A Estética de Benedetto Crocce

O que é a arte? Fazemos aqui uma alusão ao Breviário de Estética de Benedetto Crocce que se inicia com a mesma questão, visto a controvérsia gerada por ela e a inquietação que tanto a pergunta quanto a sua personificação provocam. Assim repetimo-la com o intuito de esclarecer o mais que possível as nuanças próprias desta forma de expressão humana, que de muito serve como conteúdo ao ato de filosofar.

Vencidos os prolegômenos, ater-nos-emos à questão essencial acerca da arte, e já encontraremos de todos os lados uma resposta, ainda que ingênua, se emitida pelo homem sem letras, de poucos passos na arte da eloquência, ou mais refinada e com viés traçado segundo uma lógica se pelo filósofo, entretanto nos escapará a possibilidade de formulação de uma resposta que venha circundar a arte e defini-la, lançando através do desfecho amarras que a segurem e dominem. Portanto, aqui, democraticamente, instaura-se a incapacidade de arbitrar acerca da natureza da arte, senão na condição e de tal modo sem limitá-la, falar dela objetivando uma compreensão que transcenda as raias da racionalidade voraz bem como o demasiado sentimentalismo.

Tanto para o filósofo como para o homem “comum” – estabelecemos a diferenciação por uma questão de ordem demonstrativa apenas, haja visto percebemos a veracidade da frase de Gramsci, “tutti gli uomini sono filosofi” – a dificuldade instaurada não compromete o desejo que compele um e outro a postar-se frente a obra e aspirando seu ar, proferir conceitos, definições, que serão diferentes somente na intensidade advinda da profundidade de raciocínio, mas retornarão ao seu ponto de partida por não encontrar na obra o seu côncavo. Neste instante, surge o erro, proporcionando àquele que observa e diz, seja filósofo ou não, a oportunidade de conduzir o pensamento a um esvaziamento do universo que rodeia a obra de arte e nada tem de íntimo a ela. O erro neste caso não é um privador da verdade, mas um impulsionador da busca, aquele que mediando forças com a verdade conduzira o caminhante à presença da obra.

A relação firmada e entrelaçada de verdade e erro, é a mesma que se dá entre o universal e o particular, o dogma e a dúvida, o ser e o ente, tornando-se mais distinta ao passo que se contrapõem, negando uma a outra num pleno e dialético exercício de criticidade.So0mente por meio desta é possível deslindar o que há de verdade e erro quanto aà compreensão da obra de arte.

Mantendo o curso inicial e retomando Crocce, respondemos a pergunta de igual modo: a arte é intuição. Enquanto tal, na sua mais que absoluta proteção, a arte impõem-se diante de todos como um momento ímpar de revelação, de mostrar-se e realizar-se naquele que a observa. Intuída pelo artista a obra representa um instante na eternidade, uma fresta que se abre permitindo vislumbrar-se o todo, o nó necessário a tragédia, encerrando seu sentido no ávido espectador. Entrementes, não basta dizer apenas que a arte é intuição, é preciso esmiuçar esta solução e pô-la ao crivo da crítica para eliminar dela os erros e elucidar as negações decorrentes da conceituação, pois segundo o princípio de identidade da metafísica parmenídica, “o que é é e não pode ser outra coisa”.

A primeira negação é da arte enquanto um fato físico. Por este entendemos que seja qualquer realidade material integrante do mundo. Não desejando cometer nenhum pecado contra a física hodierna, consideraremos o físico como o ‘phainomenon’, que na sua origem grega reporta à idéia de parecer, em contraposição à idéia de ser. Esta, que não pode ser percebida por nosso sentidos, enquanto aquela aparece através da diversidade mundana. Assim e do mesmo modo, entendemos fato físico como o que se mostra, o que pode ser percebido por via dos sentidos; em relação à arte a matéria residente, identificada por tons cromáticos, modelos geométricos, vibrações sonoras, o arcabouço lingüístico, enfim quaisquer manifestações de ordem sensível. De certo, agora temos como apresentar a negação fundada no físico como ilusório, como irrealidade, logo absurdamente contraditória à arte, que resgata a sua realidade auto-fundante chocando e enebriando o seu co-autor. A irrealidade do mundo físico é notória, o fenômeno é algo captado pelos sentidos e submetido às leis da consciência num processo interminável de leitura e releitura, sob uma norma de refutação, de falsificabilização, num processo contínuo de construção intelectual do objeto, irremediando a busca e encontro do existente enquanto tal e qual, enquanto si mesma. A arte por seu turno nos proporciona este encontro, revelando a realidade, revelando-se como realidade.

Como intuição a arte nega-se agora a ser um ato utilitário, porque nada guarda em seu âmago de estreito com a dor ou com o prazer, estes podem e devem ser manifestados pela arte, entretanto numa reação catársica, onde “suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação das emoções” .

