CORRENTE CONTÍNUA

CORRENTE CONTÍNUA|

Tendo ele discussões estéreis com a esposa, dessas que se tem em comum na vida a dois, mas que, no entanto não levam a nada, resultando apenas numa noite mal dormida, dirigiu-se para sua empresa, onde seu funcionário de vinte anos de serviço havia cometido uma falha, normalmente perdoável, mas que naquela manhã não foi possível tal e admoestou-lhe com tanta severidade, embora fosse a vez primeira, que a vontade do funcionário era pular-lhe na goela e estrangulá-lo, todavia, em respeito ao seu tempo de serviço e a necessidade daquele trabalho se conteve.

Sempre chegava em casa para o almoço e a mesa estava posta: naquele dia, porém, a esposa detraíra-se com outras ocupações e culminou por não estar com a mesa como de costume, o que serviu para que o jovem empregado quarentão descarregasse sobre ela toda sua frustração, de tal forma foi que a mulher teve ímpetos de pegar a filha de dez anos e retirar-se para a casa de seus pais, mas refletindo nos seus onze anos de casada não o fez.

A filhinha que sempre pegava o docinho no armário, como de costume, naquela tardezinha e sem saber o porquê, levou uma boa sova por aquele ato. A menina, por sua vez, estranhando a ocorrência e quase que inconscientemente, para afastar de si um algo que a perturbava, deu um dezarroado pontapé no Lulu que sempre se deitava à porta da casa e este, também estranhando esse fato, pois sempre deitara ali e nunca incomodara ninguém, por sua vez e também frustrado, surpreendeu com uma mordida o tornozelo de uma velhinha que por ali transitava.

A idosa senhora, pestanejando com o fato, dirigiu-se a farmácia, onde o oficial de farmácia estava ocupado com o atendimento de diversas pessoas e ela, impaciente, começou a esbravejar, dizendo impropérios que enervaram o despreparado enfermeiro.

O dia era uma quinta feira linda de sol de primavera em que a natureza esbanjava o verdejante clorofilado das plantas e os pássaros gorjeavam despreocupadamente com a lufa-lufa do povão.

O enfermeiro, ao fechar a porta da farmácia o fez com tanto violência, dado seu estado colérico, que o chão era o limite, por isso existem chaveiros.

Chegando em casa, dia de namoro, a camisinha branca não estava passada e ei-lo a descarregar em sua idosa mãezinha toda sua frustração e fúria, todavia, essa, preparada espiritualmente lhe diz: "o que foi isso filhinho?" (porque para a mãe, o filho pode ter a idade que for, será sempre “filhinho”) e este, desarmado com a doçura das palavras da mãe, abriu seu coração narrando-lhe a ocorrência com a velhinha, liberando-se daquele seu mal estar enquanto a mãe lhe afirmava: “enquanto você toma seu banhinho, a mamãe passa sua camisinha branca!” Estava assim cortada a corrente contínua do mal., tão comum no cotidiano e que nos obriga sempre a estarmos vigilantes para nela não entrarmos.

Antonio Luiz Cabral – Ribeirão Preto, 28/08/2007 – alacalado@hotmail.com – calado