O Mulato em Nossa História

INTRODUÇÃO

Discorrer sobre mulatos no Brasil é mais um esforço para acrescentar ao nosso trabalho, titulado “Mestiçagem em Preto e Branco” que, juntamente com o anterior, “Matriz Brasil”, tentou expor nossas origens: o índio, o primeiro a povoar essas terras; o europeu, representado principalmente pelo português, o descobridor e colonizador; e o negro africano, chegado aqui de forma compulsória, pelo tráfico de escravos.

Ou seja, com esses dois trabalhos “Matriz Brasil” e “Mestiçagem em Preto e Branco” tivemos a ambiciosa intensão de colaborar com os brasileiros que se perguntam de onde viemos e porque somos esse povo diverso?

Mais uma vez, para reduzir a extensão do artigo, visto o tema pretendido, resolvemos dividi-lo neste, “O Termo Mulato em Nossa História”; “O Mulato na Hierarquia Social”; “Galeria de Mulatos Ilustres”; e “O Mulato Com O Desenvolvimento Da Genética”.

Os três primeiros tentarão tratar seus objetos discorrendo-se, sempre que possível em forma cronológica, pois foi o tempo o elemento transformador daquele momento inicial, o período colonial.

Neste artigo a intenção é trazer elementos que demonstrem o entendimento e sua alteração sobre os mulatos no Brasil. Para tal: daremos significado do verbete mulato; as primeiras caracterizações e sua diferença ao termo pardo no período colonial; e ilustraremos com algumas referências sobre mulatos e mestiçagem.

Assim, aquele mulato do período colonial, facilmente identificado como resultado do relacionamento entre o branco europeu e a escrava negra, foi nesses mais de cinco séculos diversificando-se em termos de características raciais.

Além disso, as mudanças de Colônia para Sede do Reino, para Império e para República, a Declaração de Direitos Humanos, bem como o surgimento do Darwinismo e o consequente salto na Biologia, bem como, mais recentemente, a Genética trouxeram novo entendimento sobre espécie, raça e etnia e, certamente, implicarão em grandes alterações no entendimento sobre o que sejam os mulatos nessa nova e evolucionária realidade.

O TERMO MULATO

Designação de pessoa que é descendente de europeus brancos e negros africanos, ou cujas características físicas correspondem a essa mistura.

O termo mulato vem das palavras em espanhol e em português para mula, que por sua vez, baseiam-se no termo em latim mulus, para o mesmo animal. A mula resulta do cruzamento entre cavalo com a burra, ou entre jumento com égua. Associaram à mistura de raças e, como mulato, passou a denominar o filho da mistura entre branco e o negro.

Entretanto, além desse significado, durante o período que antecedeu a 1824, data da criação da primeira Constituição do Império do Brasil, o termo mulato servia, também, para designar uma casta de gente.

Antes dessa data, o estatuto de organização legal das pessoas era baseado na noção de nobres e não nobres. Essa forma de organização preconizava que as pessoas se dividiam em nobres e plebeus, ou peões. Assim, antes de 1824, de modo geral, os mulatos pertenciam à categoria dos peões.

A partir de 1824, na primeira Constituição, as pessoas foram reunidas juridicamente em categoria única, a dos cidadãos. Desse modo, após 1824, o estudo dos mulatos deve ser diferenciado daquele referente aos séculos XVI, XVII e XVIII.

AS PRIMEIRAS CARACTERIZAÇÕES DOS MULATOS

ILUSTRAÇÕES DISCURSIVAS

Os historiadores, com suas pesquisas em fontes primárias, indicam que documentos permitem afirmar o quanto as menções aos mulatos até a terceira década do século XVII (1630) não possuíam dados que os podiam caracterizar. Somente a partir dessa data, começou aparecer discursos com caracterização específica dos mulatos.

