, passou a fazer constantes visitas à parenta, oportunidade em que alardeava as vantagens da vida de desquitada: “Estou vivendo, agora, a plena liberdade da minha vida, cuja mocidade foi sacrificada pelo casamento com um homem egoísta, ambicioso, individualista e ciumento que colocava o dinheiro acima de qualquer prazer e virtude, um biltre. Estou vivendo como um pássaro, saio e chego a hora que bem entendo, não devo explicações a ninguém. Não há mais domínio, controle e manipulação da minha vida, estou liberta. Vou a barzinhos, festas, me relaciono com quem desejo, sem compromissos formais e meu ex que se vire para pagar-me a pensão em dia, caso contrário...”. Às gargalhadas, ar zombeteiro, expressava dirigindo-se à prima “caaadeeeia, minha filha!”. Pronunciava letra por letra a palavra cadeia com a satisfação e a alegria de quem adquirira a manumissão.

O marido reclamou a esposa, recriminando as atitudes e gestos da sua prima, acusando-a de despudorada e leviana pelo comportamento desrespeitoso e pediu que ela procurasse evitar a fulana. Criou-se, dessa forma, entre o casal, um desentendimento, pois a mulher foi peremptória e enérgica: “Em minha casa, recebo meus parentes e amigos com ou sem o seu consentimento”. E acrescentou mordaz: “Nas suas reuniões, das quais nunca participo, não meto o bedelho. Portanto, deixe-me em paz com os meus”.

Dias se passaram o pai da mulher faleceu, deixando uma fortuna considerável em imóveis e ações. A mulher, influenciada pela prima, almejava também a sua “liberdade” na expectativa de pôr fim à rotina enfadonha que levava. Um dia, à noite, cheia de considerações premeditadas, revelou ao marido a sua decisão de separar-se, alegando incompatibilidade, pois sentia-se enclausurada e sem vida própria, dessa forma, estava resolvida a separar-se.

Custou ao esposo acreditar no que ouvira. Fez, então, uma simulação da separação, preparou um documento relacionando os bens do casal a serem divididos e pediu para a esposa e os filhos assinarem. Para sua surpresa e estupefação, todos assinaram, já estavam acumpliciados. O casamento de muitos anos foi desfeito, o amor aviltado e o sentimento de unidade da família destruído em nome da ambição pela herança recebida e sugestionada pela fascinação de levar uma vida sem os compromissos do matrimônio.

Tal atitude chocou profundamente o marido que, em suas lucubrações, questionava o caráter e a personalidade da pessoa que com ele compartilhara uma vida de afinidades afetivas ao lado dos filhos, sem que pudesse entender este lado obscuro daquele ser humano: a hipocrisia, a falsidade e a sinceridade dissimulada por tantos anos que não o deixou perceber a profundidade da farsa. Com o amor-próprio ferido, conjecturava: quando nos momentos das intimidades da alcova, fazia juras de amor..., era só da boca para fora, porque no coração não abrigava esse sentimento. Fervilhavam, em seu pensamento, inúmeros questionamentos...

O tempo passou e a mulher admitiu que a “liberdade” desejada foi apenas uma ilusão, um devaneio, que a realidade era completamente diferente da que a prima alardeava. Na vulgaridade social desregrada, sua honra pervertera-se e, humilhada, sentiu-se explorada como objeto de uso sórdido pela condição financeira que ostentava. Conscientizou-se de que a experiência afetiva de família, enfim, a convivência do lar era o que deveria prevalecer.

Esse sentimento falou mais alto e ela procurou o ex-marido para a reconciliação. Este, ainda magoado, argumentou que não estava disposto a comprá-la, pois o amor e a felicidade não têm preço. Continuou o desabafo dizendo que a família é o alicerce e o pilar da sociedade sadia, comprometimento que ela não fora capaz de compreender e assumir como princípios básicos da vida. Foi volúvel e irresponsável, além do que, “gato escaldado tem medo de água fria” e que, como mulher, ela havia-se degenerado pela depravação do procedimento, portanto não era mais digna da sua estima e consideração.

Que os leitores façam as suas reflexões, análises e críticas sobre até que ponto a avareza e as fantasias produzidas pela imaginação de mentes delirantes das más companhias podem influenciar a índole e comprometer o comportamento das pessoas, provocando danos irreparáveis à família, dilacerando relacionamentos afetivos consolidados, destruindo personalidades, conspurcando a moral e os bons costumes.

Há de se considerar que a mente humana é insondável na sua dimensão humanista, difícil de ser entendida, dada a mutação de procedimentos idiossincráticos de cada indivíduo, conforme o seu livre arbítrio e entendimento.

“Neste mundo, nenhuma ambição se realiza plenamente”. (Vitor Hugo)

“Não vos enganeis: as más companhias corrompem o caráter”. (I Coríntios 15:33)

Antonio Novais Torres

antorres@terra.com.br

Brumado, em 23/06/2003.

Antonio Novais Torres
Enviado por Antonio Novais Torres em 22/11/2014
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