ÉTICA TEOLÓGICA NA REFLEXÃO BIOÉTICA

Muito já foi dito acerca do caráter interdisciplinar e multidisciplinar da bioética como base de sua epistemologia, fundamento e força propulsora de sustentação. Ao abordar a relação monodisciplinar na interdisciplinaridade, dá-se conta dos desafios que constituem o agir comunicativo. O desafio do agir comunicativo interdisciplinar teve maior ênfase a partir de sua premente necessidade, que se verificou desde meados do século XX, como decorrência dos avanços científicos, os quais, no início do século atual, ainda seguem com intensidade o seu curso. Para Hossne (2010), ocorreram, nesse breve espaço de tempo, cinco revoluções científicas, mescladas com não menos acaloradas discussões éticas. Segundo esse autor, está em andamento, ainda que de forma não muito clara, uma sexta revolução, exigindo dos diversos saberes e da sociedade um discernimento e uma tomada de decisão que levem em consideração a liberdade, mas também a responsabilidade.

Acrescem-se a essas revoluções científicas alguns movimentos culturais e políticos de caráter nacional e internacional, que fizeram eclodir a consciência dos direitos humanos, da assimetria nas relações de poder, das inequidades sociais, juntamente com a consciência do atemorizador aquecimento global. O contexto atual é cada vez mais complexo, secularizado e globalizado pelo mercado e pelos meios de comunicação. Um número cada vez maior de pensadores chama-no de pós-moderno, ou, no âmbito mais valorativo, Zigmunt Baumann denomina-o modernidade líquida, definida pela ausência de um sistema único e caracterizada pela pluralidade cultural e religiosa.

Diante da eclosão de tantos desafios, surgiu também a percepção de que a realidade se tornou por demais complexa para ser pensada nos limites de um único viés. É nesse contexto que surge a reflexão bioética, da sensibilidade de Van Rensselaer Potter, com o clássico Bioethics: bridge to the future (1971), e de André Hellegers, com o Kennedy Institute of Ethics, na Universidade de Georgetown, propondo uma nova abordagem para conceber o conhecimento, com uma nova ética a ser chamada de ética interdisciplinar e definindo interdisciplinaridade de uma maneira especial, para incluir tanto a ciência como as humanidades.

A abordagem pluridisciplinar, inevitavelmente, situa-se numa tensão entre dois polos: por um lado, a presença plural de diferentes saberes em sociedades abertas e multiculturais ou multirreligiosas exige de cada participante do diálogo modelos argumentativos plausíveis e categorias compreensíveis por todos; por outro lado, a participação de cada interlocutor não pode prescindir dos seus elementos característicos e deixar de contribuir com a especificidade da sua identidade.

Os desafios citados não deixam de lado a ética teológica, já que a participação do discurso teológico numa discussão pluridisciplinar levanta algumas questões que não se podem ignorar. Também na Ética teológica não é possível uma abordagem sistemática dos fenômenos humanos sem o contributo das outras ciências humanas. Porém, ela tem recursos que não são necessariamente compartilhados por todos os interlocutores.

Para enfrentar esse desafio, a ética teológica deve preencher duas condições necessárias para uma presença credível na discussão bioética. A primeira condição é conseguir uma exposição compreensível e plausível das suas posições, acessível com os instrumentos racionais comuns à generalidade dos interlocutores. Essa tarefa consiste em colocar à disposição da comunidade que dialoga elementos da reflexão teológica que possam ser integrados numa estrutura argumentativa comum. A segunda condição é mostrar em que consiste a especificidade do seu contributo no contexto do discurso ético global. No debate interdisciplinar, não basta que cada participante proponha uma perspectiva genérica do tema, mas espera-se que cada interveniente dê um contributo que possa enriquecer a discussão, com os elementos específicos de cada um. Desse modo, tanto uma ética religiosa fundamentalista como uma ética religiosa completamente desligada dos recursos teológicos não preenchem essas duas condições apresentadas.

Algumas dificuldades para o diálogo

No diálogo multidisciplinar da teologia com as outras ciências, algumas dificuldades interpõem-se. Quais seriam essas dificuldades? Diria que a teologia tem recursos que não são necessariamente compartilhados por todos os interlocutores. Isso causa resistência por parte de alguns pensadores no âmbito científico, por não concordarem com os métodos epistemológicos vindos da teologia e por não acreditarem que ela possa oferecer algum contributo relevante para o pensamento sistemático experimental.

As dificuldades vêm dos preconceitos históricos de ambas – a teologia e cada uma das ciências –, e dos quais elas precisam se libertar para se compreenderem mutuamente e para ampliarem os horizontes da perspectiva de um novo contexto e de uma nova realidade. Deve-se considerar, no entender de Anjos (2003), que “o discurso religioso veiculado pela teologia na bioética é recebido de forma variável, entre a simpatia e a antipatia, a indiferença, a desconfiança, a integração e a total separação”. Mas, continua o autor, “cresce a consciência de que as realidades são por demais complexas para serem compreendidas por uma só forma de saber isoladamente”. Por isso, o diálogo será possível e proveitoso se a teologia e as ciências se libertarem de alguns preconceitos.

As dificuldades na relação entre a teologia e a bioética nem sempre são claras, o que dificulta examiná-las detalhadamente, mas, tomando-se ciência do lugar de suas contribuições, é possível estabelecer entre elas um intercâmbio mais respeitoso, com propostas comuns. Deve-se ter consciência da identidade e da diferença de abordagens da realidade pelas ciências e pela teologia. É a dialética da identidade e da diferença, sem a qual qualquer diálogo é impossível. Um discurso intransigente de ambas as partes impõe limites para um diálogo e uma ajuda mútua. O fenômeno da secularização nas sociedades atuais se evidencia-se como valor e é concebido como uma espécie de “ateísmo metodológico”, o qual pretende reforçar a laicidade do discurso científico, do poder público e de outros aspectos da atualidade, como se a todo o momento houvesse a necessidade de protegê-los de um mal, como se acredita ser a reflexão teológica, ao partir do pressuposto de que esta é sempre dogmática.

