CARTA AO PAI, KAFKA E AUTO-ALIENAÇÃO PARENTAL

CARTA AO PAI, KAFKA E AUTO-ALIENAÇÃO PARENTAL

(O Kafka em 1919, sou eu, em 2018). ( O pai do Kafka é o meu pai na atualidade).

Texto escrito pela Professora de Direito de Famílias e Sucessões e de Direito Civil; Advogada Patrícia Panisa, cuja ousadia de minha parte me dá o direito de chamá-la de minha amiga, ainda que virtual.

Apenas fiz uma introdução, antes da publicação do texto da professora relatando a minha experiência dolorida kafkaniana, Um relato daquilo que muitos outros kafkas vivenciam e que esta seja a oportunidade para sérias reflexões pelos pais, psicólogos, professores, operadores do direito, promotores, juizes, etc.

Minhas reflexões.

Ao ler o texto, qual não foi minha emoção, ou revolta, ou frustração, ou indignação, ou pena, mas fui, sem dúvida alguma, tocado pelo encantamento com a maestria com que redigiu o texto, com uma leveza ímpar e, sobretudo, o seu entrelaçamento com o Direito de Família que, principalmente a nós operadores do Direito, em especial aos que lidam com esse ramo do Direito e, a mim, de modo muito particular, por ser também, Juiz de Direito com atribuições da Vara de Família.

Na nova conceituação de família, a autoridade quase absoluta dos ascendentes cede espaço ao amor, compreensão e igualdade, como forma de reafirmação dos laços afetivos fundados na humanização dos relacionamentos, visão que não teve nossos pais – o de Kafka e o meu. Com certeza muitos outros pais kafkanianos.

Confesso, e admito minha ‘santa’ ignorância sobre as implicações profundas e causas de tantas mazelas no que diz respeito a ‘auto-alienação parenteal’, já que a alienação parental, ao menos, ainda enfrentamos o tema no cotidiano forense, ao contrário da ‘auto-alienação parental’, quase nenhuma ou nenhuma informação temos de suas implicações como magistralmente focada pela autora do texto, Dra. Patrícia Panisa, e com uma didática invejável.

Mesmo um ignorante ‘formal’ sobre a auto-alienação parental, fui, em carne e osso, sem tirar e nem pôr, a encarnação perfeita do Kafka, quando, com seus 36 anos, resolveu redigir a carta ao seu pai, embora nunca lhe entregou.

A redação do texto pela professora soube sintetizar espectro jurídico e suas implicações, mas também sem olvidar da intercessão existente com a psicologia, seja jurídica ou não. A interdisciplinaridade no Direito é inevitável, ainda mais em se tratando do Direito de Família que é na essência a ‘vida, o ar que respiramos, o chão que nos dá sustentáculo e é, por excelência, o primeiro a dar-nos mostra das mudanças do cotidiano, dos princípios, costumes, das alterações sociais, para somente depois os demais ramos do Direito sentir as mutações que só o Direito de Família pode se aperceber antes que o dia alvorecesse.

Impossível, ainda mais no atual estágio, pautar descompromissadamente com a seriedade que os ramos do Direito clamam, em especial o de Família, já que estamos nos referindo ao Direito e não à lei. O Direito de Família é você, sou eu, nós, eles. É quem ainda não nasceu. É o porvir.

É pelo Direito de Família, em sua essência, que se busca a superação dos problemas, dentre eles, quase sempre imperceptíveis, surgidos pela auto-alienação parental, e mesmo a alienação parental, pelo entendimento, conciliação, que, embora privilegiado pelo NCPC, mas ainda não se dão o valor devido quando atribui aos estagiários a condução de suas audiências, pois nesta seara se requer boas doses de tolerância, experiência, psicologia, filosofia, etc. E administrar conflitos requer dedicação, conhecimento, abnegação.

A lei em questão tem um caráter educativo, para conscientizar e orientar os pais que essas condutas podem trazer sérios prejuízos para as crianças ou adolescentes e sempre irreversíveis. Sim, irreversíveis, pois impossível esquecer o desprezo, a humilhação daquele que tanto amor esperávamos.

