O historiador entre testemunhos e silêncios


A mítica figura de Tirésias, personagem recorrente em inúmeros episódios da mitologia greco-romana, bem serviria como uma representação às avessas do ofício do historiador, pois, se aquele tinha o dom de vislumbrar o futuro, cabe a este desvendar o passado. Vítima do seu próprio testemunho perante uma disputa entre os deuses, teve como punição a perda da visão, e como recompensa o dom da advinhação.
Se o advinho sobreviveu por sete gerações humanas, o historiador percorre décadas, séculos, milênios, em busca das reminiscências reveladoras de antanho. Em comum um fato: são ambos sábios e cegos, tateando a verdade, em direções opostas. Assim como o futuro, que ainda não existe, e do qual o vidente só pode perceber tênues névoas que evolam na penumbra, o historiador tateia em busca de um passado que também já não existe, ao buscar, selecionar e encaixar as peças de um gigantesco puzzle, que ele não sabe com certeza se completará.

Se há momentos em que abundam testemunhos – nem todos convergentes – na maioria das vezes proliferam silêncios, numa total ausência de respostas aos seus questionamentos. Diferentemente do conhecimento científico, o conhecimento histórico vai se construindo não a partir da repetição metódica de um experimento, mas da confrontação, comparação e consagração dos fatos, que nunca se repetem da mesma forma, em um mesmo lugar. Cada um deles, como cada ser humano, é único e irrepetível. Mesmo a celebração através dos ritos, que fazem da comemoração uma rememoração, com o passar dos anos se tinge com novos matizes, agregando outras cores ao cenário original: aconteceram, mesmo, tantas estações na Via Crucis? Tiradentes era assim tão parecido com Jesus Cristo? E o Grito do Ipiranga, foi tão majestoso quanto mostra a pintura?
“Nossa memória é um instrumento frágil e imperfeito. É um espelho manchado por placas opacas”, afirma Marc Bloch (BLOCH, 1995). Se a História é, por natureza, lacunar, conforme Paul Veyne nos faz ver, o historiador se transforma em um misto de detetive e jurista em busca de evidências, de provas, de documentos que validem a sua “teoria”, utilizando o mesmo senso crítico daqueles especialistas, pois antes de acreditar é preciso colocar em dúvida o testemunho, nem sempre verídico ou confiável. Tanto as fontes, quanto os fatos podem ser enganosos. É necessária uma habilidade que transcende a Ciência e permeia a Arte, como diz Bloch: “A arte de discernir, nas narrativas, o verdadeiro, o falso e o verossímil chama-se crítica histórica” (BLOCH, op. cit.). Também Reinhart Koselleck (KOSELLECK, 2014) falará sobre esta Arte, em Os Tempos da Historiografia:
 
Com isso, esboçamos duas formas de historiografia que permanecem vinculadas ao mundo da experiência dos vivos: a composição artística de relatos verificados de testemunhas oculares e de ouvir dizer, e a simples documentação de tudo o que parecia ser importante para uma comunidade no decurso dos dias e dos anos.
 
Arte ainda evocada por Luís de Camões – misto de poeta, historiador e ficcionista - que na sua narrativa histórica sobre a saga lusitana, unindo verdade e fantasia, alerta: “Cantando espalharei por toda parte / Se a tanto me ajudar o engenho e a arte” (grifos nossos).

Assim, o conhecimento histórico é cercado de dificuldades, um percurso desafiador, cheio de obstáculos, que cabe ao historiador superar: se os testemunhos são vários, cabe-lhe pesá-los, e não, contá-los. Não pode ele tomar como premissa que muitas mentiras formam uma verdade, nem mesmo quando é muitas vezes repetida. “Pode-se enganar a todos por algum tempo; pode-se enganar alguns por todo o tempo; mas não se pode enganar a todos todo o tempo”, como dizia Abraham Lincoln. E é, por sua vez, ao historiador que cabe este papel de ser o único a não acreditar no falso consenso, pois “é pela comparação dos testemunhos entre si que se chega a desvelar a verdade” (BLOCH, op. cit.).

Mitos são experiências atemporais. Já “a historiografia aborda um passado racionalmente verificável” (KOSELLECK, op.cit.). Sabemos que Tirésias é uma representação arquetípica, como tantas outras mitológicas. E é como tal que o resgatamos nesta representação simbólica do papel do historiador, ao mesmo tempo tão sábio e tão cego diante das brumas do passado. “Pode-se replicar que os mitos são capazes de mover montanhas” (DARNTON, 1995), e é justamente isto o que buscamos no conhecimento histórico: mover as montanhas do ignorado, do desconhecido, do oculto – proposital ou acidentalmente – para perceber a realidade e tecer essa tessitura do passado, como um “artesão das temporalidades” (ALBUQUERQUE JR., 2009) pois, continua o professor Durval Muniz em seu célebre texto: 
 
...é o historiador em sua solidão que vai costurar todos aqueles fragmentos, fazê-los aparecer como se fizessem parte de um mesmo tecido... e legitimar a perícia de quem teceu a trama, pois quanto mais esta não deixa aparecer em sua frente os nós... mais hábil em seu ofício será considerado o historiador que a tramou.
 
É neste amalgamar de verdade e mito, ciência e arte, suposições e constatações, que transita o historiador, vasculhando os “achados e perdidos” do Tempo, construindo o que sabemos e passamos a validar como a nossa História.
 
Goulart Gomes 


 
BIBLIOGRAFIA. 
 
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. “O Tecelão dos Tempos: o historiador como artesão das temporalidades”. Revista Eletrônica Boletim do Tempo, Ano 4, no. 19, Rio, 2009.
BLOCH, Marc. “Crítica Histórica e Crítica do Testemunho”. Tradução (não publicada) de Estevão c. de Rezende Martins. Texto gentilmente cedido pelo tradutor. Amiens, 1914.
CAMÕES, Luís de. “Os Lusíadas”, Canto I, 1-2.
DARNTON, Robert. “O beijo de Lamourette: Mídia, cultura e revolução”. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
KOSELLECK, Reinhart. “Os tempos da historiografia”. In: Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto, PUC-Rio, 2014.
VEYNE, Paul. “Tudo é histórico, logo, a História não existe”. In: Como se escreve a História e Foucault revoluciona a história. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982.