A resistência de alguns pensadores da bioética, nesse sentido, está em assimilar para sua reflexão os dogmatismos da reflexão teológica. No dizer de Jorge José Ferrer e Juan Carlos Álvares (2005) “a marginalização da religião e da linguagem religiosa em bioética é fato inegável”. Entretanto, Márcio Fabri dos Anjos (2003) pontua que a ciência também não é neutra e nem desprovida de interesses em seus discursos, ao passo que a teologia tem uma importante contribuição diante dos fundamentalismos religiosos, na compreensão de determinadas culturas. Assim, algumas autocríticas são feitas pela teologia, numa tentativa de aprofundar o debate com a bioética. A primeira enfatiza que, com a modernidade, o simples recurso à autoridade divina já não mais garante a certeza e o caráter de não questionabilidade de suas afirmações e normas éticas. Cresceu a consciência sobre o lugar do indivíduo humano no mundo e sobre a sua capacidade de interpretar e elaborar a “verdade”. Numa segunda autocrítica, observa-se certa presunção da teologia em se entender no singular e de forma unívoca, não deixando que suas bases sofram correções advindas da pluralidade de outros diferentes saberes, experiências e paradigmas.

Com a valorização do sujeito e sua subjetividade, pela modernidade, os teólogos reconhecem a autonomia da razão em pesquisar, argumentar e propor, sem que isso seja uma contradição da fé. Pelo contrário, veem nisso um subsídio à própria fé. Com essa abertura, a teologia se mostra modesta e disponível para o diálogo com a realidade, por demais complexa para ser dada como acabada. Na verdade, a reflexão teológica em bioética não é possível sem um mínimo de informações compostas por dados que os teólogos têm de buscar em outras áreas não teológicas. Com essa postura, a teologia mostra-se madura na sua potencialidade de poder contribuir, ainda mais, como instância capaz de ouvir para desenvolver uma crítica e alimentar uma razoabilidade diante das situações que pedem respostas mais convictas que brotem da abertura e da solidez que vem do consenso.

Nessa compreensão, pode-se entender que, no intercâmbio, há o crescimento da teologia e da bioética. A reciprocidade, dentro da pluralidade, tem na vida ética e na reflexão bioética a possibilidade de se aprofundar e ter amadurecidas suas particularidades, numa colaboração mútua e contínua, que ajuda ou eleva o crescimento. Assim, teologia e bioética não se separam, mas juntam-se; não se dividem, mas crescem, com a mesma finalidade. A racionalidade própria da teologia, na qualidade de ciência humana, é do tipo hermenêutico e traz uma contribuição específica ao buscar a interpretação da vida nas dimensões espirituais do ser humano e ao considerar a vida para além do tempo. Atentando-se a essa abertura, pode-se dizer que, ao menos em termos gerais, a teologia tem uma grande contribuição a oferecer à bioética.

É preciso, entretanto, ter cuidado com referência a algumas distinções próprias de ambas as ciências envolvidas no diálogo, como as questões da linguagem e da diferença conceitual, para que não haja nenhum prejuízo em suas reflexões e para que não sofram, por isso, retrocessos. Anjos (2001) salienta, por exemplo, a diferença na percepção do conceito de “salvação”, quando as grandes e rápidas mudanças desafiam a responsabilidade humana em relação a projetar o futuro: “A questão de fundo pode ser formulada em termos de salvação. Este é um conceito mais usado em teologia do que em bioética. Entretanto, também a bioética se pergunta: como construir um futuro que garanta no mínimo a sobrevivência da vida, um futuro de crescimento integral e paz?”.

O conceito de “salvação” não coincide em bioética e em teologia, mas, apesar da sua complexidade, mostra algumas aproximações nos dois campos: “Transcendência e escatologia marcam o horizonte da visão teológica; enquanto que a bioética, de modo geral, cultiva um âmbito intra-histórico da sobrevivência e realização humana” (ANJOS, 1996). A aproximação acontece quando teologia política e a teologia da libertação, por exemplo, propõem-se a discutir a importância da transformação histórica. Na coerência dessa postura, a teologia vê-se hoje comprometida com o desafio comum de salvar a humanidade, seu meio ambiente e toda forma de vida. Com isso, a teologia encontra, então, na bioética e na ecologia, grandes aliadas para repensar esse braço imanente da salvação.

Além dessa importante purificação conceitual, deve-se dizer que tanto as ciências quanto a teologia devem prestar atenção aos interesses, muitas vezes corporativos, que decidem sobre seus procedimentos teóricos. As ciências não estão isentas de sujeitos concretos, que trazem consigo interesses para a interpretação de seus dados. A teologia, em diferentes momentos, tem identificado uma base de cunho religioso subjacente a teorias científicas aparentemente leigas. Um desses casos verifica-se com relação ao aquecimento global, no tratamento dos quais os cientistas assumem uma linguagem escatológica, de caráter missionário, propondo salvar o planeta, ou, ainda, quando se fala de mercado de compensação de carbono. Evaristo Eduardo de Miranda (2009), pesquisador da Embrapa, faz uma análise comparativa, dizendo que esse mercado de compensação funciona aos nos moldes das indulgências apregoadas pela Igreja na Idade Média: “as indulgências podiam ser compradas, negociadas, e garantiam o perdão ao pecador pela remissão ou reparação das conseqüências de suas faltas”. Essa percepção denota que, subjacentemente, há em cada discurso, seja científico, religioso ou de outra natureza, a revelação ou o desvelar de uma crença. Edgar Morin (2001) diz isso da própria ética, que tem como verdadeiro problema

saber fundamentar uma auto-ética, uma ética fundada sobre si mesma, no nível da autonomia do pensamento e da liberdade pessoal. Mas, ao mesmo tempo, se essa ética não pode ter fundamento, ela precisa ser explicada ou iluminada por uma fé. Não uma fé religiosa no sentido tradicional, mas uma fé na fraternidade, no amor e na comunidade, que não seria o fundamento da ética, mas sua fonte de energia.