Ora, difícil, senão impossível, não refletir sobre a auto-alienação, não abstratamente, hipoteticamente, mas por exemplos vividos e vivos. Ora, se nos deixamos levar pela emoção e indignação pelo que Kafka viveu e sobreviveu àquela época, então imaginar o por ele vivido, mas agora, sem por nem tirar, na minha pele, isto é, eu sendo ele, e o pai dele sendo o meu?

Sou de pleno acordo que o legado por ele (Kafka) deixado para que ao menos pudéssemos valer da compreensão que os danos da auto-alienação pode trazer às famílias foi por demais alto – eu que o diga com todas as letras, ao menos deveria ser mais difundido, quer juridicamente (sobretudo), quer nos meios acadêmicos, psicologia e quejandos, para que o aconselhamento aos responsáveis busquem alternativa para o alavancamento da moral e auto estima da família prevaleça.

A lei em questão tem um caráter educativo, para conscientizar e orientar os pais que essas condutas podem trazer sérios prejuízos para as crianças ou adolescentes.

Somos frágeis e ainda nos fragilizamos com a auto-alienação causando em nossos filhos a completa destruição da auto-estima com atitudes destruidoras em nome de uma ‘educação’ e ‘formação’ como se fosse exemplar, como acostumamos ouvir e dizer: “antigamente bastava um olhar de soslaio e ...” Pensam os pais, em que pese suas ignorâncias, exemplo do pai de Kafka e do meu, ao acharem que estão dando o melhor de si para seus ‘rebentos,’ sem se aperceberem dos impactos emocionais, sociais que causam.

Fácil e prazeroso concluir que, para quem é pai, não há como ler a ‘carta de Kafka ao pai’ sem questionar a si mesmo como filho e se questionar como pai.

De tanto ‘apanhar’ (literalmente) de meu pai, eu ainda na infância, de tanto receber ameaças de toda ordem, e aqui incluem meus 4 irmãos, pois qualquer deslize, por menor que fosse a falta, era motivo de ‘porrada’, de humilhação, isto desde a infância até minha adolecência, e porque não, até quando já ‘era bem dono do meu nariz’, sempre com a estima em queda livre, a ponto de não mais conseguir conversar com o ‘pai de Kafka’, melhor, com o meu pai, sem conseguir olhar nos olhos, mesmo adulto, já casado. Engraçado, conversava com ele olhando para o chão, como se ainda fosse um adolescente.

A auto-alienação parental, a grosso modo, se dá quando o próprio progenitor alienado provoca o afastamento do filho, o seu distanciamento, tratando-o de maneira rude, com crueldade, de forma desumana, como inimigo, projetando para criança ou adolescente o sentimento de culpa que carrega por não participar do desenvolvimento e do processo de criação dos filhos. Enfim, tem uma relação de perversidade com o filho.

Lembro-me de uma passagem, triste, por sinal, mas que reflete bem as consequências desse mal da auto-alienação. Ele já consumido pela doença, meio combalido, eu já Juiz de Direito, sentado na poltrona na sala de sua casa, estando minha mãe, minha irmã, imagina, eu com os olhos voltados para o chão, tal qual um ‘menino’ coagido pelo temor reverencial ou sei lá, sepulcral. Eu não conseguir me soltar, estava ‘travado’, não conseguia balbuciar nenhuma palavra, quando minha irmã, já encabulada, disse: ‘mas vocês não conversam, não falam nada?’ Meu pai, gesticulando, respondeu, já nervoso: “uai, mas ele não fala comigo, e eu vou falar o quê?” Senti tão mal que me levantei e fui embora.

Ele faleceu e nunca consegui conversar com ele olhando ‘olhos nos olhos’, pois sempre cabisbaixo. Por respeito, ou por ‘medo’? E tudo isso pelas ‘porradas’ que por qualquer coisa eu levava, pelas vezes em que ‘apanhei’ sem merecer (ou merecia?), por não alavancar minha auto-estima, mesmo na pobreza, por ter que, com 9/10 anos de idade amanhecer atrás de um balcão de bar em cidade do interior aguentando os boêmios, etc.

O engraçado é que atribuo a ele todo o sucesso que consegui até hoje, estudar, frequentar uma faculdade, quando somente os filhos de famílias bem aquinhoadas conseguiam, quando na verdade se dependesse dele, eu e meus irmãos seriamos somente mãos de obra. Mas ele se orgulhava de ter um filho juiz de direito, um filho advogado, um filho dentista e outra filha dentista. Mas ele teve alguma participação nesta epopeia? Às vezes acho que não, outras vezes, para não me sentir culpado, acho que sim. A dúvida ainda me consome.

