"Ku" - o real e o imaginário

"Ku" - o real e o imaginário







Said el-Gheithy, regente, em 2005, do londrino Centro para Aprendizado de Línguas Africanas, foi contratado pelo diretor de cinema Sydney Pollack para fabricar uma língua utópica falada no Continente Negro, já que o mesmo foi pano de fundo para o último filme de Sidney, "A intérprete". Tratava-se do idioma "Ku". Na vida real "Ku" é um prefixo presente em 21 países do citado continente, com acentuada semelhança ao "to" do infinitivo verbal do inglês, a exemplo: to speak - falar. Um exemplo real do "Ku": ku.babata - tatear.

Cinema, via de regra, tateia entre o real e o imaginário ora com elegância e inspiração, ora não. Mas quando desabrocha a contendo fornece pistas de um e outro e nos leva a cândidas ruminações.

Luc Besson, na sua última estrepolia (2014), "Lucy", um misto de Iogananda e Tarantino, estrelado pela competente Scarlett Johansson, coloca nos lábios da personagem Lucy pérolas e mais pérolas da altíssima Filosofia Perene com distorções ao sabor do entretenimento. O grande trunfo de Luc nessa salada real&imaginária foi explorar com profissionalismo estarrecedor de grande cineasta certo timbre de voz e olhar da Scarlett "Lucy" no correr da trama. A moça, intoxicada a revelia com uma nova droga, ativa em 24 hs o mitológico potencial de 100% da utilização do cérebro, o que lhe confere um saber, percepção e poder ainda fora de cogitação para 99,9% da população mundial. O roteiro de Besson fala em cérebro, crença popularesca, já que a real mesmo está no DNA, e mestres como Kryon, noutras palavras, Grandioso Ser que nos assiste desde a Convergência Harmônica (1987) através de palestras ao redor do globo, nos diz sem floreios que chegaremos todos no
estado de "Lucy" e que considerável parte dos terráqueos está prestes aos 44%. O que falta no filme é o Divino, como o próprio Iogananda, jamais alheio a Superconsciencia, aliás, íntimo dela. Numa das pontas desta estrela cinematográfica temos Morgan Freeman fazendo um professor veterano cuja obra acadêmica especula sobre os 100%. Ele e "Lucy" irão se encontrar, como cabe a um bom enredo. Ela não sabe o que fazer. Ele muito menos, e aconselha - passed it on. Então explica que no início da vida, a primeira célula se dividiu, ocasionando assim 2 células. Ocorreu aí uma transmissão de conhecimento. E nesse ato se resume tudo.

Isso é real.

Anos e anos depois de ter co-criado a primeira irmandade de auto-ajuda do mundo, hoje com cerca de 4 milhões de membros, Bill W., num encontro casual com mais um dos beneficiados do seu programa 12 Passos, que queria muito agradece-lo, recebeu com alegria o abraço do novato e retrucou: passed it on. Passe adiante, leve adiante essa mensagem.

Ficaríamos horas, dias, semanas e meses, senão anos, falando do real e do imaginário, seja numa viela induzida pela arte, noutra pelo que supomos que seja a realidade. Tanto numa como noutra, queremos acima de tudo ser inspirados, preenchidos, quiçá, iluminados. Olhando por esse ângulo, tais predicados almejam nobreza de espírito.

O nosso saudoso Gonzaguinha emplacou um hit como há muito não se vê, onde parte do refrão dizia: "A gente quer viver uma nação. A gente quer é ser um cidadão".

Até que ponto, independente da arte, a aspiração embutida nesse refrão pode ser considerada imaginária?

Quando Jimmy Carter deu adeus ao seu mandato, sua artilharia verbal foi do seguinte naipe: "Entrego as responsabilidades oficiais que assumi neste cargo e reassumo o único título da nossa democracia que tem valor maior do que o de presidente — o título de cidadão”.

Isso é tão real quanto as vítimas da violência no Brasil cujos números assustadores, progressivos, acontecem sob a indiferença do Estado. Cerca de 60 mil pessoas por ano. Não acho de todo inverossímil pensar num Estado que mata dando as costas.

O imaginário da pena de morte nos Estados Unidos tem inumeráveis prateleiras de filmes. Na realidade, fazendo uma pesquisa rápida pelo ângulo nobreza de espírito, se tanto, Woodrow Wilson concedeu cerca de 344 atos de clemência por ano. Calvin Coolidge, 326. Roosevelt, mais de 300. Juntos somam um total de 3.687. Ainda que os números desta, digamos, generosidade, não sejam de todo (ou nenhum pouco?) concernentes a pena capital, durante 40 anos os presidentes exercitaram o seu poder, conforme a constituição, aliviando sentenças rigorosas. Os presidentes recentes, (recentes para trás de 2006), tem uma média de 40, 20 e 7 perdões ao ano. Aparentemente, o processo de perdão tornou-se mais complicado.

No universo proposto onde se fala o idioma "Ku", existe, não sei se real ou imaginário, certa tribo na África central que, quando acontece um homicídio, decorre-se um ano até seu julgamento, que consiste basicamente numa festividade onde o réu é condenado a ser jogado no rio, com pedras amarradas ao corpo, para que afunde. A vírgula nesse trâmite fica por conta do ou dos familiares da vítima. Eles podem se jogar no rio e salvar o assassino. Existe essa opção, bem como existe a crença de que se o réu morrer, a justiça será feita, mas se for poupado, a paz reinará nos corações dos magnânimos.



(Imagem: Paul Klee. Apresentando o Milagre, 1916)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 10/09/2015
Reeditado em 12/07/2020
Código do texto: T5376808
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