O samba que não ouço – parte II

Essa é uma discussão inveterada. Há muito (não sei exatamente quando foi o início) se discute, ou melhor, tenta-se definir o que é samba e o que é pagode.

Até onde o “amazonas de minha ignorância” alcança, sei que o samba nasceu no Rio de Janeiro (ou Bahia, talvez – mas, isso já explico depois) lá pelos idos do século XIX, mais precisamente após a abolição da escravatura, quando os negros “libertos” migraram para os morros cariocas e lá uniram o rufar dos tambores africanos aos acordes agudos dos instrumentos europeus (como por exemplo o cavaquinho, que é de origem portuguesa). Sei que não foi tão simples assim o surgimento do samba – já até falei sobre isso num texto bem mais candente! -, mas serve para ilustrar a tese da qual sou seguidor ferrenho: o samba nasceu no Rio de Janeiro. As evidências são claras demais para não aceitar isso. Quando se fala em música baiana, vem logo à mente o axé e, a reboque, Ivete Sangalo, Daniele Mercury, Babado Novo... Agora, quando se fala em música carioca, vem logo o samba e, com ele, Zeca Pagodinho, Beth Carvalho, Martinho da Vila, Dudu Nobre e outros que, logicamente, a mídia não mostra. Ou seja, se o samba não é e nunca foi identidade musical baiana como dizer que ele nasceu lá? Ou seria a Bahia mãe desnaturada? Hipótese improvável já que a Bahia é berço do candomblé, terra das mais famosas mães-de-santo, como Mãe Meninha do Gantois, donde se conclui que a terra de Jorge Amado, Gil, Caetano, Bethânia, Gal, Seixas tem instinto maternal, sim! Só acontece que o samba não é de lá.

Contada a história do samba, partimos para a história do pagode (se é que não existe diferença, para alguns, é claro). Segundo o Dicionário Aurélio, acepção número seis, o pagode é um gênero de samba. Na acepção seguinte, pagode é tido como festa em que se toca pagode e outros ritmos, principalmente o samba, usando percussão, cavaquinho etc. Para o Almanaque Abril 2001, o pagode surgiu nos anos 90 a partir da reciclagem do até então, supostamente, esquecido samba. Quanto à última fonte pesquisada, considero um absurdo, revoltante, repugnante! Como essa gente incompetente, que diz o que não sabe, pode, por metáfora de mau gosto, comparar o samba a um lixo que foi reciclado por alguns cantores piegas, os tais pagodeiros, que escrevem qualquer besteira. Válido mesmo foi ver, ainda no Almanaque, a informação de que o samba nasceu oficialmente em 1917 com Pelo Telefone, de Ernesto dos Santos, o Donga, primeira canção do gênero a ser gravada.

Por mais que a cartilha do bom academicismo cobre revisão de literatura e diabo a quatro, confesso que não conheço nenhum grande pensador contemporâneo que balize minha teoria. A bem da verdade, conheço Daniel Brasil, que, por infelicidade minha, não achei um texto dele dissertando justamente sobre o que estou tentado escrever. Mas, pelo que lembro, ele comenta e ressalta alguns pontos necessários a essa discussão: primeiro, a riqueza das melodias e letras do samba em relação ao pagode; e segundo, a ligação visceral do samba com o povo.

Sobre o primeiro argumento de Brasil, sugiro que o leitor ouça alguns sambas (mas não espere pelas rádios AM, muito menos pelas FM) de Nelson Cavaquinho, João Nogueira, Cartola... Coisa antiga mesmo! Ouça. Incorpore a melodia. Viaje na letra. Sinta o lirismo. Você verá o que é samba de verdade.

Em seguida, Brasil fala das raízes do samba, de tudo aquilo que não me canso de falar, tanto aqui, no segundo parágrafo, ou em O samba que não ouço. Em suma, é como se o próprio samba dissesse, por intermédio de Zé Kéti: “eu sou o samba, a voz do morro sou eu mesmo, sim, senhor”... Precisa dizer algo mais?

Precisa. Não que eu tenha autoridade para remendar Zé Kéti. Apenas em memória dele. Em memória de todos os sambistas imortais. Sendo assim, para ilustrar ainda mais minha tese, lanço o seguinte argumento: considerar o samba igual ao pagode, sem nenhuma diferença, é o mesmo que colocar Cartola e Belo, por exemplo, num mesmo patamar.

Sei que gosto não se discute e que belo (sem trocadilhos!) é relativo. Então, caros pagodeiros, não vejam isso como ofensa ao gênero que vocês veneram. É só minha modesta opinião, conforme assegura a mesma democracia que garante o livre-arbítrio seja no que for, inclusive nas questões culturais. O que faço é desvelar os conceitos deturpados, sob a égide do tal “cada um com seu cada qual”, ou ainda, “dai a César o que é de César”, aliás, dai ao samba o que é do samba. Que assim seja. Saravá!

Willian dos Reis
Enviado por Willian dos Reis em 26/08/2007
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