Nesse mesmo artigo, Morin (2001) diz não acreditar que exista uma ética sem fé, mas que também isso não elimina os problemas de autoética, que ele percebe em três ordens: o primeiro jaz nas contradições éticas, ou seja, no confronto de imperativos categóricos antagônico; o segundo situa-se no nível das incertezas éticas; e o terceiro é a problemática do “eu” em relação a si mesmo. Com isso, pode-se dizer que não existe o não acreditar, mas sim modos diferentes de crer, o que é possível de ser verificado até mesmo dentro da bioética.

O que de fato incomoda, tanto em grupos religiosos como em comunidades científicas e semelhantes, é a convicção transformada em pretensão de monopólio da verdade. Esta corta as possibilidades de diálogo, torna as posições rígidas e confere um perfil sectário às convicções. Esse pode ser o principal fato responsável pela suspeita que tem pesado sobre os confessionalismos religiosos, mas que atinge também outros tipos de grupos. No caso do grupo que não se abre ao diálogo, desenvolve-se uma forte tendência de isolamento, de modo a não se perceber a complexidade das realidades. Agindo isoladamente de outros saberes, uma reflexão torna-se reducionista e merecedora de pouco crédito.

Na extremidade das convicções, K. Popper (1991) convoca-nos para um mundo de propensões em vivermos sem certezas, mergulhados apenas em pequenas verdades transitórias. Essa postura é típica da abertura hoje necessária e fundamental para a compreensão do conhecimento que se caracteriza interdisciplinarmente. A solução perpassa pela colaboração de diferentes “comunidades”, que, na inter-relação, constroem o saber a partir da troca, das discussões, de encontros, de discordâncias, num diálogo que Anjos (2003) ousa chamar de “negociação de saberes”, característico para a relação entre os saberes ora abordado. Para tanto, tal diálogo exige a libertação dos absolutismos, dos dogmatismos e das certezas atávicas, que também poderiam ocorrer no perigo alertado por Carlos Selleti (2005):

Com a crescente possibilidade de alternativas, nenhuma delas se torna absoluta e profunda. Tudo passa a ser relativo e a conseqüência desta pluralidade poderá ser uma sociedade com raízes superficiais, frágeis à menor turbulência, sem elementos reguladores ou integradores das consciências. Nesta ordem de idéias, todas as pessoas deverão ser adestradas no mundo das opções.

Nesse cenário em que o diálogo se faz necessário, é preciso estar atento também para não ser conduzido pelo relativismo levado aos extremos que pode caracterizar como não muito benéfico à reflexão, e perder-se na ebulição de confrontos de ideias, inovações e comportamentos de individualidades, em que cada pessoa e grupos reiteram suas convicções. No circuito desse conceito, as ciências e a teologia não podem perder o seu foco e o seu interesse fundamental de investigação ao buscarem uma ética mínima, que Hans Kung propõe como defesa da vida, trabalho pela paz, proteção do meio ambiente, bem como a cultura da não violência, da solidariedade, da tolerância, de uma vida veraz, da igualdade, da colaboração entre homens e mulheres e da vida mais vulnerável – elementos que o autor apresenta como último fenômeno da exigência ética.

A fé como horizonte da Ética

Deve-se perguntar de imediato, em que nível a fé influencia a ética. Em contexto de uma ética que preze a “autonomia dialógica”, não é tarefa da fé fornecer normas materiais concretas, mas estabelecer um horizonte de sentido para um agir ético autônomo. O ponto de partida dessa posição é o caráter racional da realidade, que exige um discurso argumentativo. Inserir o conceito de autonomia na reflexão ético-teológica não pretende colocar o homem numa posição oposta ou mesmo alternativa a Deus, mas acentuar o papel da razão humana como lugar da percepção e acatamento das exigências morais. Uma afirmação central e fundamental da ética autônoma é a da capacidade humana para conhecer a verdade. Mas, quando se considera que uma moral cristã é uma moral do autêntico ser homem, deduz-se que o conteúdo material da Ética cristã será idêntico ao de uma ética secular. Ambas terão que ser éticas do ser humano. A revelação de Jesus Cristo não acrescenta conteúdos materiais à ordem ética, mas dá-lhe um sentido e um horizonte global. Cristãos e não cristãos situam-se perante as mesmas questões éticas, e ambos precisam procurar, conforme seus próprios critérios, as soluções para essas questões.

Sem neutralizar a fé, Tomás de Aquino sustenta que a fonte do conhecimento ético é a razão humana. Uma ação só é plenamente humana quando o homem está no centro do agir e é senhor dos seus atos, pela liberdade da decisão e pelo uso. A centralidade da razão humana não significa nenhuma absolutização antropocêntrica. Não é um senhor absoluto que se encontra no centro da autonomia moral, mas um ser criado em relação dialogal com o Criador. O homem verdadeiramente autônomo é aquele que capta os seus limites, que vê e respeita suas fronteiras imanentes. O Aquinate elabora uma autonomia ética baseada na fé e fundamenta a possibilidade da ética na capacidade da razão humana para captar o bem, como virtude do agir humano. Para a determinação ética do comportamento concreto, o cristão e o humanista estão fundamentalmente num mesmo nível. Ambos têm de tentar compreender o fenômeno homem e, por meio dos critérios de uma epistemologia ética, determinar o que é um comportamento concreto de acordo com a dignidade do ser homem como tal.