O objeto artístico quando tido como agradável, também desvirtua sua acepção, caindo nos braços da estética Hedonista e suscitando por conseqüência terminológica a busca de um prazer incessante. E como diz Kant, “agradável é aquilo que apraz aos sentidos na sensação” , explicando que toda satisfação é em si mesma a satisfação de uma sensação ( um prazer ), então aquilo que apraz, que agrada aos sentidos, gera prazer, é agradável e compraz. Não retiramos do universo circundante à obra de arte, a experiência estética no seu caráter prazeroso, apenas tentamos evidenciar que tanto o prazer quanto a dor, ou mesmo a agradabilidade excluem-se do universo artístico quando percebemos a instabilidade sentimental que pode regozijar-se diante de um quadro feio, ou sentir asco diante de um quadro belo somente por ele representar algo que menosprezamos, assim ver-se a maneira volúvel que lidamos com nossas emoções diferentemente da arte que é plenamente estável, e da experiência estética que corre como um fio de óleo na água, sem misturar-se, sem confundir-se.

A próxima negação que a arte como intuição revela é quanto a um possível compromisso moralizante, educador, formador, conduzindo-a a um ato prático, outrossim utilitário, porém um tanto diferente do utilitário prazeroso proposto pela filosofia Hedonista, mas um prático que prescreva um comportamento orientado para o bem, eternamente delineador de uma conduta supostamente correta, onde o artista no êxtase da sua criação “age de modo tal que a máxima de tua conduta possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal”, definidora das posturas para o melhoramento moral da sociedade. Esta regra foi por muito seguida, e por muitos aceita, a serviço de um princípio mantenedor da ordem pública ou da subserviência frente a santa igreja. O que diverge profundamente da idéia da arte como um ato moralizante é a sua natureza intuitiva que não aflora por meio da vontade, pois a boa ou má vontade define o homem quanto ao seu comportamento, mas não define o artista, e tampouco seu ato. A partir desta compreensão como podemos dizer que uma obra de arte é moral ou imoral? Em verdade não podemos, porque por mais que a imagem retratada, a escultura erigida, as letras justapostas, o som ritmado, levem ao moral ou imoral, enquanto tais as obras não podem ser julgadas, e parafraseando Crocce diríamos, “seria como julgar moral o quadrado e imoral o triângulo”. A impertinência do sentido da arte como inculcadora de uma essência moral que venha eliciar a imoralidade numa proposta civilizatória, destoa do que a arte propõem-se a fazer, que é fazer nada, não há objetivo oculto numa criação artística além do acontecer da própria arte. E nessa perspectiva está também o artista que não assume nenhum compromisso com o que quer que seja, apesar de ser homem e imergido nesse universo da conduta, seguindo o destino ditado por seu ofício.

O quarto fato diz respeito ao conhecimento conceitual que pode ser representado em três instâncias, sendo: a filosófica, que é por natureza a mais perspicaz na inteligibilidade da realidade, face a irrealidade; a religião, que por via da fé busca o Absoluto e concomitantemente a compreensão – aceitação – da realidade divina criada, em detrimento da fugaz irrealidade mundana; por fim o mito, que só é mito após o rompimento das tradições históricas através do pensamento elaborado criticamente , porém quando vivido é a máxima explicação da realidade, é a incontida demonstração do conhecimento acerca do real sobre a irrealidade que descoberta transforma-se em crença infundada, convicção falsa ou experiência ilusória.

A negação impõem-se justamente porque quaisquer dos modos de percepção mencionados anteriormente, têem como seu objetivo último a realidade, a comprovação de suas verdades frente a falsidade da irrealidade, e neste ponto reside a diferença, visto que na arte não cabe a discussão sobre verdadeiro ou falso, realidade ou irrealidade, a arte se distingue totalmente destes conceitos, ela é tão somente uma imagem, uma representação intuída, que transcende esta condição do real estando de certa maneira aquém da realidade por ser intuição, idealidade, pura imagem, teorética, e não obstante, de modo paradoxal, está além por não ter só a existência, qualidade inerente a toda e qualquer coisa real, mas também “ é ” , na estabilidade de ser, não se corrompendo no tempo.

A arte distancia-se ainda, da religião e do mito, pelo fato de o pensamento ser ausente ao processo de criação, outrossim a fé que dele nasce, pois o artista criador venceu a dimensão do crer, e sua obra não necessita desta crença, exige apenas o seu desvelar, a sua produção.

Feitas essas distinções, da arte enquanto fato físico, utilitário, moralizante e conceitual, temos a tarefa de estabelecer um critério para a análise da própria obra de arte, pelo motivo de no decorrer da história da arte, a obra tenha ficado a mercê das errôneas interpretações de grupos ou movimentos criadores de estéticas. Partamos então da terceira negação que para tal afirma a arte como imagem, pura imagem precisamente. A afirmação solicita esclarecimento, então: a imagem, sendo a representação mental de um objeto captado por nossos sentidos, põem em cheque a definição da arte como intuição, posto que entende-se por esta a imediatidade na percepção e a revelação da essência da coisa de modo evidente, ainda que esta não necessite ser demonstrada. Ora, como conciliar as duas resposta? No limiar do erro, dizemos que a arte é intuída a partir da produção de imagens. Nutrindo-se de imagens a arte vive. Tais imagens, entretanto, não provêem da faculdade da imaginação, pois se assim fossem manteriam o elo com a idéia de cópia, de imitação, sobre o qual falaremos adiante, mas advêem da capacidade de fantasiar, que convém lembrarmos designa a originalidade criadora. Intuir, não é produzir desenfreadamente imagens amontoando-as num depósito mental, do qual retira-se a imagem da vez, escolhida para a imortalidade, doutro modo é o fantasiar que encadeia as imagens, como se desde sempre assim estiveram, gerando um todo completo e sem arestas para serem aparadas.