O Engajamento P(r)O(f)ÉTICO

O engajamento

P(r)o(f)ético

em Rubervam Du Nascimento

Muito já se disse - e ainda é pouco - sobre a produção de Rubervam Du Nascimento: técnica apurada, inventividade, rigor, atualidade, retorno à origem primitiva... Encômios à parte, o que nos chama a atenção em Rubervam Du Nascimento é a "religiosidade", imanente e latente, um quê teológico, que perpassa todo o seu projeto lítero-existencial, permeado de altíssimos e baixos momentos estéticos.

Não é à toa que a Profissão dos Peixes (1987/1993) traz, no alto da página de apresentação, um fragmento manuscrito em grego do Novo Testamento. E as referências religiosas, bíblicas e extra-bíblicas, são abundantes no texto de Rubervam, veladas e claras. Para quem não sabe (e não sei se o poeta-advogado vai gostar de trazermos isso a público), o Rubervam é um ex-pregador adventista com vivência e formação cristã e grande familiaridade com o texto bíblico (chegou a saber de cor todo o livro do vidente Ezequiel). E isso só é trazido à baila, leitor, porque é de importância fundamental, para a compreensão do projeto estético-literário rubervaniano

Os indícios da "religare" do poeta estão também presentes em Marco Lusbel desce ao Inferno (Por que não sobe aos céus?) - 1998. O olhar e a práxis poética de Rubervam são a de um profeta contemporâneo (profeta, no sentido etimológico, não é aquele que vê, que fala pra frente?), compromissado com o seu tempo histórico existencial, um verdadeiro "NAVI", cheio do Ruach Ha-Kadosh (O Espírito Santo), vociferando contra a injustiça e anunciando a misericórdia, a paz e a verdade do seu Heloim.

Talvez por isso, o que salta aos olhos, tanto em Profissão dos Peixes, quanto em Marco Lusbel desce ao Inferno, é a FANOPÉIA em equilíbrio com LOGOPÉIA (o poeta pensa o mundo e a vida), juntamente com a MELOPÉIA (onomatopéias, assonâncias, aliterações, rimas ocasionais), num estilo singular, que reúne experiências poético-estéticas variadas (clássicas, modernas, concretas), que, em síntese, são a VOZ DO POETA. Rubervam dialoga não só com existência pessoal e coletiva, com a própria linguagem (em metapoemas de ritualística estético-vivencial), com os poetas contemporâneos e a tradição literária dos antepassados (são muitas referências-alusões: Ferreira Gullar, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Torquato Neto, Élio Ferreira, Leonardo da Senhora das Dores Castelo Branco), mas também com a "eternidade", através das já citadas indicações mitopoéticas bíblicas e pagãs.

Em a Profissão dos Peixes, por exemplo, há pistas teológicas e religiosas em abundância a partir do projeto existencial vida-palavra, em uma obra a ser revista e diminuída, em ciclos de tempo, até a impressão em cartaz da PEDRA-PEIXE, a imagem-símbolo-síntese (não seriam esses dois ícones, dois símbolos religiosos, hebreus-cristãos, da perenidade e da multiplicação?), "até reviver no homem nome e significado". Aliás, a palavra, o verbo, a criação poética, em Rubervam Du Nascimento, aspira a não somente nomear o ser, mas sê-lo, fazer tocar, sentir, transformar o interlocutor/leitor. E, nisso, o poeta e pregador retoma às origens a palavra DAVHAR (em hebraico), que é a própria coisa nomeada, palavra-coisa-fato, substancial e substantiva.

"Verbo sarado nas mãos", "faz o animal selvático/ segundo suas caçadas", "na ânsia de outro céu/ ditas palavras por Deus", "o rio solta espírito de peixes/ sacrificado a um deus/ de coração frouxo... Como já DISSEMOS, são muitas dicas teo-religiosas em Rubervam, para quem a poesia é um sacerdócio, dedicado à iluminação e à revelação da vida, e, num plano maior, à ressurreição da própria humanidade. Por isso, na maioria das suas entrevistas, o apóstolo e pregador de poesia Rubervam Du Nascimento enfatiza o seu compromisso com a palavra, como criadora e transformadora, num plano estético, da natureza humana e da sociedade.