Alargando as dimensões e consequências dessa interligação fundamental do ser humano, Coutinho (2005a) cita A. Autiero, quando este último fala de uma “autonomia solidária”, no sentido de uma ampliação das capacidades argumentativas. Dado que o agir tem de ser guiado pela razão, uma ética teológica só é possível de forma argumentativa. O caráter ético do discurso teológico não dispensa um procedimento argumentativo, nem essa racionalidade argumentativa significa um isolamento do indivíduo. Trata-se de uma autonomia relacional, com isso supondo-se uma autonomia aberta ao outro, à comunicação. Na sua busca do bem e não possessão da verdade, a autonomia lança precisamente um apelo ao reencontro. Pode-se dizer que a fé e a ética são relacionáveis e, ao mesmo tempo, distintas, pois existe uma interação mútua, mas elas não se substituem mutuamente. O contributo teológico no discurso ético não entra em concorrência com o caráter argumentativo da fundamentação de juízos morais, mas incrementa o seu crescimento. A condição para isso é que Deus não seja concebido como depósito de normas morais, mas como um horizonte de sentido que capacita para tomadas de decisões mais acertadas. O papel da teologia no debate com a bioética coexiste numa tarefa interdisciplinar, sem que nenhuma delas necessite de renunciar àquilo que a caracteriza.

Para Coutinho (2005b), a

condição indispensável para o trabalho interdisciplinar é a aceitação de que cada um dos participantes elabore o seu discurso com uma racionalidade científica fundamental. A comunicabilidade, plausibilidade e inteligibilidade dos próprios dados são características de um discurso científico. Também para a teologia valem estes critérios.

A posição da teologia ao longo da história do pensamento ocidental passou de um plano central e inquestionável para um lugar periférico e duvidoso. A novidade que se apresenta à teologia é a aplicação dos procedimentos da ciência ao dado da fé, constituindo uma disciplina orgânica e sistemática. A teologia, por muito tempo, foi considerada uma ciência superior, mas, em tempos atuais, inverteu-se a situação, competindo aos teólogos justificar perante os seus interlocutores o caráter científico do seu discurso.

Aplicar o conceito de ciência apenas ao âmbito do conhecimento empírico, coisificável, quantificável e experimental é desconhecer a variedade dos fenômenos teorizáveis. De acordo com esse método, a teologia e, bem a rigor, as demais ciências humanísticas, só poderiam ser classificadas como ciências se o conceito de ciência tivesse em conta a pluralidade e multiplicidade do ser e da realidade. Justificando a teologia como ciência, verifica-se que ela trabalha com um método adequado ao fenômeno que investiga; apresenta uma resposta comunicável e plausível, ainda que não empiricamente demonstrável; e, por outro lado, torna-se do interesse geral, na medida em que os problemas por ela abordados têm a ver com questões fundamentais humanas.

Determinante para considerar uma disciplina como científica é o conceito adotado por Knauer, que “define a ciência como o esforço por alcançar um saber que dê razões sobre a sua fundamentação, sobre a origem dos seus conhecimentos e sobre o modo das suas conclusões, e que simultaneamente se submeta a uma prova crítica” (apud COUTINHOc, 2005). Essa é, sem dúvida, uma concepção de ciência mais aberta e integrante do que a concepção positivista que, a rigor, nega o estatuto de ciência às ciências humanísticas. Não seria isso um reducionismo?

De fato, um discurso que pretenda o estatuto de ciência tem de passar sempre na prova da comunicabilidade, que implica não apenas ser comunicável em categorias compreensíveis a interlocutores de outras áreas ou disciplinas, mas também com elementos que lhe permitam alguma receptividade. Trata-se de garantir que o objeto do discurso não seja apelativo apenas a quem partilha os mesmos pressupostos epistemológicos, mas que também possua elementos relevantes aos interlocutores externos. No caso da teologia, abordam-se dimensões e aspectos relevantes para todos os homens, como a questão do sentido da vida, do valor da pessoa, da hierarquização de valores, da concepção antropológica etc. Essa abrangência é, sem dúvida, um critério importante para distinguir um saber fideísta e hermético de um saber científico. Assim, pode-se afirmar que os conhecimentos científicos se caracterizam por um saber intersubjetivamente válido, transmissível a todos os sujeitos de conhecimento. Desse modo, a teologia, como ciência da fé, quer se afirmar na sua comunicabilidade universal ou inteligibilidade.

Outra condição do saber científico diz respeito à sua objetividade, no que se refere à metodologia e epistemologia vinculadas diretamente ao objeto. A objetividade não deve identificar-se somente com a demonstração empírica, mas igualmente com o rigor material e formal. O conteúdo é que define o objeto de qualquer conhecimento científico. Desse modo, a teologia é a ciência da fé, isto é, o esclarecimento e desenvolvimento, de forma reflexiva e orientada metodicamente, da revelação divina abrangida e aceite na fé.

A teologia, como ciência da fé, verifica que, quando fé e ciência estabelecem uma interação, de tal maneira que a fé e os dados da fé se tornem objeto dos esforços de conhecimento científico, o discurso científico torna-se instrumento do conhecimento da fé; e de tal modo que as duas instâncias de interação não prescindem da sua essência, mas, preservando as suas características próprias e os seus interesses específicos, realizam o discurso da fé e fazem-na avançar.

Citando Karl Rahner, Coutinho (2005d) atribui à teologia o caráter científico por alguns motivos:

1) a redução do conceito de ciência ao âmbito experimental (...) é puramente arbitrária, já que na história do pensamento não existe uma aplicação tão uniforme e restritiva do conceito;

2) a teologia possui um âmbito objetivo: o ato e o conteúdo da fé cristã; como objeto do conhecimento é pelo menos um fato psicológico e histórico que pode ser investigado com reflexão metódica;

3) (...) uma investigação comprometida e crente do dado da fé pode coexistir com uma reflexão crítica, que não exclui à partida as questões problemáticas.

A questão da participação da teologia no conjunto das ciências faz refletir uma questão de fundo: sua contribuição não pode ser indiferente e nem descaracterizada. O seu contributo deverá trazer novos elementos para a discussão com outros interlocutores, sempre propostos de uma forma inteligível. Aqui se encontra um dos pontos centrais quando se questiona a cientificidade da teologia, já que um dos pressupostos da ciência é justamente chegar a novos conhecimentos.

