Sobre mobilidade urbana e fragmentação espacial: breve relato sobre a reconfiguração da paisagem urbana a partir da instalação do monotrilho paulistano

Texto apresentado na 4ª Conferência do PNUM Morfologia Urbana e os Desafios da Urbanidade Brasília, 25 e 26 de junho de 2015

Carlos A. Kogl

FIAMFAAM Centro Universitário.

Avenida Liberdade, 749, 7º andar, São Paulo, SP, Braisl. Telefone: 55 11 996554994

kogl@uol.com.br

Resumo

A transformação das cidades e seus diversos bairros é resultado da sedimentação dos diversos acontecimentos e dos momentos culturais. Acrescento as influências políticas e econômicas, na medida em que, dependendo do dinheiro em caixa, as idéias são mais ou menos intensas (digamos assim) e o poder público está mais ou menos atento ao que se passa. O desenho urbano, advindo de cem anos de solidão e orfandade, resultou caótico e pouco afeito à ordem ou encaixe de um bairro (loteador) com outro. Assim surgiram as centenas de bairros ou vilas na cidade de São Paulo. A área objeto de estudo do impacto das recentes transformações é um fundo de vale com declividades que variam de 3 a 20 %, ladeada por bairros estritamente residenciais com boa arborização. A área pertence à Operação Urbana Água Espraiada (Lei 13260/2001). A retificação do córrego ocorreu por ocasião da construção da avenida jornalista Roberto Marinho e gerou uma série de ajustes nos loteamentos que resultaram em pequenas praças ao longo do trecho.

Palavras-chave

Espaços livres, forma urbana, desenho urbano, mobilidade urbana, sistema viário

Abstract

The transformation of cities and its various neighborhoods is the result of sedimentation of the various events and cultural moments. With political and economic influences, the government is more or less aware of what is going on in the real estate bussiness.Throughout the twentieth century the land developers, had great freedom in determining the final designs of vast areas of the city of São Paulo.Our study area of ​​the impact of recent changes is a valley bottom with slopes ranging 3-20%, flanked by strictly residential neighborhoods.

Keywords

Open spaces, urban design, urban mobility, road system

Introdução

Como resultado da trama entre as relações do homem com a natureza, acrescido da sedimentação de diversos acontecimentos culturais, históricos e a própria memória geológica, temos o que chamamos de cidade. As diversas ocupações, espontâneas ou planejadas, definem-se na longa duração, na constante recriação dos espaços e de seu preenchimento com múltiplos significados de modo a criar a memória coletiva do lugar.

Ocorre que as memórias e as práticas espaciais dos moradores da cidade não estão por toda parte, mas se concentram em territórios menores chamados de Bairros. Este ir e vir no espaço delimitado da cidade, ora circulando pelo espaço privado, ora pelo público é que delimita o território de cada um.

Ao longo do século XX os loteadores, senhores de glebas na área urbana e adjacências, tiveram grande liberdade para determinar o desenho final que dariam às ruas e quadras dos Bairros da cidade. As intervenções do Poder Público foram muitas vezes da complacência à cumplicidade explícita. Estas atitudes resultaram em desenhos caóticos com pouca harmonia entre um Bairro e outro e nenhuma qualidade no que concerne à distribuição das praças e áreas institucionais além de um traçado viário sem nenhuma referência senão a da topografia em muitas das vezes. As áreas lindeiras aos córregos acabaram relegadas ao segundo plano e somente na segunda metade do século XX é que a legislação colocou algum freio nos loteadores e sua infinita ganância (Lei Lehmann – Lei Federal 6766/79)

A área objeto do presente estudo, quase uma singela observação, é um fundo de vale no qual corre o córrego água espraiada, na zona sul da capital paulista. A geografia do entorno é de um território com declividades que variam de 3 a 20 por cento ocupada por Bairros estritamente residenciais.

Esta área pertence à Operação Urbana Água Espraiada (Lei Municipal13260/2001). E é justamente por conta desta Operação Urbana que o córrego foi retificado e recebeu em suas margens uma avenida larga de seis pistas no total hoje denominada Jornalista Roberto Marinho. Ao final desta avenida se encontra um dos novos cartões postais da cultura rodoviarista paulistana, a ponte Estaiada. A retificação do córrego gerou alguns pequenos espaços cujo destino “natural” foi sob a denominação de praça.

Aproveitando este mesmo traçado, da avenida Jornalista Roberto Marinho, está sendo providenciada a construção da Linha 17 (ouro) do Metro de São Paulo, o Monotrilho. Este Trem circulará pelo bairro a uma altura de 11 a 15 metros, sobre uma estrutura de vigas pré-moldadas ancoradas sobre colunas moldadas in loco. Pretende-se uma velocidade média de até 80 km/h na futura operação. No trecho do recorte haverá 7 km de linha com seis estações (que deveriam ter entrado em operação para a Copa de 2014) com previsão de operação para 2017.

