"ALITERANDO o saco do CHICO"

No texto que ontem publicamos, sobre Figuras e Vícios de linguagem há menção, exemplificativa de aliteração, do verso: “esPerando, Parada , Pregada na Pedra do Porto”, que nos indagaram acerca da autoria.

Esse é um dos versos da música "Minha História", do Chico Buarque (composição Lúcio Dalla / Paola Pallottino), cuja letra trasncrevermos, a seguir, para comentá-la:

“Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar

Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar

Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente

E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente

Ele assim como veio partiu não se sabe prá onde

E deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe

EsPerando, Parada, Pregada na Pedra do Porto (1)

Com seu único (E) velho vestido, cada dia mais curto (2)

Quando enfim eu nasci, minha mãe embrulhou-me num manto

Me vestiu como se eu fosse assim uma espécie de santo

Mas por não se lembrar de acalantos, a pobre mulher

Me ninava cantando cantigas de cabaré, laiá, laiá, laiá, laiá

Minha mãe não tardou alertar toda a vizinhança

A mostrar que ali estava bem mais que uma simples criança

E não sei bem se por ironia ou se por amor

Resolveu me chamar com o nome do Nosso Senhor, laiá, laiá, laiá,laiá

Minha história e esse nome que ainda carrego comigo

Quando vou bar em bar, viro a mesa, berro, bebo e brigo (3)

Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz

Me conhecem só pelo meu nome de menino Jesus, laiá, laiá

Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz

Me conhecem só pelo meu nome de menino Jesus"

(1) o verso utiliza cinco vezes a letra P, coferindo um belíssimo efeito sonoro.

(2) esse verso retrata com singular sutileza a gravidez da mãe ficta.

(3) aqui, também, a aliteração, com o emprego de quatro vezes a letra “b”.

(E) uma elipse do conectivo "e", com isso o sentido não é de "único vestido velho" e sim, de "vestido único e velho"... reforçando a idéia da modestia (ou modéstia) da personagem.

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Aliás, a obra do Chico Buarque é rica em preciosismos de gramática e de lingüistica, como no caso da letra da música “Construção” (de 1971, referência estilística estudada em muitos cursos de Letras), em que todos os versos terminam com proparoxítonas (e nas segunda e terceira partes reutiliza os mesmos verbetes terminativos dos versos, alterando o sentido dos versos da primeira parte):

"Morreu na contramão atrapalhando o TRÁFEGO"

"Morreu na contramão atrapalhando o PÚBLICO"

"Morreu na contramão atrapalhando o SÁBADO"

Transcrevo-a, por inteiro, que é simplesmente, MÁGICA!:

“Amou daquela vez como se fosse a ÚLTIMA

Beijou sua mulher como se fosse a última

E cada filho seu como se fosse o único

E atravessou a rua com seu passo tímido

Subiu a construção como se fosse máquina

Ergueu no patamar quatro paredes sólidas

Tijolo com tijolo num desenho mágico

Seus olhos embotados de cimento e lágrima

Sentou pra descansar como se fosse sábado

Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe

Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago

Dançou e gargalhou como se ouvisse música

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado

E flutuou no ar como se fosse um pássaro

E se acabou no chão feito um pacote flácido

Agonizou no meio do passeio público

Morreu na contramão atrapalhando o TRÁFEGO

Amou daquela vez como se fosse o ÚLTIMO

Beijou sua mulher como se fosse a única

E cada filho seu como se fosse o pródigo

E atravessou a rua com seu passo bêbado

Subiu a construção como se fosse sólido

Ergueu no patamar quatro paredes mágicas

Tijolo com tijolo num desenho lógico

Seus olhos embotados de cimento e tráfego

Sentou pra descansar como se fosse um príncipe

Comeu feijão com arroz como se fosse máquina

Dançou e gargalhou como se fosse o próximo

E tropeçou no céu como se ouvisse música

E flutuou no ar como se fosse sábado

E se acabou no chão feito um pacote tímido

Agonizou no meio do passeio náufrago

Morreu na contramão atrapalhando o PÚBLICO

Amou daquela vez como se fosse MÁQUINA

Beijou sua mulher como se fosse lógico

Ergueu no patamar quatro paredes flácidas

Sentou pra descansar como se fosse um pássaro

E flutuou no ar como se fosse um príncipe

E se acabou no chão feito um pacote bêbado

Morreu na contramão atrapalhando o SÁBADO"

Lobo da Madrugada
Enviado por Lobo da Madrugada em 28/06/2007
Reeditado em 28/06/2007
Código do texto: T544588
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