Como ciência da fé, a teologia chega a novos conhecimentos partindo de premissas fundamentadas na fé ou na revelação, empreendendo um raciocínio dedutivo que conduz a novas conclusões. Aqui, ainda, é bom estar atento a que argumentar é mais do que extrair consequências de algumas premissas: é aquisição de resultados novos, ainda não presentes nas premissas. Também nesse sentido, a teologia preenche os requisitos de um saber verdadeiramente argumentativo. Não basta, aqui, à teologia apresentar os seus princípios dogmáticos ou fundamentais – é preciso elaborar um trabalho de reflexão suficientemente argumentativo, que leve as conclusões novas ao nível prático. Como discurso científico, ela exige um método racional, discursivo e argumentativo. Como conhecimento científico, “acreditar” não se opõe a “saber”, já que cada forma de racionalidade implica sempre um elemento de confiança: cada forma de ciência, na medida em que supõe a possibilidade de saber, implica também esta forma de acreditar. A fé, como confiança, não significa convicção acrítica ou decisão irracional, está aberta para argumentar e buscar fundamentos, explicar e dar razões.

Essa linha de raciocínio vai ao encontro de uma concepção de fé a partir de uma abordagem laica, trabalhada por Fermin Schramm (2007), ao propor uma dupla transcendência: a vertical e a horizontal. A transcendência vertical estaria mais direcionada para uma relação com Deus como interlocutor externo, estruturada a partir de pressupostos hierárquicos, legitimada por regras e princípios; a transcendência horizontal volta-se para o existencialismo e humanismo, que recusam de per se princípios absolutos válidos. Schramm ainda reforça a ideia de uma transcendência vinculada à concepção do outro, imanente, mas que está para além da concepção do outro trabalhado por Lévinas. Citando Lecaldano, diz Schramm (2007): “é perfeitamente legítimo defender uma ética sem Deus”.

Sobre esse diálogo entre fé e ciência, ou da teologia como ciência da fé, João Paulo II (1998) exprimiu-se de forma basilar:

A fé, privada da razão, pôs em maior evidência o sentimento e a experiência, correndo o risco de deixar de ser uma proposta universal. É ilusório pensar que, tendo pela frente uma razão débil, a fé goze de maior incidência; pelo contrário, cai no grave perigo de ser reduzida a um mito ou superstição. Da mesma maneira, uma razão que não tenha pela frente uma fé adulta não é estimulada a fixar o olhar sobre a novidade e radicalidade do ser.

A teologia, como ciência da fé, supõe que fé e ciência sejam duas realidades em interação permanente. Também aqui é aplicável o postulado de não contradição entre razão e revelação. A teologia tem, por isso, de se expor à crítica das ciências. O discurso teológico encontra credibilidade quando se expõe à prova da crítica científica no encontro com outras racionalidades. A teologia realiza investigação interdisciplinar quando essa dupla preocupação está presente na sua atividade, quando o confronto com outros saberes põe à prova os dados da sua reflexão, quando a sua presença em contextos plurais é suficientemente eloquente para interpelar e questionar, quando os dados dos outros parceiros de diálogo podem influenciar a sua reflexão teológica, quando as suas intervenções contribuem para uma abordagem diferente da realidade por parte das outras disciplinas.

A função da teologia no diálogo interdisciplinar consiste em contrariar todas as tendências de “absolutização” dos restantes discursos parciais e propor os seus conhecimentos como parte da realidade. No trabalho interdisciplinar, realiza-se o encontro de ciências de caráter experimental com as ciências humanísticas. As ciências positivas, técnicas e naturais não proporcionam compreensão do sentido da realidade. Essa é uma das tarefas da filosofia e da teologia. Por isso, diz-se que a teologia é uma ciência hermenêutica. Nela está em causa a interpretação e explicação dos dados da fé. A função hermenêutica da teologia realiza-se em dois sentidos: como interpretação da fé, o que trabalharemos a seguir, e como análise interpretativa da realidade envolvente, que descreveremos na última parte deste capítulo.

O específico da contribuição teológica na interdisciplinaridade

Voltando a aludir sobre o que é próprio da contribuição teológica como interpretação da fé no diálogo interdisciplinar, a Teologia procura compreender e explicar como é que o homem pode realizar-se como ser humano nos condicionamentos que as diferentes dimensões da realidade apresentam.

As categorias do debate ético teológico em muito se mesclam com categorias presentes no âmbito científico. Exemplo disso é a abordagem da “precaução” como referencial de análise. Esse conceito permeia vários seguimentos do conhecimento e articula-se pelo equilíbrio que deve motivar o homem no seu agir. Essa concepção é a mesma que se insere no pensamento tomista, segundo o qual é próprio do ser humano buscar o bem e viver orientado para ele, podendo esse bem ser designado também com felicidade ou realização pessoal. O agir humano insere-se numa orientação para um fim, que integra não apenas os atos isolados, mas também o conjunto mais alargado da atividade humana e das opções de vida, que as congrega numa unidade de sentido.

Outros conceitos poderiam ser tomados. Assim, pode-se elencar a “responsabilidade” como delineadora do comportamento humano e transversal a ambos os discursos. O discurso da responsabilidade é situado no humanismo cristão em vista da questão do respeito à vida que lhe é inerente. Qualquer tentativa de degradação e violência à vida humana coloca em cheque valores defendidos pelo pensamento cristão. A “dignidade do ser humano exige que possa agir de acordo com uma opção consciente e livre, isto é, movido e levado por convicção pessoal, e não por força de um impulso interno ou debaixo de mera coação externa” (COMPÊNDIO VATICANO, 1998).

A responsabilidade é, na concepção de Hans Jonas (2006), uma expressão básica, considerada o existencial primeiro de uma estrutura da racionalidade humana, a qual caracteriza o universo verdadeiramente humano. É a mesma responsabilidade que Lévinas (1988), ao descrever a estrutura ética da racionalidade, coloca como fundamento primeiro e essencial. A Ética não aparece como suplemento de uma base existencial prévia, mas como responsabilidade que brota da subjetividade humana. A responsabilidade determina a liberdade do eu. A liberdade não consegue se justificar por ela mesma. A infinitude não está no livre-arbítrio, mas na responsabilidade pelo outro homem. Para Lévinas (1988), “justificar a liberdade não é demonstrá-la, mas torná-la justa”. Sem responsabilidade, a liberdade se desvanece, vira libertinagem. Do ponto de vista ético, o sujeito é responsável quando é capaz de se autodeterminar com consciência. Nesse sentido, ser responsável é ser capaz de prever os efeitos do próprio comportamento e, quando estiver equivocado, saber-se corrigir com previsão. Parafraseando o imperativo kantiano, a responsabilidade como princípio ético leva a crer que a ética exige que cada um aja de acordo com as suas convicções pessoais, mas que essa ética deve estar em acordo com o que é válido para os demais.

