O Jogo do Contente

Conheci a Verinha em 1956. A jovem atriz interpretava a Polyana num seriado infantil da antiga TV Tupi. Como todo ator que recebe a influência da personagem que interpreta, além de ser parecida, ela era contagiada pela alegria e pelo otimismo de Polyana. A postura da menina frente a algum fato adverso conseguia afastar a tristeza, a depressão e o aborrecimento, desviando o olhar entristecido para outro ângulo mais alentador, para algo de bom que compensasse aquilo de ruim que estivesse acontecendo. Ela fazia o jogo do contente. Apesar do mau momento, podia recordar-se de um outro fato que houvesse acontecido. Dessa maneira, conseguia manter a alegria. As crianças têm uma vocação natural para fazer o jogo do contente. É muito comum vê-las pedindo esmola numa esquina, numa situação de precariedade absoluta, alegres, sem sofrimento. Isto chega a ser um grande exemplo para os adultos.

A imagem da Verinha, a atriz, com toda aquela alegria e otimismo, acompanhou-me durante muitos anos porque a conheci e tive a oportunidade de viver com ela o jogo do contente nos ensaios e apresentações do teatro infantil. Muitas vezes, já adulto, fiz o jogo, afastando algum aborrecimento que todos acabamos por passar.

Depois de passados muitos anos daqueles dourados da década de 50, quando conhecêramos aquele teatro, aquela televisão instrutiva que hoje não existe mais, fiquei sabendo que a Verinha havia falecido, tirado a própria vida. Mesmo sem ter conhecido os detalhes que envolveram o fato, não pude deixar de refletir sobre o paradoxo de Polyana pois a Verinha, na vida real, não soubera aproveitar a instrução da personagem que interpretara e que poderia ter evitado o desenlace triste para o qual caminhou. Refleti também sobre a postura equivocada que temos ao não ser aquilo que pensamos ou que chegamos a ensinar aos nossos filhos.

De qualquer forma, a lição de Polyana é admirável por ser intemporal, universal; por dizer que por mais duros, tristes ou deprimentes que sejam os momentos que estejamos vivendo, sempre haverá algo em nossa recordação, em nosso coração, que se não puder compensar essa tristeza, pelo menos haverá de amenizá-la, porque se existe a vida para o ser humano, a sintonia entre a inteligência e a sensibilidade pode operar verdadeiros milagres em sua alma.

O segredo consiste no domínio que se possa ter sobre essa inteligência e essa sensibilidade. Esse domínio representa o verdadeiro conhecimento sobre a própria pessoa, o conhecimento de si mesmo, tão estranho e tão distante das preocupações do homem moderno na sua posição passiva de espectador distraído do drama que o envolve e a tantos outros seres humanos.

Extraído do livro Guardados Que Vivem

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Nagib Anderáos Neto
Enviado por Nagib Anderáos Neto em 16/09/2005
Código do texto: T50953