Dez Centavos, o Preço de Um Cliente.

Desde que me mudei para esta casa, há pouco mais de dez anos, sempre fui freguês assíduo e constante de um mercadinho das proximidades. Aliás, o único do pedaço. Todos os dias fazia lá pequenas despesas, tais como cigarros, coisas para a casa, leite e pão eventualmente, e outras miudezas importantes no dia a dia. Sempre levando em conta a comodidade de não precisar tirar o carro da garagem, dirigir por uns dois quilômetros de ida e volta e depois deixar o carro na rua ou tornar a guardá-lo.
Nunca devi nada ao mercadinho, nunca devi nada e sempre tive com os proprietários uma relação de cordialidade e simpatia.
Há alguns meses atrás, dois ou três, ia indo de carro ao banco sacar um dinheiro e meus cigarros acabaram. Enfiei a mão no bolso e vi que faltavam dez centavos para comprar um maço. Parei então no tal mercadinho, pedi um maço do “Derby” azul e disse ao dono que na volta pagaria o que faltava. Os dez centavos, ou seja, cinco por cento do valor do maço.
O cara pegou o maço de cigarros de volta e disse que “era lei da casa” não dar moleza para cigarros!!!
Achei que era brincadeira dele. Não acreditei que alguém cometesse a mesquinharia estúpida de negar um crédito de dez centavos a um cliente constante e diário! Mas ele negou e me ofereceu cigarro “picado”. Eu quase que lhe sugeri um lugar para enfiar seu cigarro “picado”, mas agüentei calado.
Fui até a lotérica, fiz um saque e voltei ao mercadinho.
- Cinco “Derbys” azuis, por favor.
- Cinco?
- É isso mesmo, senhor. Cinco maços. Faço questão de lhe comprar os últimos maços de cigarro, cinco maços de uma vez, apenas para não lhe dar a impressão de que fui comprar cigarros picados em outro lugar. E também pra lhe dizer que se alguém de minha casa puser os pés aqui arranjará uma briga feia comigo. Se é lei da sua casa não dar moleza pra compra de cigarros, na minha casa a lei é não dar lucro pra gente mesquinha, seu comerciante de merda.
Há meses que ninguém de minha casa entra lá. E não vamos mais entrar nem que a vaca tussa. Por causa de dez centavos o miserável mesquinho perdeu um bom cliente e, como uma boa parte dos comerciantes do bairro, fez com que eu me lembrasse, pela milésima vez, quando fui comerciante em Santos, o que conto a seguir.

Recém desquitado, com vontade de mudar totalmente de vida, mudei-me para Santos e passado um tempinho acabei comprando um bar e restaurante bem em frente à minha casa. Um ramo que eu desconhecia totalmente, absolutamente diferente de tudo que eu já fizera até então.
Um dia chegou ao meu bar um senhor com uma nota de cinqüenta cruzeiros na mão e perguntou se eu poderia daquela nota cobrar um isqueiro ou caixa de fósforos. Eu disse que não, mas que não seria por causa disso que ele deixaria de levar o isqueiro ou a caixa de fósforos. Que levasse e me pagasse em outra hora. O homem abriu um sorrisão enorme e comentou:
- Amigo! Que diferença! O seu concorrente aqui ao lado me destratou pra valer dizendo que era golpe meu pra trocar o dinheiro. O cara xingou até minha mãe, amigo! E você, na maior simpatia, me oferece pra levar o que quero sem nunca ter me visto antes...Diga-me uma coisa: você serve almoço e janta?
-Sirvo almoço, janta, café da manhã, café da tarde e o que mais o cliente quiser. Desde que não seja ilegal...
Nós dois rimos e ele explicou o motivo da pergunta:
- Eu estou aqui em Santos com uma turma de trinta e sete pessoas, entre adultos e crianças, e estamos hospedados naquele hotelzinho ali em frente. Acontece que eles não servem nada. Só oferecem camas e banho. Dá pra você servir as refeições pra turma toda? Nós vamos ficar de domingo a domingo. Como é que você quer o acerto?
- Mande a turma aí e depois a gente combina. E se eles não gostarem do que servimos? Melhor experimentar primeiro, o senhor não acha?
Minha cozinheira, uma maluca indescritível que já havia sido empregada de todos os seis filhos de minha mãe, era divina com as panelas e aquela turma de Ribeiro Preto adorou a comida.
Trinta e sete cafés da manhã por dia. Trinta e sete almoços por dia. Trinta e sete jantares por dia. Muitas dezenas de cervejas, refrigerantes e salgadinhos por dia. Ou seja: só de refeições 7 x 74= 518 em uma semana. Sem contar o volumoso restante.
A turma de Ribeirão Preto acertou comigo quase que na hora do ônibus partir.
Levaram-me um respeitável pacotão de dinheiro, deram boas gorjetas aos meus dois funcionários, despedimos-nos e eu fui dar uma descansada em casa e perdi a bagunça que fizeram em frente ao meu bar na hora de ir embora, buzinando e cantando em homenagem a mim e ao meu estabelecimento.
Quando voltei, à tarde, meu concorrente ao lado veio me perguntar o que fora aquela bagunça em frente à minha porta e eu contei o que minha cozinheira me relatara para minha grande satisfação.
-Maurão, era uma turma de Ribeirão Preto. Trinta e sete pessoas que almoçaram, jantaram, beberam e gastaram adoidado desde o domingo passado até hoje.
-E como é que eles ficaram sabendo do seu estabelecimento?
-Foi você quem os mandou pra mim. Obrigadão, viu?
-Vê lá se eu ia indicar concorrente...Até parece...
-Mandou sim, Maurão. O homem que você destratou porquê quis comprar uma caixa de fósforos com uma nota de cinqüenta era o organizador da viagem deles. Você, com essa sua famosa “delicadeza”, chutou o cara em direção ao meu humilde bar e restaurante “Aurora”. Assoprou pra mim o bilhete premiado.
“Maurões” eu tenho encontrado aos montes no comércio de São Paulo. Tenho encontrado-os na figura dos donos de bares e outros estabelecimentos que apagam metade das luzes para economizar, naqueles que colocam placas avisando que não emprestam fósforos nem isqueiros, que só os vendem, naqueles que vendem empadinhas de farinha quase pura, naqueles que destratam seus empregados na frente da freguesia, naqueles que trabalham com roupas sujas e barba por fazer, naqueles que põem as patas sujas nos salgadinhos que vão vender e, principalmente, naqueles que perdem bons fregueses por causa de dez centavos, não é, Pedro Mesquinho?
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 05/07/2007
Reeditado em 24/07/2007
Código do texto: T552891
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