POR UM MUNDO DE OTÁRIOS

Eu fui criado na baixada fluminense, num daqueles conjuntos habitacionais afastados de tudo. Literalmente ao redor só havia pasto, outros conjuntos habitacionais e mais nada. Daqueles conjuntos habitacionais que se tornaram dominados pela milícia ou pelo tráfico. Nessa, como em várias periferias desse mundo, cabe certo orgulho, até mesmo para uma criança, afirmar-se "bicho solto". Eu copiei essa expressão de um filme, mas o que quero dizer é que - repare - existe um valor em dizer-se "da quebrada", como se tal vivência lhe conferisse uma malandragem e ela fosse um patrimônio. Okay, ela é. Mas eu preferia que todas as crianças não fossem malandras, nem espertas, apenas otárias mesmo.

O Brasil é um país de espertos. Nunca consegui ser otário o suficiente quando em outro país. Não era raro ver cartazes nos lugares turísticos alertando sobre os "pick-pockets". Minha reação de brasileiro (que pode ser uma espécie se quebrada do mundo) era rir internamente do quão amadores eram os ladrões de lá: bater carteira é tão anos 80! Experimentei só um pouco da otarice, e foi muito bom. Estar sem prestar atenção, poder errar os caminhos, estar em qualquer canto, a qualquer hora, se preocupando apenas com o vento e a temperatura, nos seus horários livres - isso que é viver.

Ser otário pode sim ser visto positivamente. Para isso, a gente precisa fazer o caminho inverso. Ser esperto exige esforço, estressa, deve servir de alguma coisa. É necessário quando, em cada esquina, há um esperto para tentar lhe enganar e mais uma vez testar sua blindagem malandra. Quando ao redor todos esperam seu mínimo "vacilo" para lhe repreenderem por qualquer coisa, nem que seja por você não ter sido esperto. Ser esperto é necessário para, quando alguém quiser mostrar que a vida é dura, você ter uma carta na manga e indicar que você já sabia disso. O motivo de ter que ser esperto é um contexto ruim, adoecido.

De alguma maneira, é uma defesa ser esperto em situações desfavorecidas; por outro lado, isso também também aparece como uma desculpa indiscriminada. Ser esperto não pode ser a regra, a não ser que a gente reconheça logo que o mais esperto mesmo é poder ser otário.

Os otários são, então, frutos de contextos menos escrotos. Meu sonho é que, nesse país, os lugares sejam cada vez menos ruins, menos absurdos. Uma sociedade em que "dar mole" não seja motivo suficiente para que você seja culpado publicamente por algo absurdo que façam contra você. Desejo, que as novas gerações sejam cada vez mais otárias e tanto breve quanto possível a gente tenha uma geração inteira de crianças otárias.