Bom, hoje percebo o quanto a auto-alienação parental é nociva, destruidora de sentimentos, e a causa de muitos fracassos, desesperos, de impotências pela demonstração de desafeto pelo alienado. Engraçado que diante da confusão mental, do sentimento de culpa, ainda cremos que as ações foram praticadas em nosso benefício. Ora, agressividade, violência física e/ou verbal, desprezo são algumas das características que permeiam o funcionamento do alienador auto-alienado para com os filhos, não respeitando a inocência e a vulnerabilidade dos mesmos. Não considera os sentimentos de amor que os filhos nutrem por ele e isso faz com que os infantes acabem se afastando, não por desafeto, mas por medo. E o medo é doído. O medo nos trava. O medo nos inibe. O medo nos castra.

Este é o Kafka tupiniquim. Este sou.

xxxxxxxx

Vejamos, então, o maravilhoso, leve e magistral texto da advogada professora dra. Patrícia Panissa.

“Em “Carta ao Pai”, Franz Kafka derrama toda a mágoa, tristeza, sentimento de culpa e inferioridade, baixa estima, sua certeza de não pertencimento. Reflexos de uma relação difícil com o pai: um homem bruto, autoritário, arrogante, incapaz de externar afeto pelo filho.

O homem que, aos olhos do pequeno (e também adulto) Kafka era a “medida de todas as coisas”.

A carta escrita entre os dias 10 e 19 de novembro de 1919, quando Kafka contava com 36 (trinta e seis) anos, era mais que um desabafo do homem que se sentira subjugado pela figura paterna, desde sempre. Era, também, a tentativa de passar a limpo aquela relação e, quem sabe, transformá-la. Perdoar e ser perdoado.

O relato íntimo e autobiográfico nunca foi entregue ao pai. E constitui – assim como todo o restante da obra de Kafka – leitura que mereceria ser lida tão só pela magistralidade da escrita de seu autor. Pela extrema capacidade de traduzir em palavras as dores e as vicissitudes humanas.

Sente o drama: “Adquiri junto de ti – és, quando se trata de tuas coisas, um orador excelente – um modo de falar entrecortado, gaguejante, e também isso era demais para ti, de modo que por fim calei, primeiro por teimosia talvez, mais tarde porque diante de ti eu não conseguia pensar nem falar.”[1]

(...)

O fato é que as tuas medidas educativas acertaram o alvo; não me esquivei a nenhuma investida da tua parte; assim como sou (naturalmente não levando em conta os fundamentos e influências da vida), sou o resultado da tua educação e da minha obediência. Que esse resultado mesmo assim seja penoso para ti, que tu inclusive te recuses inconscientemente a reconhece-lo como produto da tua educação, se deve justamente ao fato de que a tua mão e o meu material eram tão estranhos um para o outro.

Tu dizias: “Nenhuma palavra de contestação!” e querias com isso fechar a boca das desagradáveis forças opostas a ti que existiam em mim, mas essa influência era demasiado forte para mim, eu era demasiado obediente e calava de todo, me escondia em ti e só ousava me mexer quando estava tão distante a ponto de o teu poder não mais me alcançar, pelo menos diretamente. Mas tu estavas em pé diante de mim e tudo te parecia ser novamente “do contra”, quando era apenas a consequência natural da tua força e da minha fraqueza.

(...)

Era terrível para mim, por exemplo, aquele: “Vou fazer picadinho de ti”, embora eu soubesse com certeza que nada de mais grave haveria de acontecer (quando pequeno, no entanto, eu não o sabia); mas quase correspondia à noção que eu tinha de teu poder, o fato de que tu também eras capaz de chegar a tanto. Também era terrível quando tu corrias gritando em volta da mesa a fim de agarrar a gente; era evidente que tu não queria nos agarrar, mas agias como se o quisesses, e parecia que minha mãe finalmente chegava para salvar a gente.

Mais uma vez, era o que ficava parecendo à criança, a gente continuava vivo por causa da tua misericórdia e levava a vida adiante como se fosse um presente imerecido que nos davas. Faziam parte desse quadro também as ameaças decorrentes da desobediência.

