PERFEITO: o abstrato, o conceituado e o fim da História

A perfeição é, decerto, um tema muito subjetivo a ser tratado. Podemos abordá-lo enquanto nos referimos à diversos contextos em nosso dia a dia. Podemos saborear um alimento e designá-lo perfeito, apenas pelo fato de que ele nos agradou muito mais do que qualquer outro. Afirmamos que um relacionamento é perfeito dada a ausência de discussões entre o casal. Podemos assistir um filme, ler um livro, e apontá-los como perfeitos. É correto, no entanto, dizer que alguém é perfeito(a)? Existe, no mundo, um ser destituído de erros? Um filme eximido de cenas ruins ou diálogos dispensáveis? Um livro cuja história atrai a todos os tipos de leitores? Uma comida que satisfaça o apetite de todos? Uma relação sem desentendimentos?

Primeiramente, não devemos nos esquecer que, ao utilizarmos o termo perfeito(a), deixamos subentendido que a pessoa ou o contexto cujo(a) qual estamos abordando é dotado(a) das mais adversas características contemporâneas que possam defini-la como como perfeito(a), abrangendo desde aspectos políticos, visuais/artísticos até atributos cognitivos e traços de personalidade. Vamos analisar, pois, as circunstâncias atuais e como chegamos até elas.

A HISTÓRIA

Nossa contemporaneidade é fruto de uma linha cronológica de acontecimentos históricos que nos influenciaram/influenciam continuamente e nos aperfeiçoaram/aperfeiçoam. A História, por sua vez, constitui-se de uma sequência de fatos protagonizados pelas sociedades de suas respectivas épocas, e a progressão dos eventos pelo mundo têm suas origens na divergência de opiniões, crenças e pretextos políticos ou econômicos. Portanto, a História é uma mera consequência da discórdia entre povos e/ou sociedades, levando às guerras e conflitos que consolidaram o mundo moderno, permitindo-nos afirmar que - atendo à definição de perfeição acerca deste contexto (paz, fraternidade, coleguismo e associação) - a História só progride devido aos aspectos opostos, ou seja, à imperfeição: guerra, ódio, conflito e desavença.

Sabe-se que o ser humano está sempre buscando superar-se e aprimorar-se. A História se apresenta como o cenário físico mais concreto para tal análise, uma vez que, em seu desenvolvimento, observamos o surgimento de organizações (como a ONU) e demais órgãos governamentais a fim de promover a harmonia entre as sociedades e a paz mundial. Tais consequências estão diretamente ligadas ao cenário do imperfeito; do errado, e, assim, estas se firmam com o objetivo de corrigi-lo. Por isso, dá-se o nome de progressão, pois eleva-se ao passado, retificando-o, aperfeiçoando-o.

A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

No presente século XXI, convivemos em mundo submetido às mudanças acarretadas pelo tempo.

O conceito fundamental de mudança é: alteração ou modificação a partir de um estado natural, normalmente com o objetivo de ampliar suas aplicabilidades ou funções. Logo, é correto afirmar que: a mudança tende a ser aplicada a algo que ainda não se encontre em seu estado de maior desenvolvimento e/ou funcionalidade. Esta afirmação comporta, de forma panorâmica, a linha cronológica de nossa existência, bem como a evolução da espécie humana em relação aos meios em que vive/viveu. Falemos, primeiro, do convívio em conjunto.

A sociedade moderna é resultado de uma série de alterações e desenvolvimentos culturais, religiosos, políticos e naturais, que proporcionam diferentes visões de mundo, opiniões, povos, etnias, e por aí vai. Temos, então, uma gama imensa de variações acerca de uma mesma espécie, que é capaz, dentro de seus limites físicos e cognitivos, realizar diferentes crenças e atos culturais, que se estendem às vestimentas, aparências visuais, idiomas, religiões, e etc.

Vivemos, portanto, numa sociedade considerada perfeita?

Thomas More, autor do livro “Libellus vere aureus, nec minus salutaris quam festivus, de optimo rei publicae statu deque nova insula Utopia”, ou simplesmente Utopia, o intitula com o termo latim criado a partir da junção do prefixo “ou” e “topos”, que traduzido literalmente, significa “não lugar” ou, então, um “um lugar que não é”, “lugar ausente” ou “lugar inexistente”. Em seu livro, Thomas expões uma série de características que concedem à República de Utopia uma simples e curta definição: sociedade perfeita. Segundo o autor, uma sociedade utópica: possui punições e exílios contra fanatismos e intolerâncias; é destituída de crimes e cidadãos de cunhos maléficos; é destituída, também, de uma circulação monetária entre seus respectivos habitantes, pois, segundo More, o dinheiro e propriedades são bens que contrariam à felicidade, além de outros aspectos. É conveniente citar também que More baseou-se no humanismo renascentista, e, por isso, afirmava que a sociedade perfeita era constituída, ademais, de homens e mulheres que buscavam aproveitar de todo seu intelecto e capacidade.