Além desses referenciais transversais já citados, a teologia, em seus critérios de comunicabilidade, possui também conceitos muito apropriados ao seu discurso, como alguns que também já foram expostos. O diálogo da ética teológica se justifica porque salvação cristã e realização humana são processos inseparáveis. Para seus conceitos, a teologia recorre à compreensão de fundo do homem como ser criado à imagem e semelhança do seu Criador, na qualidade de ser racional, livre e capaz de amar, atributos que constituem, por isso mesmo, uma exigência à responsabilidade para ele. A ética teológica tem, portanto, o dever de realizar sua tarefa argumentativa mantendo as referências epistêmicas e metodológicas com base em seus próprios conceitos. A interrogação sobre a dimensão ética da realidade abre-se, assim, à teologia e encontra nela respostas nos conceitos de criação, redenção e plenitude, basilares na sua reflexão. A ética teológica aborda a interpretação do homem a partir de uma perspectiva global acerca do ser humano, do mundo e de Deus.

Trabalha com as categorias de sentido, realização e motivação, que brotam da sua fé como fonte originária. Os fundamentos do seu discurso advêm dos escritos bíblicos (Mt 22, 34-40) que apresentam o amor como expressão básica ou mandamento. O núcleo central da teologia cristã está no afirmar da encarnação, morte e ressurreição de Jesus. A análise que se elabora a partir dessa afirmação leva os teólogos eticistas à responsabilidade de mostrar a conexão entre a fé e a razão prática, expondo seus significados e desvendando-os, a partir da racionalidade científica, à compreensão dos seus interlocutores.

Dessa maneira, ao entrar no debate ético, o teólogo não pode renunciar a dar o seu contributo específico e próprio, nem deve assumir um ponto de partida qualquer, ou uma perspectiva meramente pessoal. O constitutivo da fé cristã é o horizonte hermenêutico de um discurso ético-teológico. Na ética cristã, o conceito de dignidade humana assume uma importância fundamental. O ser humano é visto como sendo detentor de uma dignidade que não lhe é atribuída por nenhuma estrutura social, mas que lhe vem do fato de ser objeto do amor divino, o que o torna livre e responsável, senhor dos seus atos, um ser relacional e membro da comunidade humana. A vida humana é considerada como um bem fundamental, mas não absoluto. Essa é, seguramente, uma das convicções relevantes da fé para a reflexão bioética. A fé em Jesus Cristo morto e ressuscitado torna os crentes conscientes da sua condição de peregrinos por este mundo, dá-lhes a convicção de que essa relação com Cristo se projeta numa vida que se preocupa com os sujeitos vulneráveis deste mundo, sem, contudo, deixar de projetar-se para uma vida em plenitude.

A vida humana é olhada como um bem fundamental, porque é o fundamento de todos os bens, a fonte e a condição necessária de toda a atividade humana e de toda a convivência social. A vida humana não é um bem absoluto por haver bens superiores a ela, tais como o abdicar da vida pelo sentimento de dever, pela sublimidade da fé, pela defesa da pátria, para proteger alguém que se ama, e assim por diante. A discussão deste parágrafo acerca da fronteira da vida desperta os ânimos dos meios médicos, sobretudo por lidar com questões complexas sobre a terminalidade e o início da vida.

A teologia não oferece respostas concretas a questões particulares. Afirma, porém, que a vida é um dom de Deus a ser preservado, tendo uma origem e um destino. A teologia não dá soluções concretas para os casos. Não é de sua competência, por exemplo, se determinado paciente está numa situação em que se devam usar, para seu tratamento, todos os meios disponíveis ou renunciar a alguns; ela não esclarece que meios se deve usar ou evitar. A tarefa da teologia é proporcionar o horizonte em que se colocam os problemas, é sugerir atitudes fundamentais e princípios básicos. E é nesse sentido que a fé informa a razão, sem substituí-la. Mesmo em dilemas tão aguçados, a teologia não se desliga das ciências, antes lhes oferece motivação e intencionalidade. Todavia, nessas situações de cunho emergente, a teologia presta seu serviço ao assumir uma postura humilde de escuta, deixando que seus interlocutores mais hábeis possam atuar.

Dentre as diversas problemáticas presentes na vida humana, há situações sociais de cunho persistente, complexas e não superadas, que precisam ser alvo de reflexão, no intuito de serem evidenciadas para possíveis tomadas de posição por parte da sociedade. Esses problemas são perceptíveis, sobretudo, em países pobres e, em referência a eles, a teologia deve tecer sua reflexão para, nesse contexto, oferecer também sua contribuição.

A contribuição da teologia que vem da América Latina

Franklin faz notar que a época atual se caracteriza pela impossibilidade de uma ética universalista. Com a perda da universalidade religiosa, numa sociedade pluricultural em que emergem valores críveis ou que não estão convivendo simultaneamente, todos estão amparados pela liberdade de consciência e coexistindo sob diferentes códigos morais. É nessa direção que, diante da exigência de se estabelecerem regras de condutas em contextos particulares, “a relação humana vivida no regime da singularidade é o eixo em torno do qual gira a conduta” (SILVA et alii, 2007).

