Debretmania e os cachorros de Santiago

Debretmania e os cachorros de Santiago







Um grande amigo tirou 11 dias de férias e foi pro Chile. Ele, Deus e sua mocidade. Tomou uma garrafa de vinho com uma alemã, no aeroporto. Ela partia, ele chegava. Achou Santiago uma formosura civilizada. Teceu indagações sobre si mesmo, sua sua vida e sua pátria. Tudo no mesmo pacote. Meu amigo é jovem, o caminho à frente, uma maçã a ser fatiada.

Jean-Baptiste Debret nasceu em 1768, (Paris, França) e desencarnou no mesmo local em 1848. Até hoje é pouco conhecido na em sua Terra Natal. Hoje fica difícil explicar por que. No séc. XIX o principal motivo eram os grandes nomes da pintura na época, em franca evidência.

Em todo o caso, "toda" (entre aspas, já que existe uma imprecisão nisso), a obra dele sai do Brasil em torno de 1830 mas retorna, 150 anos depois, de modo mágico, digamos assim, através de compra e venda no mercado de arte. Esse retorno ao Brasil tem início na dec. de 30 (séc. XX). Coleções, acervos, tiragens limitadas de um tipo de aquarela ou de outro, pastas escondidas em sótãos, o que se pensar foi ocorrendo gradativamente e retornando ao Brasil. São várias ações e descobertas entre o período 1930 - 2005. Debret praticamente pintou o Brasil, ou se preferir, "a contribuição de Debret à iconografia brasileira o singulariza na história da arte".

Meu amigo, um amigo dir-se-ia visceral, passou dois dias em Santiago e tomou, pela ordem, um avião e um carro até São Pedro de Atacama. Lá ficou no que o modismo dos tempos alcunhou Hostel, espécie de albergue 2.0. Na primeira noite conheceu duas norueguesas. Na segunda cinco argentinas, dois pares de italianos e franceses, uma alemã chamada Francisca e dois paulistanos contemporâneos. Ele diz que dos cômodos, fosse dia ou fosse noite, variados panoramas desfilavam a seu dispor.

Jean-Baptiste brilhou nesses trópicos entre 1817-1831, quando professor da Academia e pintor da Corte. Alguns anos depois seu sucesso declina e mais alguns ganha uma pá de cal, pois a fotografia assume seu posto no mundo da imagem.

Foi necessário um novo século, o XX, quando estudiosos como Afonso Taunay, Oliveira Lima e o barão do Rio Branco reunissem passo a passo a reputação do artista, sempre circunscrita a diligentes conhecedores e colecionadores. Some-se a isso o fator Castro Maya, cujo efeito permanece sem concorrentes, estudado e divulgado. Diga-se de passagem, esse personagem criou a Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil, 1943, foi primeiro presidente e um dos fundadores do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1948, depois fundou a Sociedade Os Amigos da Gravura, 1952, então orquestrou a comissão organizadora do IV Centenário da Cidade do Rio de Janeiro 1964/1965, teve desempenho relevante na Câmara do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Conselho Federal de Cultura 1967, publicou, de sua autoria, livro sobre a Floresta da Tijuca, no mesmo ano, e bateu asas para o outro mundo aos 74 anos, em 1968, deixando ao povo brasileiro a Fundação Raymundo Ottoni de Castro Maya com 22 mil peças adquiridas e colecionadas em toda sua vida, e finalmente expostas no Museu do Açude em 1964 e no Museu da Chácara do Céu em 1972.

Meu amigo, que pode ser rotulado como amigo consanguíneo, embora nem sempre a aglutinação dos fatores consubstancia verdadeira amizade, conta ter tirado 330 fotografias, de tudo que se possa imaginar, passando pelos ícones locais e a funda impressão que isso causou na sua existência, fotos que um dia ele vai me mostrar, da Igreja de San Pedro de Atacama, do Vulcão Licancabur, do por do sol, em tantas poses que o próprio astro irá se indagar se aquilo foi trucagem tecnológica ou o fruto de um coração deslizando na incrível aventura de fazer amigos e conhecer paisagens, sendo que ambos não raro se mesclam, e meu amigo fala com carinho da sinceridade vivenciada com a alemã Francisca e com picardia acerca do namorico com uma argentina sem nome.

