Um Manicaca ou A implosão anticlerical de um romance

Um Manicaca, de Abdias Neves (Teresina, 1ª edição, 1909, 2ª edição, 1985), é um exemplo típico de como se destrói, por dentro, um romance. Não que Um Manicaca não tenha bons momentos literários. Possui-os. Por exemplo, a cena de D. Júlia saindo do banho, no cap. IV, é de uma sensualidade sugestiva e sutil; os diálogos, exceto os de natureza digressiva, são razoavelmente bem urdidos; há lances psicológicos e ironias mordazes; a onomatopéia que inicia o romance – "dlim... dlim... dlim... dlim... dlim..." – é admirável, e surpreendente para um romance tradicional; o feedback usado no segundo capítulo é bem conduzido; surgem coloquialismos que se contrapõem, singelos, aos péssimos momentos retumbantes do romance. Entre outros aspectos, deveras positivos, da narrativa.

Entretanto, há um grave problema em Um Manicaca, que desarticula sua estrutura como romance. Essa perturbação estrutural repousa no fato de o autor haver coincidido, equivocadamente, o anticlerical e o romancista. Ou seja, Um Manicaca, que deveria ter sido o romance de um romancista, acabou se transformando, infelizmente, num libelo – chatíssimo – de um anticlerical enraivecido(1). Daí os artificiais diálogos inseridos por Abdias Neves na boca de enxeridos "personagens" (estes e aqueles completamente fora da tessitura romanesca e, portanto, inteiramente dispensável à construção do romance), com a finalidade, nada literária, de ofender a Igreja. São falas insulsas, terríveis, horrorosas, que surgem na trama romanesca quando menos se espera, às vezes demorando páginas e páginas, caceteando o leitor e destruindo, por dentro, o romance, cuja estrutura literária não resiste a tantas e tamanhas e inoportunas intromissões anticlericais. Aliás, essas intromissões nada romanescas foram percebidas, e bem, pelo escritor Geraldo Borges, no artigo Notas sobre a literatura piauiense na Primeira República (Teresina, Carta CEPRO, v. 11, nº 1, jul-dez/19 pp.27-52)(2).

"Enquanto o romance se desenvolve vagaroso, no meio de festas, novenas, fofocas, cartas anônimas, aparecem outros personagens que não têm muito a ver com a organicidade do enredo. Nota-se que tais personagens foram criados pelo autor simplesmente para arranjar motivos de discutir o papel da religião como fator de influência no comportamento da mulher. O livro se propõe mais a ser um tratado sobre religião num meio provinciano do que mesmo um romance. Fala-se mais da religião do que mesmo da religiosidade dos personagens. O autor devia ter aproveitado o seu ponto de vista anticlerical para fazer um ensaio filosófico; teria se saído melhor, pois o romance resvala bastante para este gênero."

É certo que não se poderia impedir Abdias Neves de expressar, no seu romance, a fúria anticlerical guardada no peito. Afinal, a visão de mundo de todo artista se imiscui, dum jeito ou doutro, em sua obra. Mas, por Deus!, Abdias não podia fazer isso com sutileza e discrição? Enfim, com habilidade? Enfim, como romancista? Preferiu, porém, o anticlerical ao romancista – e deu no que deu: um romance defeituoso. Anômalo. Implodido.

O problema é que Abdias Neves não elevou Um Manicaca à categoria de romance-romance, ou seja, de romance-fim-em-si-mesmo, mas o concebeu, à naturalista, como um romance-instrumento, isto é, um romance-meio-para-expressão-de-posições-doutrinárias. Ora, se Abdias Neves se tivesse apegado a Um Manicaca como projeto eminentemente literário, um romance apoiado no triângulo tramático Araújo-Júlia-Luís Borges, tendo como cenário a provinciana Teresina do limiar do século (que, aliás, o autor pinta com muita graça), a literatura feita nesta terra de muito sol e pobreza tanta contaria, hoje, com um excelente romance de tez naturalista, embora retardatário(3). As suas diatribes anticlericais, estas Abdias Neves bem que poderia atirá-las pelas rodas, pelas calçadas, pelos botequins, nos discursos do Senado, da Academia ou da Loja. Até podia – e por que não? – destilá-las habilmente, sutilmente, aqui e ali, em Um Manicaca. Mas isso só poderia ocorrer se o projeto de Um Manicaca fosse eminentemente literário.

Não era. Para o azar da literatura feita por estas plagas de insuportáveis oligarquias e impunidades mil, que se privou de um texto de grande qualidade – fato literário importantíssimo numa terra de maus romances, como a nossa(4).

(Teresina, Jornal da Manhã, Especial, 3/7/1990, p. 5).

Notas:

1. Os motivos e as circunstâncias propiciadores dessa atitude anticlerical é um interessante tema de pesquisa.

2. A apreciação, infelizmente breve, que, nesse artigo, Geraldo Borges faz da Academia Piauiense de Letras, é esplêndida. E a notícia que dá sobre um poema de índole futurista, Fantasmas do Dia Seis, de autoria de um certo Hemileto, publicado em plena Teresina de 1928, tempera o texto com uma saborosa pitada de história literária local.

3. É talvez uma regra os movimentos literários repercutirem com atraso no Piauí, quem sabe em decorrência da condição política e econômica periférica. Assim, quando Um Manicaca é publicado, em 1909, em edição do autor, o naturalismo, estética a que se filia o romance, já estrebuchava na cova.

4. À exceção de Rio Subterrâneo, de O. G. Rego de Carvalho, e de Beira Rio, Beira Vida e Os que Bebem como os Cães, de Assis Brasil, entre muito poucos outros, o Piauí padece,sim, a falta de bons romances.