Quando eu começava a fazer alguma coisa que não te agradava e tu me ameaçavas com o fracasso, então o respeito pela tua opinião era tão grande que com ele o fracasso era inevitável, mesmo que só ocorresse em uma época posterior. Perdi a confiança nos meus próprios atos. Tornei-me instável, indeciso. Quanto mais velho ficava, tanto maior era o material que tu podias levantar como prova da minha falta de valor; aos poucos passaste a ter, de certa maneira, razão de fato. Mais uma vez, guardo-me de afirmar que só por causa de ti me tornei assim; tu apenas reforçaste o que já existia, mas tu o reforçaste tanto justamente porque diante de mim tu eras muito poderoso e aplicava nisso todo o teu poder.”[2]

O objetivo aqui, entretanto, não é fazer uma análise sobre a obra de Kafka. Eu, aliás, nem teria estofo para isso. Mas, utilizá-la como ilustração para propor uma reflexão oportuna e necessária que diz com tema pouco abordado em Direito de Família: a autoalienação e como ela pode repercutir no resuesmo sem adentrar às polêmicas que cercam a teoria da alienação parental e seu criador e, apenas, partindo do conceito que ao termo é emprestado pela lei, a “alienação parental constitui a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.”[3]

Muito se fala da alienação parental e de seus modos de efetivação entre pares parentais em casos de rompimento da conjugalidade.

Acrescente-se um dado de realidade: não raras vezes, o rompimento da relação conjugal traz consigo a criação de embaraços, obstáculos ou dificuldades na manutenção de uma relação saudável entre um dos genitores e prole. Normalmente, em razão da confusão entre aquilo que deveria ser próprio da parentalidade com aquilo que o é da conjugalidade, e vice-versa; mixórdia que se revela mais acirrada tanto quanto persistam os vínculos de ambas ou de, pelo menos, uma das partes em relação ao ‘ex’. E que é ainda muito mais comum de se verificar enquanto se desenrola o processo de luto de um divórcio.

Mais recentemente passou a doutrina especializada a tratar de um outro fenômeno: o da autoalienação parental. Na autoalienação, pode ocorrer esgarçamento de relações e vínculos entre genitor e prole, mas suas causas não podem ser imputadas ao outro par parental, senão àquele mesmo que por sua própria conduta e comportamento acaba por afastar os filhos de si, de sua presença e de seus afetos.

Tanto a alienação parental como a autoalienação parental constituem exercício abusivo da autoridade parental (ou, como preferem alguns doutrinadores, do poder familiar). Em se tratando de casais separados, é bastante comum que a sua ocorrência em algum momento vá desembocar em ação no Poder Judiciário. Seja ela de modificação de guarda, ampliação do direito de convivência para o genitor alienado (no caso da alienação parental), na suspensão do direito de convivência (no caso da autoalienação) etc.

Não é nada disso, todavia, que trata a proposta de reflexão a partir de “Carta ao Pai”, de Kafka.

Trata-se, ao revés, de refletir sobre a autoalienação parental que se materializa no dia-a-dia de famílias unidas sob um mesmo teto. E de como este exercício parental, pela abusividade que traz consigo, pode refletir na pessoa em desenvolvimento: a criança ou o adolescente que tem neste genitor (pai/mãe) a “medida de todas as coisas”.

A reflexão é necessária porque o exercício abusivo desta autoridade parental não é menos lesivo do que aquele que ocorre entre ex-cônjuges em ‘luta armada’. Ao contrário e, dependendo do caso, pode revelar-se muito mais nefasto. Porque é no cotidiano intrafamiliar que muitas e graves violências e abusos podem ocorrer camufladas sob cortinas de lares aparentemente irretorquíveis. Livres de fiscalização e julgamentos externos.

Nos damos conta disso? Enquanto pais? Se não como pais, como espectadores? Ou, ainda, partícipes de círculos familiares em que se evidenciam pelos olhares assustados de algumas crianças, o terror que vivenciam naquele que deveria ser seu refúgio, abrigo e ‘ninho’? numa palavra, o seu lar? E se nos damos conta, como nos comportamos diante disso?

As relações parentais, como quaisquer outras, são construções. Lentas construções que se desenham e se erigem numa tessitura delicada, por vezes frágil, por vezes robusta; em qualquer caso, com uma parte sempre resultante do material que nos é oferecido e que se amalgama com aquele que trazemos conosco e vai além de nossa identidade genética.

