O fim do bom “c(s)enso”

A caridade é o motor principal que deve conduzir nossas ações, sejam elas quais forem. Esta virtude cardeal tem que permear tudo aquilo que realizamos e damos a nossa parcela de contribuição para um mundo melhor, mas sadio para ser vivido e justo. É no exercício de viver o cotidiano como ele é, que cada um pode realizar o seu encontro com a felicidade e a satisfação pessoal em desempenhar algum trabalho se torne evidente. Outrora uma profissão mesmo cansativa, tem a faculdade de trazer surpresas bem agradáveis. Dependendo do ponto de vista e da reta intenção, vamos nos prendendo ao que nos causa algum tipo de prazer, por mais que aparentemente a nossa natureza entenda tal reação corporal como desprovida de algum bem. Contudo, como é bom, no agradável desespero de não conseguir realizar a contento o que se quer, chegar ao fim de mais uma experiência de vida.

Ontem assinei minha carta de “alforria”. Doeu um pouco, o coração remexeu-se não querendo aceitar tal realidade, absorvendo o impacto de uma “desistência” a um trabalho o qual aprendi a “amar”. Alforria, desistência, amor? Diante das poucas possibilidades existentes no presente realizável ainda possível, outra atitude não poderia ter do que deixar para traz o ofício de recenseador do censo 2007. Era o fim de quase cinco meses de trabalho executados com alegria e sentimentos de tristeza e decepção; outrora situações inusitadas fizeram parte deste exercício também de cidadania, de ir porta-a-porta, entrevistando todos os moradores de um determinado setor. Morro Branco, Tirol, o Centro da cidade e quase parte de Areia Preta, foram os lugares percorridos por mais um desempregado desta imensa nação.

Fôra induzido pela obediência a desistir de ficar preso: como por amor “aprisionei-me” neste trabalho e por amor dele fui desligado. Parece exagero dizer que o amor tenha sido depositado neste serviço público de curta duração, mas como poderia ser diferente? O amor deve nos conduzir sempre e a qualquer momento para, na medida do possível, desempenhar um bom trabalho que nos foi confiado. Mesmo sendo público, não é menos importante, nem o valor do trabalho deve ser inferior ao do privado, mesmo que a visão universal seja tirar o máximo de proveito dos bens do Estado. Antes de tudo é melhor amar... Numa visita, mesmo que seja a trabalho, no olhar do entrevistado, receber o amor daquelas que oferecem o copo de água, um café-da-manhã, almoço. Amar sobretudo aqueles que não quiseram receber os pobres recenseadores que guardavam no coração as recusas de cada dia, de gente que tem muito, mas falta interiormente tudo; de pessoas altamente sensíveis a um sentimento de dor, mas insensíveis em receber sequer um jovem que só está realizando uma entrevista a qual é tão importante para o desenvolvimento do país.

Estava preso voluntariamente por uma simples razão de que o censo exige dedicação, atenção, preparação, disposição para chegar aos domicílios antes que os moradores deles saiam para trabalhar; na hora do almoço porque só assim é possível encontrar outros em casa; ainda à noite, quando a maioria quer descansar, os recenseadores têm que insistir para o questionário ser realizado; e com muito entusiasmo é necessário ter bastante “bom-senso”. Ficar calado quando não existe outra solução, deixa para lá os aborrecimentos dos outros ou a falta de caridade, fazer às vezes que nem ouviu um desagravo, e ter paciência com alguns porteiros que não estão dispostos a ajudar (neste caso a maioria estão de parabéns, pois foram muito cordiais conosco), são gestos que não fomos capacitados para tê-los. Por isso que muitos recenseadores desistiram logo no início do censo e durante sua execução.

No estado de bom-senso devemos a uma disposição interior o desejo de desempenhar um bom trabalho, desgastante, mas gratificante quando encontramos pessoas de bom coração. Não pensemos no ganho financeiro desproporcional à produtividade, nos centavos proposto e imposto para àqueles que contam, um-a-um, a população do Brasil. Diante de tudo que aconteceu, terminara minha última casa recenseada entrevistando a visinha desta, haja vista a dona e moradora da casa haver falecido dois meses atrás. Para o IBGE ela ainda precisava ser contata, haja vista a data base do censo é 31 de março.

No fim... Foi bom. Da frustração passando pela decepção, o trabalho deste pobre recenseador chegara aos finalmente. Sejam felizes os outros colegas de profissão temporária, ainda existem alguns setores para ser terminados. Que apenas os homens e mulheres de bom-senso estejam no vosso percurso, para que o censo possa ter um final realmente feliz, fazendo o governo a sua parte para o bem do país.

Muitas histórias contadas e vividas por um sem-número de recenseadores, somam-se nos postos de coleta. Eis que pensara até em escrever um livro com os fatos que marcaram a história dos coletores de informações. Fizera menção à última casa, outras tantas, na verdade a menoria, não tive menor sorte. Fiz amizades, conversei com algumas celebridades que só a mim houve a grata satisfaçam de conhecê-los. Não corri de nenhum cachorro como acontecera a um colega; mas o medo por vezes assolava a vontade de seguir em frente, de entrar nos becos e vilas estranhos demais para andar só. Jamais esquecerei do convite para tomar café-da-manhã às 10 horas do dia; do almoço que há muito não realizara em família, está não a minha, desconhecida até então.

Padre Hugo Galvão
Enviado por Padre Hugo Galvão em 12/08/2007
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