O socialismo, outro exemplo utópico fundamentado em meados do século XVIII, critica a propriedade privada, as classes sociais e instituí um padrão coletivo nos meios de produção e distribuição, onde não haveriam superioridades e/ou influência do capital. No entanto, até os dias atuais, tal sistema jamais foi correta e completamente aplicado em qualquer parte do globo.

Concluímos que já tivemos, em nossa linha cronológica, escritas que teorizavam uma sociedade perfeita. Voltemos, então, à pergunta inicial: vivemos, atualmente, numa sociedade perfeita, dada a progressão de eventos e fatos que constituíram nossa realidade?

Se analisarmos nosso mundo como um todo, podemos afirmar que não. Passamos, como exemplo, por problemas ambientais consequentes da poluição, que se conecta, principalmente, à incessante urbanização geográfica, embora haja avanços tecnológicos que almejam o aprimoramento - como a busca por combustíveis a base de metano - de alguns atuais poluentes. Em nossa contemporaneidade, lidamos, também, com problemas sociais, gerados pela pobreza, falta de educação escolar, gastos indevidos e excessivos por parte de governos, e uma série de fatores que incitam o racismo, o preconceito e a discórdia perante culturas, etnias e religiões distintas.

Logo, não alcançamos a utopia, pois não avançamos ao máximo de nossas tecnologias, não encontramos uma solução definitiva para os mais adversos problemas ambientais, e vivemos em um século que se caracteriza por violência e marginalização. Ainda estamos num processo de mudança, e como já analisamos e concluímos, tudo aquilo que exige mudança, é imperfeito.

O INDIVÍDUO CONTEMPORÂNEO PERANTE A SOCIEDADE

Se vivemos numa sociedade imperfeita, decerto seus constituintes não são perfeitos também, pois não compartilham mutuamente de aspectos que tornem seu coletivo perfeito. Contudo, desprezando esta conclusão inicial, analisemos de forma mais minuciosa nosso indivíduo e a sociedade em sua volta, para que então, questionemos:

Existe um ser humano perfeito?

Com o abrupto avanço tecnológico, obtivemos diversas vertentes de acesso à mídia. Possuímos desde modelos arcaicos, como jornais e rádios, até televisões e acesso à internet, mesmo que este último venha adquirindo um destaque considerável perante os outros meios.

A mídia, por sua vez, busca enaltecer os aspectos perfeccionistas do ser humano, para que adquira cada vez mais seguidores e/ou telespectadores. Quando uma empresa X, por exemplo, decide vender seu produto, ela rapidamente contata uma outra empresa diretamente ligada ao marketing. Temos, então, uma conexão muito familiar e pertinente aos meios comerciais. O marketing tem como principal objetivo convencer um indivíduo a adquirir o produto da empresa X. Como ele o faz? Atraindo sua atenção. A perfeição está sempre distante do indivíduo comum, portanto, vê-la em algum meio comunicativo chama sua atenção. Uma das estratégias de uma propaganda é, indiretamente, dar a ideia de que, ao adquirir o produto apresentado, este fornecerá mais proximidade da perfeição ao telespectador. A propaganda trabalha instigando o consumidor a adquirir seu produto, decerto de que, ao consumi-lo, estaria mais próximo ou paralelo à perfeição, também conferida na sociedade atual como moda.

A mídia torna-se a grande ditadora da perfeição contemporânea, pois exalta os aspectos que mais atraem uma grande gama populacional em conjunto. Colocando em outras palavras, a mídia busca o gosto comum, e o propaga. Portanto, a perfeição individual é versátil, pois altera-se com o tempo e depende de apenas um ditador moderno.

No entanto, diante dos avanços históricos e intelectuais, nem todos se atraem pelos aspectos perfeccionistas expressos nas propagandas, e alguns são capazes até mesmo de perceberem a ilusão por trás dos seus métodos. Colocando de outra forma, nem todos são adeptos à moda popular. É aqui onde o conceito de perfeição torna-se mais abstrato, sendo muito mais abstrato neste contexto do que em qualquer outro.