Em meio à multiplicidade das singularidades presentes na América Latina, o que torna a realidade ainda mais complexa, há uma singularidade em evidência nas camadas sociais: os povos empobrecidos. Essa situação foi sentida também pela teologia, que, a partir de meados do século XX, começou a elaborar sua reflexão iluminada pela bíblia e pela realidade de opressão que o povo estava vivendo, como análise interpretativa da sua epistemologia. Emergiu dessa percepção o conceito de um Deus não indiferente ao sofrimento do seu povo. A palavra “libertação”, interpretada, sobretudo a partir do capítulo 3 do livro Êxodo, foi evidenciada e assumiu na teologia a força de expressão-chave. A hermenêutica bíblica passou a ser elaborada a partir do modus vivendi do povo, ali encontrando terreno fértil, e firmou-se no seu discurso, tornando-se credível e capacitada para o diálogo. Vale repetir que a preocupação do discurso teológico elaborado na América Latina dirige-se à vida em plenitude e à pós-morte, sem deixar de considerar a realidade imanente ou o lugar a partir do qual ela tece suas reflexões.

Para falar em Deus na América Latina, inspirando credibilidade e usando de um discurso relevante do ponto de vista científico, é necessário que a teologia – ciência cujo objeto de investigação é Deus – faça corajosamente a pergunta que lhe é fundamental: onde está Deus? O que posso saber sobre ele? Tendo ele o rosto de Jesus de Nazaré, qual é a veracidade de sua experiência fundante?

Esses questionamentos retomam a identificação do próprio Jesus com os pobres. Para Ellacuría, na América Latina, os pobres não são somente indivíduos isolados, mas o sinal mais evidente é a existência de um “povo crucificado”, ou seja, uma multidão que vive sob o peso da opressão, sendo uma exigência primordial fazer “descê-los da cruz” (ELLACURÍA; RICHARD, 1999). A linguagem da “cruz” é útil e necessária em nível histórico-ético-religioso por poder exprimir um tipo de morte ativamente provocada. Morrer crucificado não significa simplesmente morrer, mas ser morto; significa que há vítimas e que há verdugos; significa que existe um gravíssimo pecado. Nesse lugar social, marcado pelo grito silencioso das massas, faz-se urgente a experiência da libertação diante da opressão, do sofrimento, da perseguição e da morte a que estão submetidas em suas vidas cotidianas. A iminência é fazer descer da cruz os povos crucificados, o que leva também à perseguição e ao martírio daqueles que se propõem a lutar em favor dos crucificados.

O descobrimento da inequidade é a verdade mais perversa da injustiça no continente latino-americano, bem como em quase todo o hemisfério sul do mundo. Os pobres daqui são os que Gustavo Gutierrez diz morrerem antes do tempo (SOBRINO, 1999). Trata-se da morte indireta, mas eficaz. Anjos (1989) caracteriza essa situação como mistanásia. Para expressar a pobreza em estado absoluto vivida no continente, o conceito de pobre torna-se insuficiente, sendo necessário enfatizá-la como extrema pobreza.

O pobre em extremo é aquele que não tem terra, não possui trabalho estável, vive na indigência e com alimentação insuficiente (para não dizer fome crônica), não tem acesso aos serviços de saúde e assistência, possui níveis mínimos de educação e vive em ambiente totalmente contaminado. “A sobrevivência de quem vive em extrema pobreza é quase inexplicável. São cadáveres vivos, que vivem, quotidianamente, com a morte no meio deles”, ressaltam Ellacuría e Pablo Richard (1999). Aí há um mínimo físico e material, abaixo do qual a vida humana é impossível. Um imperativo que aqui se coloca é o de que ninguém pode ser excluído da satisfação de suas necessidades básicas, nem impedir que as necessidades do outro sejam por estes satisfeitas.

Ellacuría e Richard (1999) também salientam que “A primeira e fundamental reflexão teológica sobre a pobreza é a verdade da pobreza”. A partir dela se conhece o conteúdo, na sua extensão e profundidade, da pobreza, da extrema pobreza, da opressão, das vítimas e da exclusão, com suas sequelas de violência e desagregação. Conhece-se também o que poderíamos chamar de “mistério da pobreza”, ou o que ela quer esconder. Uma coisa apresenta-se como óbvia: nesse contexto dá-se um sofrimento em massa, cruel, injusto e duradouro que é produzido e não natural.

O critério da verdade passa necessariamente pela lógica dos últimos: quando o último da sociedade é respeitado, todos nessa sociedade o serão. É nesse sentido que se pode afirmar que nos pobres está o critério para construir um projeto para todos. Entende-se, a partir disso, que o projeto do pobre é universal, pois não é excludente. O projeto dos ricos é particularizado e, portanto, excludente. No projeto dos pobres há lugar para todos. No projeto dos ricos não há lugar para os pobres.

Jon Sobrino (1994) diz que nos pobres está a salvação: “Captar a salvação que o povo crucificado traz não é só nem principalmente coisa de especulação ou de interpretação de textos. Trata-se de captar a realidade”. Parafraseando um antigo axioma católico, “extra ecclesiam nulla salus”, Sobrino (2007) propõe que “extra pauperes nulla salus” – fora dos pobres não há salvação. Colocar o pobre como critério de salvação torna-se, também, para a teologia, o critério fundamental para sua pesquisa. Do livro de Isaías consta essa realidade profética, sendo dito que Deus estabelecerá o anaw (ou o pobre) como “luz das nações” (Is, 42,6). Aprisionar a verdade da pobreza com a injustiça é a pecaminosidade fundante.

É desse lugar social, de “povos crucificados”, que Jon Sobrino (1994) desenvolve, a partir da parábola do samaritano (Lc 10, 29-37), sua obra O princípio misericórdia: descer da cruz os povos crucificados, tecendo a experiência desconcertante da compaixão de um Deus encarnado, a qual brota das profundezas de suas entranhas e converte-se em critério de ação e mediação da vontade de Deus, pois Jesus age segundo os ditames dessa compaixão.