O uso dos termos pardo e mulato remonta à primeira visitação do Santo Oficio às partes do Brasil (Bahia e Pernambuco), entre 1591 e 1595. Contudo, não ultrapassava a mera constatação dos tipos mistos, dos filhos de branco com negro:

Confissão de Manuel de Leão, cristão velho, na graça 7 de fevereiro de 1594. Disse ser cristão velho, natural de Alcácer do Sal, do Arcebispado de Évora, filho de Francisco Gil, homem branco que vivia por sua fazenda e de sua mulher Isabel Leça, mulher parda...

Confissão de Boaventura Dias, mulato, cristão velho, na graça 10 de dezembro de 1594. Disse ser homem pardo, natural de Lisboa, filho de Diogo Dias, homem branco, cristão velho, e de Clara de Sousa, negra de Guiné...

Lá pelos idos de 1660, Gregório Matos, advogado e poeta baiano, cujo apelido “Boca do Inferno” dispensa outros comentários, é considerado iniciador dessa outra série de discursos com características específicas dos mulatos.

O escrito de Matos satiriza a vida na metrópole baiana em muitos de seus aspectos. Os mulatos, em especial, são alvo do, então conhecido “Boca do Inferno”. Para Matos, os mulatos invertiam a ordem natural das coisas e governavam a quem deveria governá-los.

Nem tão pouco poupa as mulatas. Um de seus versos do cotidiano baiano é dedicado à contenda de certo capitão Domingos Cardozo, apelidado de mangará, que havia prendido duas mulatas – mãe e filha – pelo roubo de um papagaio, sendo uma delas, de acordo com o poeta, amante do próprio capitão.

Fácil observar que algumas características já são indicadas e, nos dois casos, nada abonadoras.

Vamos explorar um pouco mais essa caracterização dos mulatos, a seguir, onde os termos: mulato e pardo, que deveriam ser sinônimos e relacionados ao mesmo tipo, contêm diferenças, quando observadas as características destinadas a cada um.

MULATO NÃO ERA PARDO NA COLÔNIA

Os historiadores fazem suas pesquisas nas denominadas fontes primárias que, no caso foram: consultas, representações, cartas, ofícios e requerimentos, versando sobre os mais variados temas, provenientes de diferentes capitanias e cobrindo, de modo geral, todo o período colonial.

Ao observar esses documentos, concluíram que as menções com o termo mulato continham alusão exclusivamente a ações e comportamentos desabonadores. Todas elas fazem coro à opinião na época, de que os mulatos não eram pessoas merecedoras, ou dignas de confiança.

Entretanto, observando as menções com o termo pardo, concluíram o oposto. Ou seja, quando as situações poderiam ser classificadas como abonadoras então o termo utilizado era o pardo. Assim como nos documentos, a mesma tendência ocorria nos escritos acadêmicos.

Outra conclusão é a de que o vocábulo pardo era usado, preferencialmente, naquilo que se poderia chamar de documentação oficial ou formal. É o caso dos documentos que trazem informações relativas aos corpos militares e às irmandades religiosas.

Assim, os filhos de brancos com negros que se comportavam de modo reprovável eram denominados simplesmente mulatos, enquanto aqueles que se comportavam de modo tido como digno eram denominados de pardos. Ou seja, mulato e pardo eram diferentes tipos sociais.

Nesse contexto não se fazia diferenças de gênero. Os registros sobre as mulatas da maioria dos autores que discorreram nesse período, apesar de a relacionarem ao trabalho, também as faziam promovedoras da luxúria e da lascívia. Aqui cabe acrescentar que, naquela época, a descendência escrava trazia grandes dificuldades, inclusive o impedimento ao casamento legítimo.

