A Fonte

Talvez nossa espiritualidade tivesse um impulso se separássemos o que é dos homens e o que é da divindade. Isso pode parecer contraditório, uma vez que o objetivo inicial da religião foi religar o ser humano à esfera do divino, fazendo o caminho inverso do processo cultural e civilizatório.

Essa separação dar-se-ía, entretanto, apenas no aspecto jurisdicional, se me permitem roubar uma palavra ao campo do direito. Explico: não podemos acusar a divindade pelos erros que nós próprios cometemos, mesmo depois de termos desenvolvido uma consciência que, se não nos aponta o que é "certo" e "errado", pelo menos nos aponta o que nos faz mal e o que não nos faz mal. Ora, se nós confundimos todas as ações humanas com as divinas, temos o direito de responsabilizar a divindade pelo mal que nos rodeia. Isso não é nem justo nem lógico. É igualarmo-nos a crianças imaturas.

O estudo crítico dos textos religiosos pode nos ajudar a reconhecer o quê ao longo da história da humanidade foi atribuído a Deus por interesse próprio dos homens. Em que medida isso facilitaria a elevação espiritual? Procuraríamos a divindade como a fonte das energias primordiais e de um entendimento além da razão. Teríamos uma percepção sensível do divino e captaríamos suas ondas de expansão e recolhimento, aprendendo a lidar com movimento e ausência de movimento, cheio e vazio. Agressividade converter-se-ía em energia transformadora; passividade, em recesso contemplativo e restaurador. Ao contactar a divindade em seus aspectos primordiais, procuraríamos entender a orientação dos cosmos, com o que nos sentiríamos mais integrados à sua dinâmica.

O ideal seria que passássemos a designar a divindade com um nome que não tivesse vício de gênero. Nas religiões judaico-cristãs, por questões histórico-econômicas, Deus é um pai todo-poderoso, o que prejudica a nossa relação com o plano divino. Para mantermos a coerência do princípio de gênero, teriam então que ser no mínimo uma pai e uma mãe, já que não podemos atribuir um gênero a um ser ou entidade hermafrodita. Por que não designarmos a divindade por uma palavra como "Fonte", que só circunstancialmente em Português está contaminada pela idéia de gênero? Como as línguas têm o seu próprio dinamismo, e é vão tentar impor-lhes estruturas exógenas (como um novo artigo definido genérico, um "i", quem sabe), poderíamos adotar nomes que nos remetessem à pluralidade. Isso clarearia bastante nosso contato com a força que nos gerou e nos destinou para mais do que rusgas ideológicas e supostas questões religiosas.

Nelson Oliveira
Enviado por Nelson Oliveira em 26/10/2005
Reeditado em 27/10/2005
Código do texto: T64015