Em Marco Lusbel desce ao Inferno (o nome do comandante zapatista é singularizado, para conceder um efeito poético ambivalente, polissêmico, de "territorialidade") o veio teologal transcorre livremente e com mais intensidade estética: línguas de fogo/ na boca/ de Abraão/ ira solta/ na fala/ do Senhor/ abrasador/ o calor/ nas entranhas/ amor/ amor/ amor". Aliás, é esse discurso poético-revolucionário-amoroso, através de múltiplas técnicas (a colagem, a espacialização visual, o intertexto, o transtexto) que se sobressai na poesia rubervaniana. Amor mesmo, eu diria, ágape, universal, cristão, redentor, que se (re)inaugura através do culto estético à palavra, como substância de transformação qualitativa do gênero e espécie humana. A rebeldia, no poeta da Ilha de Upaon-Açu, a meu ver, é condicionada pelo princípio desse amor universal, num discurso poético engajado, no "momento histórico" e na "tradição de inventividade literária", que remonta às suas confluências estéticas.

Como poeta, Rubervam Du Nascimento, sabe-se insubmissão e rebelde à organização mercantil e tecnotrônica do real, à alienação do ser em seu tempo-espaço político-histórico. Como ser integral (homem/poeta), a "profesia" (permitam-me o neologismo) de Rubervam (é fácil identificar fanopéias apocalípticas em seu texto) é a crença (messiânica?), na revisitação, na reinvenção interior do Homem, porque somente a autêntica "poiésis" comunga com a vida e a esperança: "todos/ em comunhão com o dia/ a noite deu baixa/ entregou as armas/ luminosa manhã/ nas palavras". É o que a visão bíblica do apóstolo João nos anuncia, em Apocalipse: a esperança do cumprimento do processo de redenção messiânica do homem-mundo-kosmos, após uma necessária purificação restauradora e catártica.

Em suma, a poesia de Rubervam Du Nascimento é um canto pós-moderno de esperança. Por isso, busca reordenar o homem-poeta ("Pega fogo esse exercício de purificação"), através de uma visão messiânica e redentora da vida e da humanidade, contextualizada estética e historicamente em nosso tempo, porque recria "flor e nome", à luz do sangue, músculos e suor. Poesia que precisa, ainda, ser devorada / decifrada como o livrinho que o anjo entregou a João, o discípulo amado, doce ao paladar e amargo no estômago. Um nocaute na desesperança.

POEMAS (De Rubervam Du Nascimento)

4

palavras secam

na pele dos vivos

poetas saem

em silêncio

deixam notas

debaixo das portas

a arma é a poesia

cilada guardada

no tempo

6

voa América

à vista ossos

11

O PARAÍSO MORA AO LADO

AVISA O OUTDOOR DE OLHOS GRANDES

guarda de trânsito

remenda asfalto com os dentes

interdita as pessoas que passam carros

lotados pra onde?

por cima de todo mundo passa

tudo pára o transeunte

AVISA O OUTDOOR DE OLHOS GRANDES

O PARAÍSO MORA AO LADO

13

vozes no vôo 402

alma chama corpo

outra em chamas

despacha o morto

quem são elas?

mistério na lista de espera

envolvam a cabeça

com as mãos

curvem as pernas

para um breve pouso

AIR TRANSPORT WORLD

a cor da morte é azul?

24

línguas de fogo

na boca

de Abraão

ira solta

na fala

do Senhor

abrasador

o calor

nas entranhas

amor

amor

amor

25

perseguido pela escuridão

Lusbel acende a luz

percorre labirinto

aberto na própria mão

beijo seu rosto

não lembra de mim

não lembro dele

há tempos Lusbel

me mostrou

a escada de Jacó

ele dorme

e eu durmo

36

Antonia Flor, 80

na mira de fazendeiros

com seus fuzis de silêncio

montou seu cavalo de sonhos

pra enfrentar a noite

nunca mais voltou

a última vez que foi vista

repartia lotes de nuvens

com os perseguidos do céu

40

símbolo na boca

fumaça na floresta

riscos na tela

espalharam a notícia

bobagem ele só existe

na capa da revista

corre mundo cavaleiro

pinta muro grafiteiro

belo mural de Rivera

42

que importa

além do recado

deixado na porta

da roupa espetada

no pé de anjico

parto nu para o poema

beijo a folha de papel

em branco

discuto com ele

o tamanho da palavra

invento outro tempo

e ele me inventa

49

todos

em comunhão

com o dia

a noite deu baixa

entregou as armas

luminosa

manhã

nas palavras

Elias Paz e Silva
Enviado por Elias Paz e Silva em 17/09/2007
Reeditado em 29/10/2007
Código do texto: T655660
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