Desenvolvimento

Visando uma leitura melhor da área objeto, verificamos que podíamos nos apoiar um pouco na teoria Muratoriana, na medida em que esta seria uma forma de observação cujo método poderia, no final, render frutos. Savério Muratori, professor italiano que dispensa apresentações mais demoradas conceituava a cidade como organismo vivo e entendia que a única forma verdadeiramente inovadora de planejar as cidades consistia na sua interpretação de acordo com a história de modo a evitar soluções extemporâneas ligadas a invenções individuais, a sue ver injustificadas. Com seus conceitos, Muratori entrou em rota de colisão com tudo e todos de seu tempo, especialmente Bruno Zevi. (CATALDI 2002)

FIGURA 1. Carta do IBGE de 1984

O levantamento da História desta área nos mostra que os loteamentos se iniciaram no final do século XIX – início do século XX quando a primeira Fazenda do local foi dividida. Com a falência dos loteadores originais, a Light and Power arrematou o acervo e colocou seus Bondes de modo que os mesmos passaram a cruzar a área praticamente em linha reta até Santo Amaro. Ao longo da Tramway foram surgindo as ocupações, dentre elas muitas chácaras e em 1935 o Bairro do Brooklin. (BLANES 2006)

Ao longo do córrego Água Espraiada, nas proximidades do Rio Pinheiros se fixaram imigrantes alemães, ingleses e norte-americanos, em sua maioria funcionários da Light, formando um Bairro de alto padrão com casas grandes e quintais arborizados. Nos lotes próximos à várzea, predominou a ocupação por parte de imigrantes portugueses cujo objetivo era a produção de hortaliças para revenda.

Após os anos 30, com a reversão do curso do Rio Pinheiros, foi necessária a construção da Usina Elevatória de Traição de modo que o regime das águas dos córregos da região, incluído o da àgua Espraiada foi bastante modificado. Para que estes cursos d água não sofressem com a elevação do nível do Rio Pinheiros, foi construído o chamado dreno do Brooklin fazendo com que os cursos desaguassem mais pra frente no Rio (Figura 2)

Na Figura 1 pode-se observar que o traçado das ruas e dos quarteirões sofre certa inconstância na região do córrego. Isto se deve, principalmente, por esta ocupação quase rural, de produção de hortaliças e, também, pelo regime de várzea da área que desencorajava sua ocupação. Há relatos de cheias de verão e até de pesca abundante na literatura.(BLANES, 2006)

FIGURA 2 . Carta Hipsométrica da Região

Com a acelerada urbanização dos anos que se seguiram, a partir da década de cinqüenta a região vive um adensamento incomum de modo que desaparecem rapidamente todos os vestígios de mata ciliar e vegetação nativa ao longo do córrego. Nos anos sessenta, com Prestes Maia Prefeito, o Governo do Estado resolve por em prática um grande projeto viário na região e inicia grandes desapropriações na área. Posteriormente, ao abandonar a empreita, o Governo faz o mesmo com

FIGURA 3 . Vista aérea das obras da avenida

as áreas que adquiriu ao longo do Água Espraiada de modo que estas extensas áreas acabaram ocupadas e invadidas formando grandes extensões de habitações subnormais. Esta situação perdurou até o final do século XX quando com a Operação Urbana já mencionada as habitações subnormais foram simplesmente demolidas e seus ocupantes dispersados pela periferia da cidade.(FIX, 2001)

Os habitantes das casas de alto valor e qualidade, anteriormente mencionadas, deram as costas para o córrego e seus vizinhos indesejados ao longo de várias décadas, cercando-se de altos muros e servindo-se de seus automóveis para circular pela cidade. Não houve na região nenhum uso do espaço público por parte desta população a não ser o de circular pela região ou de se servir do mesmo apenas para acessar as suas residências.

Na Figura 3 podemos ver as obras da avenida avançando sobre as habitações subnormais e a modificação substancial do traçado original do córrego. Coube ao Estado costurar as abas dos Bairros adjacentes como uma sutura em tecido putrefato uma vez que ao longo dos anos todo o esgoto produzido na região acabou lançado in natura nas águas do córrego vindo a matá-lo.

Este estado de coisas perdura até hoje, pois ao decidir pela construção do Monotrilho, o Estado não levou em conta o desenho dos Bairros adjacentes, sua topografia e história. Apenas e tão somente implantou a obra de proporções desastrosas em meio à avenida, para economizar desapropriações (o que não é de todo mau).

FIGURA 4. Vista do Monotrilho

Conclusões

Observou-se ao longo do processo, em diversas visitas ao local e análise de mapas, que os espaços livres públicos estão quase que em sua totalidade comprometidos com a circulação e que o pouco que assim não é, está desprovido de uso pelos moradores locais, mesmo quando denominado de praça. Há também uma nítida sensação de desconforto por parte de todos os usuários das vias envolvidas no processo pela absoluta desproporção do Monotrilho e de seus componentes já implantados (FIGURA 4). Ainda não vimos nenhuma Estação ou obras que remetam às mesmas, mesmo três anos após o início dos trabalhos e não temos nenhuma avaliação do que isto poderá representar quando em pleno funcionamento. Quais forças serão atraídas e como irão interagir entre si.

Além do desconforto e dos desvios gerados por uma obra deste porte, por um canteiro de obras linear de vários quilômetros de extensão, há a sutura feita pelo Monotrilho, gerando um quelóide urbano, uma situação que fará com que a população continue a dar as costas para o córrego que aprendeu a evitar ao longo das últimas seis décadas pelas questões sociais, de higiene e saúde, pelo mau cheiro e pela paisagem não desejada que se implantou no local com os aglomerados de habitações subnormais.

Ao não se levar em conta a história do local, ao não se atentar para a limpeza e despoluição do curso d água e, sobretudo, ao não se pensar o desenho da avenida e do Monotrilho para além da técnica pura e simples, perdeu-se a oportunidade de implantar naqueles Bairros um resgate de memória com espaços livres voltados ao lazer e ao congraçamento. Certamente um traçado que levasse em conta a memória afetiva e a representação desta no espaço seria bem vindo e mais agradável na costura dos Bairros e da Região.

Referências

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Ocirema Solrac
Enviado por Ocirema Solrac em 08/01/2016
Código do texto: T5504780
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