REFERÊNCIAS HISTORIOGRÁFICAS

Nada melhor para termos ideia das formas de ver o mulato em nossa história do que a citação de referências historiográficas representativas:

ANDRÉ JOÃO ANTONIL (Giovanni Antonio Andreroni) – 1649-1716 - poeta e jesuíta italiano:

“melhores ainda são, para qualquer ofício, os mulatos; porém, muitos deles, usando mal do favor dos senhores, são soberbos e viciosos, e prezam-se de valentes, aparelhados para qualquer desaforo.”;

“bom é valer-se de suas habilidades quando quiserem usar bem delas, como assim o fazem alguns; porém não se lhes há de dar tanto a mão que peguem no braço, e de escravos se façam senhores”;

“e, contudo, eles e elas da mesma cor, ordinariamente levam no Brasil a melhor sorte; porque, com aquela parte de sangue de brancos que têm nas veias e, talvez, dos seus mesmos senhores, os enfeitiçam de tal maneira, que alguns tudo lhes sofrem, tudo lhes perdoam; e parece que se não atrevem a repreendê-los: antes, todos os mimos são seus”;

“forrar mulatas desinquietas é perdição manifesta, porque o dinheiro que dão para se livrarem raras vezes sai de outras minas que dos seus mesmos corpos, com repetidos pecados; e, depois de forras, continuam a ser ruína de muitos”.

JEAN BAPTISTE DEBRET – 1768 – 1848 – pintor, desenhista e professor francês.

O artista dedicou atenção especial aos mulatos:

reconheceu sua superioridade resultante da robustez de sua compleição física e da inteligência herdada da raça branca, o que lhe garantiria “vantagens físicas e morais que o colocam acima do negro”. “A mistura levaria os brasileiros a alcançar graus mais elevados de progresso”;

observou dos mulatos o talento para toda sorte de ofício, qualidade valorizada pelos brancos e que lhes garantia maiores oportunidades, inclusive de libertação da escravidão;

constatou que, nas principais cidades do Império, inúmeros mulatos já se encontravam gozando da estima geral que conquistaram com o seu êxito nas ciências e nas artes, na medicina ou na música, nas matemáticas ou na poesia, na cirurgia ou na pintura.

As ideias de Debret tem forte influência do Iluminismo e encoraja um futuro radicalmente brasileiro.

CARL FRIEDRICH PHILIPP VON MARTIUS – 1794-1868 – médico, botânico, antropólogo, alemão. Dedicou-se a pesquisar o Brasil, em especial a Amazônia:

afirmou que a história do Brasil deveria ser centralizada no imperador, privilegiando a “raça” branca e enfatizando a unidade em meio à variedade dos usos e costumes, dos climas, das atividades econômicas, das raças e da extensão territorial;

aconselhou que a mestiçagem deveria ficar como formação de “cunho muito particular”, a partir da qual, mal ou bem, deveria ser constituído um discurso que, de algum modo, compensasse a “concorrência dessas raças inferiores”.

As opiniões de Von Martius e os preconceitos nelas encontrados são fruto do século XIX, época em que ideias de eugenia predominavam no mundo civilizado. Sugere a evocação do passado lusitano como paradigma histórico à sociedade brasileira.

RAIMUNDO NINA RODRIGUES – 1862 – 1906 – médico legista, psiquiatra, antropólogo, professor, Brasileiro:

em sua obra “Os africanos no Brasil” : “Raça Negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços à nossa, […] há de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo”; "Para dar-lhe [a escravidão] esta feição impressionante foi necessário ou conveniente emprestar ao negro a organização psíquica dos povos brancos mais cultos (…) O sentimento nobilíssimo de simpatia e piedade, ampliado nas proporções duma avalanche enorme na sugestão coletiva de todo um povo, ao negro havia conferido (…) qualidades, sentimentos, dotes morais ou ideias que ele não tinha e que não podia ter; e naquela emergência não havia que apelar de tal sentença, pois a exaltação sentimental não dava tempo nem calma para reflexões e raciocínios";

o jovem doutor mulato em várias de suas publicações, “Mestiçagem, Degenerescência e Crime”; "Antropologia patológica: os mestiços", e "Degenerescência física e mental entre os mestiços nas terras quentes" desenvolve teses que colocam a miscigenação como fator de degeneração genética e social dos brasileiros.

Nina Rodrigues defendeu ideias que hoje podem ser qualificadas como racistas, mas, à época, eram consideradas científicas e avançadas. Ele foi fortemente influenciado pelas teses de eugenia, pelo desenvolvimento científico da Biologia e pelas ideias do criminologista italiano Cesare Lombroso.