Um homem, por exemplo, submetido aos aspectos impostos pela mídia, possui a aparência física de agrado majoritário da sociedade e conta com um intelecto considerado inteligente comparado aos demais indivíduos. Este seria, teoricamente, um homem perfeito. Porém, neste contexto, a perfeição é complexa: talvez a sua aparência física não agrade a todos. Portanto, este homem deixa de ser perfeito a uma parcela da população, embora seja perfeito para a outra.

Aprofundando ainda mais, devemos nos atentar que a perfeição, quando atribuída a um ser humano, não se limita apenas ao seu intelecto e aparência, mas à personalidade também. Qual seria a personalidade perfeita? Esta é uma pergunta cuja resposta expande-se exorbitantemente. Além disso, não há resposta certa ou errada, apenas variações.

Logo, existe um ser humano perfeito?

Pergunte-se, e então, caso afirme, descreva o seu ser humano perfeito, mas compreenda: esta resposta talvez seja única a você, e possui variações.

Caso negue, reflita um pouco mais e então, pergunte-se:

É possível que exista um ser humano perfeito?

Caso afirme, pense em quais características possíveis o fariam ser assim.

Como analisado previamente, a perfeição é um conceito muito mais abstrato quando abordado perante um ser humano. Caso você tenha afirmado à primeira pergunta, você está considerando que as características pertencentes a um ser humano existente o tornam perfeito para você. Nestes termos, a perfeição humana é concreta e real ao seu ver, pois ela se sobrepõe às características gerais de qualquer ser humano, como suas limitações físicas, falhas cognitivas, alterações no humor, etc.

Caso você tenha negado, você concorda que, atualmente não há um ser humano perfeito ao seu ver. No entanto, se você afirmou à segunda pergunta, tal perfeição pode, um dia, vir a existir, e então assemelhar-se aos termos previamente explorados. Se você negou à segunda pergunta, você desconsidera a perfeição, e ela se torna incapaz de se sobrepor perante às falhas naturais humanas.

Conclui-se, então, que a perfeição individual no meio social contemporâneo é relativa e subjetiva. Alguns a enxergam em suas realidades, alguns acreditam que ela possa existir quando as características a sustentarem e outros enxergam os humanos como indivíduos indiscutivelmente imperfeitos. É necessário atentar-se que a considerada perfeição opinativa não se assemelha do ser humano ideal, pois este é, indubitavelmente, inexistente, dado a variação de manifestações acerca daquilo que é considerado perfeito a cada indivíduo.

O SER HUMANO IDEAL

Desta vez, analisemos um termo mais objetivo e direto: o ser humano ideal.

O ser humano ideal é diferente do ser humano perfeito. Enquanto o ser humano perfeito manifesta concepções características que atraem diferentes tipos de indivíduos, o ser humano ideal é assim conceituado dado seu(s) aspecto(s) em relação a toda uma sociedade.

O ser humano ideal não precisa, necessariamente, ter sentimentos, tampouco personalidade. Ele é ideal por exercer suas funções da maneira mais eficaz possível, seja pelo esforço físico ou pelo intelecto. Ele é útil a um meio social para seu desenvolvimento e, portanto, é ideal para o aperfeiçoamento da sociedade.

A PERFEIÇÃO EM OBJETOS

Bem como tratado anteriormente, a perfeição adquire sua definição de uma forma abstrata e individual para cada membro da sociedade. Isso se constitui, também, em relação à objetos.

O gosto por um filme, livro ou comida trata-se de um aspecto que agrada um conjunto de indivíduos, apenas. Assim, não é uma característica de agrado geral, então sua perfeição não é generalizada. Aqui, se adequa realizar as duas perguntas acerca da perfeição demonstradas previamente.

A PERFEIÇÃO É IMPERFEITA?

As análises efetuadas neste texto nos permitiram compreender como a perfeição pode ser vista de modo geral (sociedade) e a partir de uma visão mais centralizada (indivíduo). Devemos discuti-la, portanto, dada a maneira como ela é aplicada e concebida.

Existe uma sociedade perfeita atualmente?

Sabemos que a resposta para esta pergunta, baseando-se em fatores ecológicos, geográficos, políticos e sociais, é não, pois, tratando-se de um âmbito generalizado a este ponto, podemos chegar a um senso comum do perfeito, como já fizeram os intelectuais em séculos passados.

É possível que haja uma sociedade perfeita?

Talvez. Uma sociedade perfeita deve ser erguida sobre minuciosas estruturas que há anos buscam ser erguidas. Logo, se algum dia atingirmos este patamar, será, com certeza, o fim de nossa história sobre sistemas políticos/sociais, pois não se altera ou evolui o que já é perfeito ao seu modo.