Diante das injustiças que vitimam grande parte da população do continente, Sobrino (1994) propõe uma atitude de re-ação, que se dá a partir do direito, da equidade, da solidariedade, da fraternidade e da misericórdia, caracterizados como um amor estruturante capaz de sanar a violência e o pecado primordial – el mysterium iniquitatis – e que deve ser cuidadosamente analisado. Para o autor, a misericórdia, como princípio, não possui caráter ascético, mas muito concreto, pois vê o ferido e reage ao seu sofrimento. Pergunta-se: o que o samaritano viu no caído, sendo que o enfermo não era de sua comunidade religiosa, do seu grupo, e sendo que, aparentemente, nada o obrigaria a cuidar dele? A resposta mais satisfatória deve ser a de que o sofrimento internalizou-se naquele que cuida e lhe deu condições de reagir. Tudo induz a pensar que a solidariedade primária que moveu o samaritano não advém da obrigação, mas, pura e simplesmente por que, aquele desconhecido, reduzido a nada, “sem qualidades”, estava entregue à própria sorte, à compaixão humana. O samaritano cuidou do doente exatamente a título de uma humanidade desfigurada e fisicamente comprometida. As feridas despertaram no peregrino o respeito, no qual ele mesmo se viu diante de uma humanidade degradada.

Ao fazer uma leitura do princípio misericórdia, nota-se que dentro dele existem alguns passos a serem seguidos no intuito de curar ou salvar o ferido para efetivar a misericórdia. Para efetivar a misericórdia ou restabelecer a dignidade do ferido, é necessário considerar o processo de re-ativação básica, desde o momento impactante causado pela visão do sofrimento, até a cicatrização dos ferimentos, com atitudes de organização e promoção da vida. Nesse método, há necessidade de mostrar a estrutura da re-ativação básica perante, não somente de indivíduos feridos, mas de uma multidão sofredora, que clama por serem efetivamente curados.

A misericórdia assume, em primeiro plano, uma criticidade que encara com veracidade os reais problemas do continente. Essa misericórdia nos aponta a re-ação primária ante o mundo sofredor. É o Amor primário, ao qual se dá o nome de misericórdia. Segundo Martins (2008), os passos da misericórdia, como princípio, podem ser assim descritos:

1º) Em um primeiro momento, o impacto profundo e sensibilizador que a pessoa experimenta por ver diante de si a situação deplorável do oprimido;

2º) Em um segundo momento, o impacto que gera um processo de internalização ou assimilação, pela pessoa, daquela realidade, numa atitude de quem assimila e assume o lugar do outro em sua totalidade de vítima;

3º) E, por fim, uma atitude de organização e de ações que visam a efetivar a misericórdia, semelhantemente à ação do samaritano, não se desejando somente proporcionar um paliativo ao ferido, mas a sua cicatrização ou o seu restabelecimento à verdadeira condição de ser humano.

A teologia latino-americana recorda a centralidade da negatividade da existência humana, que perpassa pela escravidão, pela assimetria de poder-relação-riqueza, pelo experimentar de uma falta de sentido etc. Nesse contexto, Enrique Dussel (2000) diz poder vislumbrar a especificidade de um princípio ético-crítico da libertação como critério de mediação para discernir o que não permite à vítima viver, negando-lhe ao mesmo tempo sua dignidade de sujeito e excluindo-a do discurso.

Em torno dessa negatividade fundamental, detêm-se a filosofia da libertação, a teologia da libertação e uma bioética de intervenção, que juntas às percepções de outras ciências confrontam essa realidade com seus objetos de estudo. Assim, a psicologia, a sociologia, a biologia, a medicina, dentre outros saberes, juntam-se num esforço de esclarecê-las e apresentá-las em sua relação mútua. A contribuição da teologia latino-americana para as ciências tende a considerar as realidades como o fenômeno mais evidente a ser tomado como objeto de reflexão: o em-pobre-cido, a ecologia, os povos indígenas e tantas outras realidade sobre as quais as ciências, de modo geral, não podem se permitir calar.

Se a realidade do pobre e as situações que o levam à pobreza assumem o centro da reflexão, juntamente com elas deve assumir a capacidade re-ativa da misericórdia, numa tentativa de inversão da situação. Desse modo, o pobre não se torna o referencial e o centro convergente sem perspectivas, mas uma responsabilidade que deve comprometer a razão de ser e a espiritualidade da teologia e de todas as ciências refletidas na América Latina. Distanciar-se dessa realidade – o pobre – é afastar-se do principal objeto de estudo, o qual constitui-se o laboratório de reflexão e pesquisa que tende levar a interpelações. A teologia, a bioética, a biologia, a psicologia, a economia e a sociologia realizadas no continente devem levar em conta, em sua racionalidade, esse “fato maior” como categoria de investigação e estudo. Trata-se da irrupção dos pobres, dos povos oprimidos, marginalizados e crucificados.

Auscultar essa realidade, compreender a pobreza e as minorias é fixar o olhar nos rostos dos novos excluídos: os migrantes; os sem-teto e os refugiados; as vítimas do tráfico de pessoas e de sequestros; os desaparecidos; os doentes de HIV e de enfermidades endêmicas; os toxicodependentes; os idosos; os meninos e meninas que são vítimas de prostituição, da pornografia e/ou de trabalho infantil; as mulheres maltratadas; as vítimas da violência, da exclusão e do tráfico para a exploração sexual; as pessoas debilitadas; os grandes grupos de desempregados/as; os excluídos pelo analfabetismo tecnológico; os idosos pobres; as pessoas que vivem na rua das grandes cidades; os indígenas e afrodescendentes; os camponeses sem terras e os mineiros.

Daí que Jonas (2006) chama a atenção para a responsabilidade que vai ao encontro da proposta do princípio misericórdia, numa atitude de re-ação com aquele que é menos favorecido e mais vulnerável. A ética da responsabilidade de Jonas tem “como característica o defeito de favorecer o lado menos beneficiado pelas circunstâncias. Tal ética estará sempre ao lado dos fracos contra os fortes e dos que aspiram contra os que já possuem” (2006). Ainda segundo ele, “só uma ética que nos responsabilize a todos pode cumprir seu papel de apontar os valores e os fins a serem perseguidos”.

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Rogério Jolins Martins
Enviado por Rogério Jolins Martins em 05/06/2015
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