MANOEL JOSÉ BONFIM – 1868-1932 – médico, psicólogo, pedagogo, sociólogo, brasileiro.

No fim do século XIX, uma das ideias com força intelectual era que a composição multirracial era obstáculo para a formação da nação. A grande questão estava colocada: poderá existir uma nação onde a população é constituída predominantemente por negros, índios e mestiços?

Esta teoria da desigualdade inata das raças, defendidas por Gobineau e Gustave Le Bon e adotada por uma parcela considerável dos intelectuais brasileiros, acabou tendo influência dominante no pensamento social e político do Brasil, principalmente porque, supostamente, eivada em dados científicos.

Ao contrário da maioria dos seus contemporâneos, o pensamento de Bonfim é inovador, “um pensador rebelde” e humanista. Denunciou o chamado racismo científico, negou a validade científica das teorias racistas em voga e defendeu a miscigenação que ocorreu historicamente no Brasil.

Para Manoel Bonfim, a ideia de progresso estava intrinsecamente ligada à educação.

MÁRIO DE ANDRADE - Mário Raul de Moraes Andrade - 1893 —1945 poeta, escritor, crítico literário, musicólogo, folclorista, ensaísta brasileiro:

Afirmou sobre mulatos que “não eram nem melhores nem piores que os brancos portugueses ou negros africanos. O que eles estavam é numa situação particular, desclassificados por não terem raça. Nem eram negros sob o bacalhau escravocrata, nem brancos mandões de donos”;

indicou o valor da miscigenação como potencial do Brasil: “como nação capaz de contribuir com originalidade para o conjunto da cultura universal, e na certeza de que o país só poderia ser capaz de dar conta deste propósito caso se voltasse para si mesmo à procura de seus valores”.

Em sua obra “O Aleijadinho” desenvolveu uma ideia de “mulatismo” peculiar por estar abertamente associada à ideia mais ampla de nacionalidade. Ideia que se aliava ao modernismo em curso.

Como para demonstrar o potencial gerado pela miscigenação, Mário de Andrade enumera vários dos mulatos que, da metade do século XVIII em diante, deixaram contribuições culturais inestimáveis como foi o caso dos musicistas Caldas Barbosa e José Maurício, do pintor José Joaquim da Rocha e do célebre Mestre Valentim.

De fato, no campo da Arte, a modernização através da Semana de 1922 viria, num primeiro momento, confirmar a inicial disposição de incorporar a miscigenação como o “grande caráter nacional”, reabilitando a confiança na capacidade social e intelectual do mulato.

GILBERTO FREYRE - Gilberto de Mello Freyre – 1900-1987 – escritor, poeta, jornalista, pintor, considerado o maior sociólogo do Brasil:

reconheceu o africano aqui introduzido pelo colonizador português como partícipe ativo, talvez “o maior e mais plástico colaborador do branco na obra de colonização agrária”;

rechaçou as doutrinas racistas de branqueamento do Brasil. Baseado em Franz Boas, demonstrou que o determinismo racial ou climático não influencia no desenvolvimento de um país;

anunciador e pioneiro da democracia racial no Brasil.

Com base em estudos de outros autores que desenvolveram teses sobre a superioridade do negro perante o indígena e até o português, desenvolveu discurso contrário a tão arraigada ideia de inferioridade genética dos negros e de seus descendentes.

O próximo artigo “O Mulato na Hierarquia Social” é complementar a este e seguirá o mesmo roteiro, ou seja as alterações sofridas não somente dos mulatos dentro da hierarquia social, como também a alteração de valores que delineiam a hierarquia social.

FONTES

LIVRO: Casa Grande e Senzala – Gilberto Freire

SITES:

casaruibarbosa.gov.br;

dicio.com.br;

franca.unesp.br;

terramagazine.terra.com.br; e

pt.wikipwedia.org

J Coelho
Enviado por J Coelho em 03/11/2016
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