A LEITURA COMO INCLUSÃO SOCIAL:

Em artigo publicado no jornal A Toga, Porto Alegre, abril de 1967, Flávio Aguiar assim escreveu: “Um estudo da arte contemporânea conduzirá fatalmente a um de seus pontos mais críticos: o hiato existente entre a arte e a grande massa da população”. Passados mais de 30 anos dessa análise, olhamos para a sociedade brasileira e constatamos que o hiato não se transformou em ditongo. A analogia pode ser improvável do ponto de vista gramatical, mas é tão provável quanto necessário do ponto de vista social, se quisermos ter seres humanos menos brutalizados.

Em sociedades como a nossa, cujos traços característicos são a exclusão e o autoritarismo, as oportunidades culturais não chegam de igual forma a todas as camadas sociais. E de maneira mais difícil a literatura, por se tratar de arte escrita e que conta com o poder de uma boa imaginação, sem ter a seu favor o recurso da imagem, da cor e outros.

Isso tudo não acontece em um contexto isolado. Desde a colonização sofremos um processo cruel de segregação das camadas sociais, o qual permitiu (e ainda permite) a alguns, não só o acesso, mas a detenção dos produtos culturais eruditos, e legou a outros, de maneira tirânica, apenas uma parte da cultura, a qual chamou pejorativamente de popular.

Alguns teóricos, como Antonio Candido, dizem que as camadas populares não lêem os clássicos porque não têm oportunidade de tê-los nas mãos. E mais, que “A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apóia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas” (CANDIDO, 1995). Assim, a literatura propicia vivenciarmos e debatermos o nosso tempo, à luz de vivências anteriores, buscando explicações nem sempre possíveis. Como explicar, por exemplo, as chacinas colonialistas que dizimaram nações indígenas inteiras? Com quais explicações justificar a escravidão negra? É possível termos uma dimensão aproximada do holocausto? Do Napalm jogado sobre as florestas do Vietnã? Dos estupros, dos choques, das unhas arrancadas nos porões da ditadura? Mas há algo na literatura que possibilita o choque e a reação: o efeito estético. Aqui, evocamos novamente Antonio Candido, “... nas mãos do leitor o livro pode ser fator de perturbação e mesmo de risco”.

Foi por perceber tal “periculosidade” que a parte da sociedade que detém o conhecimento erudito sempre procurou afastar as camadas populares do contato com as obras de arte literária. Pois o livro, enquanto representação artística possui a propriedade de sensibilizar, gerar conflitos e desencadear reações. Por isso, “Ao reinventar, simular, imaginar, construir o real, a produção literária gera, determinadas vezes, um conhecimento particular e que contribui para o desvendamento da essência mesma do processo histórico brasileiro.” , (SEGATTO, 1999: 219). É esse desvendamento que torna o livro perigoso. Então, a solução é não permitir que objeto tão ameaçador circule livremente nas mãos de babás, mecânicos, garis, encanadores, pedreiros, garçonetes e toda a sorte de gente que faz parte das chamadas camadas populares.

Ainda segundo Antonio Candido, quando nos apropriamos da poderosa força da palavra organizada, nos tornamos mais capazes de ordenar nossa mente e sentimentos; e, conseqüentemente, mais capazes de organizar a visão de mundo que temos. Atrevo-me a acrescentar um vocábulo e mais: verbalizar. Sim, pois apropriados do instrumento que facilita nossa ordenação mental e nossa visão de mundo podemos, com maior habilidade e clareza, verbalizar impressões, externar opiniões e tomar posicionamentos. Assim, torna-se possível transformar as informações em conhecimento através da elaboração, porque os sentimentos passam de um estado emotivo para um estado de construção, funcionando como mola propulsora para o querer mais.

Então, as pessoas que nunca leram Dante, Shakespeare, Zola, Fernando Pessoa ou Machado de Assis, quando têm oportunidade de tê-los nas mãos, manuseá-los e efetuar sua leitura, encantam-se com esse algo nunca visto. É que o poder da fruição pode ser alcançado por qualquer ser humano, independentemente do nível social.

A fascinação exercida pelo texto literário é tão impactante quanto a constatação do processo excludente das camadas populares. Ao longo da nossa história somente foi permitido o acesso da população segregada a uma parcela mínima da cultura, pois a mesma, sem acesso aos bens materiais necessários para a sobrevivência, precisa abandonar os bens espirituais para prover o sustento do dia a dia.

O acesso aos diferentes níveis de cultura possibilita confrontar pontos de vista distintos e estabelecer critérios que mantêm ou rompem com aquilo que está estabelecido, mas que de qualquer forma proporciona a multiplicidade de idéias. Do ponto de vista autoritário isto é muito perigoso porque faz pensar e questionar a estratificação social, levando os indivíduos a buscarem soluções coletivas. Nesse processo, ler ou não ler faz a diferença para a mudança da sociedade. Preterir as camadas populares é manter e justificar uma separação iníqua.

A realidade criada ou recriada, inventada ou reinventada artisticamente, tem a propriedade de impressionar por meio de imagens sensíveis e essa sensibilização conduz a reflexões decisivas sobre conceitos de ética e consciência, inclusive com respeito à capacidade de recepção e produção das camadas populares.

Experimentar a linguagem literária precisa passar pela vivência concreta do/a leitor/a, precisa dar prazer, despertar o lúdico e, através da fruição, provocar a construção e destruição do texto. É preciso ler e fazer literatura para silenciar os silêncios. Ou como escreveu Ezequiel Theodoro da Silva (1990), “Há que se ler literatura para romper o silêncio, desentrevando, azeitando e retro-alimentando os sentimentos e a inteligência do mundo. A fruição de um bom romance é como a produção de uma escultura em mármore: trans-forma, fica.”

Como foi dito anteriormente, ler ou não ler faz a diferença, pois é na relação dialética de construir e destruir que o/a leitor/a faz seus acréscimos e é acrescido. A lógica da hermenêutica funciona. E muito bem, obrigada.

“Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável”, (CANDIDO, 1995: 263). Privar as camadas populares do acesso aos clássicos e às leituras polêmicas é uma atitude violenta, autoritária e prepotente, pois pressupõe a supremacia de uma parte da sociedade sobre a outra. O que faz com que a grande massa não leia, não é a incapacidade, é a privação. Portanto, é de um cinismo atroz dizer que pobre tem de ler “água com açúcar” porque, coitado! Não consegue entender, por mais que se esforce. Aqui, aproprio-me das palavras proferidas por Oded Grajew, presidente da Cives, por ocasião de sua conferência durante o 1º Fórum Social Mundial em Porto Alegre: “Se nós não acreditarmos que é possível transformar o mundo através das nossas atitudes, então podemos encerrar o Fórum porque outro mundo não é possível”.

A propósito, e para concluir, a revista Caros amigos – literatura marginal – ato II publicou um texto intitulado Uma carta em construção, escrita por José Rocha Albuquerque, do qual transcrevo os primeiros parágrafos.

Há algum tempo escrevo poemas com as mesmas mãos com que trabalho de ajudante de pedreiro.

Pra muita gente pode parecer exótico, pode parecer surreal. Mas o que tem de estranho? Pobre não tem sensibilidade? Não pode escrever, desenhar, pintar, interpretar?

Ousar! Esta é a palavra. Sensibilidade não escolhe proveniência social. Negar às camadas populares o direito à inclusão através da leitura é negar às pessoas a condição de seres de vontade, instigadas pelos fenômenos da vida, é privá-las do acesso à apropriação da palavra como construção da identidade.