Nós, adultos, somos a soma de tudo isso: dos afetos ou desafetos de nossos pais, daquilo que e como aprendemos, dos medos que criamos ou nos foram incutidos, do exercício da autoridade que nos tornou seguros ou daquele que nos fez inseguros. Somos, em parte e enfim, o que nossos pais também fizeram de nós.

Há muito tempo, lembro-me de ter lido numa entrevista com a psicóloga Lídia Aratangy, uma frase marcante e, a meu ver, absolutamente verdadeira: “educar filhos não é tarefa para preguiçosos!”

De fato, não é.

Se pensarmos na gritante diferença entre ter autoridade e ser autoritário, já temos um bom começo para que se compreenda a plêiade de significados a partir de uma colocação aparentemente simples.

É claro que impor-se pela força e pelo terror é um caminho mais curto e mais rápido. Mas, será o mais eficiente a longo prazo?

Para esta mesma autora, “não basta que a criança respeite o não, ela precisa compreender o motivo da interdição, de modo a poder aplicá-la em situações semelhantes. Ela precisa compreender e aceitar esse código, pois dele depende sua inserção na comunidade humana, na qual, ao contrário do que se passa entre os animais, a lei não é a da coerção pela força”.

Os filhos precisam de limites e disciplina, até porque a sua imposição transmite segurança e faz com que saibam que são amados, cuidados e protegidos. Ninguém com o mínimo de bom senso aprova a total ausência de limites e disciplina, que costuma produzir como resultado “pequenos tiranos”: crianças/adolescentes que agem como se o mundo lhes devesse algo que eles pudessem exigir de quem, onde e quando bem entendessem. Aqui, a total ausência de autoridade pode revelar não o cuidado, mas em seu lugar, a negligência, a displicência e a pouca disposição para a tarefa (bastante trabalhosa) de ensinar, exigir, corrigir, dialogar etc. É, pois, o outro extremo da corda.

Podemos, então, concluir que o pai de Kafka não o amava?

Não! Assim como não podemos concluir que assim ocorra hoje, com tantos pais/mãe que ajam da mesma forma. Talvez – como suponho em relação ao pai do Kafka – só estejam agindo da maneira que julgam ser a correta. Reproduzindo, quem sabe, o modo como foram criados (e que hoje, se orgulham de dizer que “deu certo”!).

De Kafka, conhecemos o resultado: um dos grandes clássicos da Literatura Mundial. A um preço que, se pudesse, escolheria não pagar.

Esta é uma suposição, claro, mas acompanhe o trecho e veja se não me dá razão:

“Minha atividade de escritor tratava de ti, nela eu apenas me queixava daquilo que não podia me queixar junto ao teu peito. Era uma despedida de ti, intencionalmente prolongada, com a peculiaridade de que ela, apesar de imposta por ti, corria na direção que eu determinava. Mas como tudo isso era pouco”

No fundo só vale a pena falar nisso porque aconteceu em minha vida; em qualquer outro lugar isso nem sequer seria percebido, e também porque isso dominava minha vida, na infância como uma intuição, mais tarde como uma esperança e ainda mais tarde como um desespero, muitas vezes, ditando-me – se a gente quiser, mais uma vez conforme o teu figurino mandava – minhas poucas e pequenas decisões.”

Para o pai de Kafka não houve tempo, disposição ou contexto histórico que permitisse a reflexão e a consolidação daquele muro intransponível que impedia que o filho pudesse se queixar em seu peito. Para o pai de Kafka, o que ficou foi a sua autoalienação da vida do filho.

Para os pais (e mães) de hoje, que haja tempo e disposição para a reflexão, correção, desconstrução, construção. Porque na atualidade, se não fosse por todo o restante já produzido sobre estas relações (na História da família, Psicologia, Direito, Antropologia etc) há, ao menos, o registro histórico materializado perenemente na bela, tanto quanto dolorosa, “Carta ao pai”.

Da leitura da obra, uma certeza: nenhum pai(mãe) que ama seu filho desejaria para ele uma vida “kafkiana”. Nem que fosse para, ao final, tornar-se um “Franz Kafka”!

Extrema, 27/12/18.

Milton Biagioni Furquim

Juiz de Direito

Milton Furquim
Enviado por Milton Furquim em 27/12/2018
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