Ao me relatar a viagem, era possível senti-la fato concreto através de cada palavra, como se cada uma fosse uma pedra de cor pastel, lírica, digna de um airoso mosaico.

A amizade é uma dádiva que quer ser compartilhada, mas sem pódio, trata-se de uma transferência limpa que cria uma ponte entre os seres e nessa ponte cruzam as pequenas impressões sobre tudo e a afeição que a tudo cumula no ato de transferir.

Ao longo do séc. XX outros protagonistas estudiosos ajudaram a erigir a imagem de Debret. De 1950 a 1970 Mario Barata, Afonso Arinos de Mello Franco, Mario Pedrosa, Lúcia Olinto e outros contribuíram através da pesquisa e da escrita sobre a obra do parisiense.

É o caso de se perguntar se as coisas desse gênero acontecem para as pessoas aleatoriamente ou elas permitem que aconteçam, ou, se faz parte da estrada que pavimentaram, antes mesmo de chegar aqui. Trânsfugas em geral tecem quimeras tais como eu limitado = eu temeroso, linear, com necessidade de se identificar com o passado e tendência a se torturar com o que acontecerá no futuro. Daí as especulações... Futuro = total desastre. Ou...Futuro = promissor, lucrativo, fácil. Por fim, Futuro = Sem respostas, muitas opções. Nessa última premissa respira a alma do trânsfuga.

O escopo da obra de Debret relativa ao nosso país hoje atinge a marca de 820 desenhos e aquarelas e 15 quadros à óleo. Sem sombra de dúvida trata-se do membro mais importante e célebre da casta de artistas viajantes.

Meu amigo retorna a Santiago imbuído do sal de Atacama, dos resíduos da chuva orográfica, das imagens do passeio de bicicleta que bem poderiam estar sob os acordes de uma canção que talvez ele nem conheça, que diz que a coisa mais certa de todas as coisas não vale um caminho sob o sol, deve ter se lembrado também, avento eu, do genuíno elo com a Francisca, mulher dotada da estética mais cativante que existe - não parece bonita num primeiro olhar, torna-se dupla e eternamente bela no segundo. Então conta que perambulou pela cidade, num bairro muito bonito cujo nome não se recorda, teceu comparações entre os povos, indagou quem é que no nosso cenário tem carisma benigno o suficiente para que alguém diga: seu semblante seria capaz de parar um relógio. E quando é que os Inimigos irreconciliáveis de qualquer evolução no plano político vão sair de cena? Perdido em pensamentos, admirando o asseio das ruas, meu amigo reparou que em Santiago existem cachorros sem dono, como São Paulo um dia os teve, cães altaneiros, cuidados, circulam pra e cima e pra baixo, livres, e sua presença acaba tornando a cidade mais humana.

Me detive nessa frase e me lembrei de todo um contexto, afinal, os devaneios do ouvinte ganham vida graças à percepção dos viajantes.

Raymundo Ottoni de Castro Maya, (nascido em Paris em 1894) entretanto brasileiro, homem multimídia a frente de seu tempo e dono da Cia. Carioca Industrial - daria pano pra manga as suas ações em prol da cultura, do esporte e da ecologia, isso sem adentrarmos no segmento empreendendorismo, propriamente dito - mas aqui ele se torna um protagonista poderoso na Debretmania, tendo adquirido e trazido para o Brasil um acervo colossal de aquarelas e esboços recém descobertos no final dos anos 30. A chegada desse material na pátria amada automaticamente multiplicou-se em diversas reproduções: livros, jornais, folhinhas, material escolar, brochuras de história, etc. Em todas essas mídias a pincelada de Debret tornou-se presente. Eis enfim a Debretmania, mostrando que nas mentes e corações da época havia um sequioso ímpeto de saber sobre a identidade nacional, ou memória que seja, ou antes e acima de tudo: que raio de trem é esse chamado Brasil?


(Imagem: Jean-Baptiste Debret)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 15/01/2015
Reeditado em 21/08/2020
Código do texto: T5102147
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