VIVO E IMORTAL

Sentiu alguma coisa? Perguntou o médico com uma voz grave e com aquele semblante de quem já tinha o diagnóstico definitivo, diferente daquele modo de compaixão que geralmente se observa neles.

- Se é que se pode medir doutor, imagine o tamanho do susto. Quase tive um enfarte quando senti aquele tremor por todo o corpo, mas não senti dor, falei.

Silenciosamente só, descobri que “minhas coisas” estavam sendo atacadas, e o pior, já tinham sido feridas, pois aquele líquido vermelho deixava de ser sangue para se tornar um alarme de travessia de nível de trem.

Pare... Olhe e não passe, pois o risco pode não valer a pena. Comecei a assistir a aquele filminho que em segundos passa toda a vida da gente.

Na realidade depois de alguns exames laboratoriais executados, estes revelarem que eu teria que enfrentar uma dificílima corrida de obstáculos.

Outro médico amável e conversador sondava minhas entranhas pelo monitor da ecografia, falando mal do governo que vendeu esperança, mas não entregou, simultaneamente mandou ver: - pode ser coisa dos rins.

- Como assim, pode ser doutor?

- Está vendo essa marca nos raios-X, parece-me um nódulo no rim esquerdo.

Pronto. Era só o que me faltava.

- Esse negócio de nódulos não são coisas de mulher doutor?

- Não!

Além do mais é unissex o desgraçado. Para não proferir a praga que me ocorreu, que se falasse até o computador ficaria ruborizado, caramba: logo eu que sempre fui inquieto principalmente para viver, pensava que pelo menos para morrer ia demorar.

Laconicamente o médico me colocou entre a vida e a funerária.

Senti que a água me bateu no queixo. Sem saber nadar, ninguém apareceu para jogar uma taboa onde eu pudesse me agarrar para não me afogar.

Naquele momento deixei de ser o imortal que sempre me considerei.

Nos dias seguintes só conseguia pensar em despedidas, inclusive de mim mesmo. Estava com a cabeça fervendo. Pelo diagnóstico eu entrara para o clube dos portadores de câncer, mas o que me preocupava no momento era a dúvida cruel de como comunicar o meu estado de saúde.

Tudo teria que mudar.

Minha família? Meus amigos? Para quem eu poderia transferir o meu atendimento fraterno? Como contar para o meu orientador pessoal?

Temporariamente eu estava fora de combate, vítima de uma grave infecção.

Imaginava-me um vegetal colocado em vinagre para ser conservado, com grande chance de ser devorado vivo por aquele “bichinho” que ainda não tinha uma identidade definida, mas que me fazia um sério candidato para morar na cidade dos pés-juntos.

Nos dias seguintes, as tempestades tropicais, furacões, terremotos, tsunamis, corrupção no governo, dores misteriosas sem procedência, insônia, tonturas, vômitos, e uma fadiga imensa. Eram os efeitos colaterais dos remédios. A vingança dos meus desafetos. Sempre fui contra remédios. Todos eles eu teimava que não os merecia. Sempre pensei que isto poderia acontecer com qualquer um. Menos comigo.

Um amigo das lides observou que meu olhar estava triste. Foi-se a dúvida.

Triste? Estou desesperado... Meus rins... Minha próstata... Meu fígado e não sei mais o quê... Contava para ele.

O amigo desastrado emenda: - “o câncer é uma doença silenciosa”.

Ai! Será que é o fim mesmo?

Um mar de dúvidas e o tempo correndo contra.

Quilos de exames laboratoriais, raios-X, tomografias e coleções de ressonâncias magnéticas. O conjunto vai elaborando a sentença final.

Já podia voltar para casa. Ir embora docemente.

Ir tornou-se um verbo perigoso. Definitivamente ir, não era uma boa.

Tenha calma, disse o médico, tudo se acomodará. Permanecendo assim, volte no dia marcado para exames e definição do que vamos continuar a fazer?

Deve ser a generosidade para os que estão no fim, concedi: isto deve fazer parte do preparo para ouvir a má notícia. Não se pensa em boa notícia.

Dias depois no consultório aparece uma médica assistente disparando: as notícias não são ruins.

As piores notícias são as mais ou menos, pensei. Aí vem problema.

- Os cistos são uma bobagem.

- Tinha mais de um?

- Ela: é. Outro no fígado.

- Resumidamente, a gente encaroça mesmo quando vai envelhecendo. É que antes não tinha exame para ver isso. São como bolhas d’água. Está tudo com você.

- O senhor está com uma hiperplasia benigna. Embora ainda não estejam bem definidos os mecanismos e as causas da sua hiperplasia, quando o médico diz: "hiperplasia prostática", acrescenta o termo "benigna" e subentende-se que não há aí qualquer relação entre a hiperplasia e o câncer de próstata.

- Então isto significa que não estou quase morto doutor?

- Não senhor. Comece a se cuidar de acordo com o rigor prescrito.

- Então estou bem doutor?

- Veja bem, dentro das estatísticas... Em princípio... Tudo voltará ao normal.

- Até logo mais então, doutor.

Entendendo o ser espiritual que sou, minha mente é uma expressão dessa entidade fundamental que produz essa energia criadora das nossas idéias.

Aprendi que nosso corpo é um instrumento da nossa vontade, que nos permite viver a experiência física no mundo em que vivemos. Ambos mente e corpo, estão submetidos a leis de progresso incessante para todos.

Quando respirei o ar da praça na frente o hospital, com o alívio de quem escapou de um castigo maior, “veja bem, em princípio” como disse o médico, pelas emoções que o diagnóstico ofereceu, me sentia bem.

Quem sabe poderia voltar às atividades rotineiras normalmente.

Nos dias seguintes, apesar de cambaleante pelos efeitos dos remédios, comecei a me sentir imortal novamente.

Nilton Salvador
Enviado por Nilton Salvador em 28/07/2007
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