Vento que te quero Vida
 
                                                       
Lutar com o vento é a luta mais vã.
 


Se alguém buscar o verbete vento, no dicionário, pode encontrar algo assim: ar em movimento, agitação, atmosfera, ar em deslocação, coisa vã, influência que favorece ou prejudica etc. Como se pode ver, este vernáculo de cinco letras, de origem latina (ventu), nos oferece uma gama de possibilidades, que, a depender do contexto, pode nos animar ou nos desanimar. Pode ser benéfico ou maléfico.
 

De modo geral, palavras soltas ficam desprovidas de sentido.  Contudo, se alguém se encontra num bosque e, de repente, abre os braços e diz: “Ó, vento!” Entende-se que nessa curta expressão esteja a demonstração de um momento prazeroso. E assim se faz necessário registrar (mesmo que superficialmente), que língua e escrita são dois sistemas distintos de signos, onde o segundo existe para representar o primeiro.
Seria como falar das coisas sem, necessariamente, ter que carregá-las nas mãos ou sobre os ombros. Fato este que, obviamente, desacata a proposta do escritor satírico, anglo-irlandês, Jonathan Swift (1667-1745), cujo “interessante projeto” consistia em abolir totalmente as palavras, uma vez que estas são apenas nomes para as coisas.

Segundo Swift, tais coisas deveriam ser carregadas pelos falantes. Por exemplo: se o assunto em pauta fosse uma mala, esta deveria estar presente. Eis que surge a inconveniência: os objetos não passariam de fardos pesados sobre as costas dos humanos quando tivessem que tratar de assuntos diversos por longo tempo e em locais diferentes. E se assim fosse, como se faria, então, para falar do vento e dos seus signos associados? Como transportá-los?
 
Para o suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913), considerado o pai da Linguística Moderna, um signo (palavra) pode ser associado a outros signos, basicamente por três modos:

 
Pelo significado – considerando seus sinônimos e antônimos. Assim, vento significa ar em movimento, tendo como sinônimo o signo ou a palavra atmosfera; e como antônimo, o signo inércia.
Pelo significante – considerando suas imagens acústicas (sequência de fonemas) semelhantes; isto é: vento pode ser associado às palavras: elemento, atento etc.
Por meio de outros signos – como processos morfológicos comuns. Neste caso, vento associa-se a ventar, ventilar e ventania, em razão do mesmo radical /vent/.
 
Pois bem; deixando um pouco a Linguística de lado, voltemos o nosso olhar para a Literatura. Contudo, vale lembrar que a Linguística, no seu papel de ciência, descreve seu objeto como ele se apresenta, sem especulações e sem julgamento de como a língua deveria ser. Já a Literatura, vista como a linguagem do estranhamento, dotada de subjetividade pela sua carga metafórica, busca criar e recriar mundos, dando novos significados as palavras e ampliando o seu campo de abrangência.
 
Assim, podemos explorar o vocábulo vento que é algo recorrente na literatura mundial. Dentre outros, tem-se o vento de O Morro dos Ventos Uivantes (Inglaterra) o vento de E o Vento Levou (EUA) e o vento de O Tempo e o Vento (Brasil). Cada um, no seu contexto, traz em comum o tema vento que sendo utilizado como metáfora (ou não) liga mundos através da palavra escrita, nos levando para dentro de suas histórias, sejam elas de caráter fictício ou real com narrativas surpreendentes. É dispensável afirmar que isso tem sido motivo de acesso a outras culturas, de entretenimento, de intercâmbio linguístico, de enriquecimento cultural, e por que não dizer de experimentar, de suscitar sentimentos?
 
E por falar em sentimentos, é através da Poesia, este gênero muito difundido da Literatura deste a Antiguidade, quando os gêneros nobres se faziam cultivar em versos, que os sentimentos desde sempre são universalizados. Neste estudo, em particular, é desnecessário o nome do autor, pois a estilística tem o papel de interpretar escolhas apresentadas no poema, dando enfoque ao texto, e não ao autor. Este não desaparece. Pelo contrário, forma-se, indiscutivelmente, um triângulo: autor, texto e leitor. E foram os versos bem soprados, de um poema que li, recentemente, que me estimularam a escrever sobre este tema, vento – palavra cheia de magia. Vejamos o que diz o autor/poeta:
 
Lá chega o vento e num instante
de pequenino vira um gigante:
– não poupa nada, vira telhados,
Invade a casa por vidros quebrados.
 
Ao observar o primeiro verso, nota-se que o vento chega com muita rapidez.  E quando adentra o segundo verso, num piscar de olhos, já sai da condição de “pequenino” para virar “um gigante”.  Aliás, é pela repetição do verbo virar que as suas ações se intensificam. Talvez num outro contexto essa repetição empobrecesse o poema.  Só que neste caso, não. A força do vento registrada pelo eu-poético é inquestionável. Quando ele se agiganta traz inquietação ao leitor que, a depender do seu conhecimento de mundo, pode até pensar no gigante Adamastor, que, nos Lusíadas, de Luís de Camões (1524?-1580), aparece no Canto V- estrofe 60, onde “os duros Casos, que Adamastor contou futuros” se referem a uma vingança aos portugueses, tendo, como grandes aliados, os ventos  de direções opostas, causando medo e tragédias em alto-mar.
 
Retomando os versos, em análise, percebe-se que o eu-poético não quer a responsabilidade de contar uma história nos moldes de Camões.  Ele apenas observa e registra a rebeldia tamanha dum tipo de vento que parece violar as leis dos humanos quando: “Invade a casa por vidros quebrados.” E como autêntico invasor, ele ignora os feitos dos homens, e tira deles, sem compaixão, telhados e “não poupa nada”, como reza o terceiro verso. E, de tão insurgente, adentra a casa sem pedir licença.
 
Nota-se que esse vento gigante tem uma conotação diferente daquele vento que atinge L’ Infinito (O Infinito) – poema do grande poeta italiano, Giacomo Leopardi (1798-1837) – que, do alto da colina, mergulhado em suas reflexões, faz este registro: “E como do vento ouço o agitar entre essas plantas...” Trata-se de vento, sim, porém não um vento dominante e devastador como este que ora se vê como objeto de estudo, que parece ganhar força a partir do próprio vocábulo /vento/.

É praticamente impossível se falar de vento sem remeter a movimento, a uma ação contínua. E, linguisticamente falando, pela força semântica contida nas palavras /vento/, /vira/ e /invade/, o dano nos parece dantesco. Ademais, nesse contexto, o vento (de forma implícita) traz os seus signos associados: o verbo ventar (ação dotada de forte sonoridade) e ventania (substantivo feminino) com conotação de advérbio. Por quê? Porque pode se passar a mesma mensagem de forma diferente, afirmando que ali o tempo é de ventania; e assim temos uma locução adverbial (preposição de + substantivo ventania).

 
E não é que a Linguística voltou! Sim. Impossível a sua ausência nessa relação sintagmática(*). Embora ambas: Linguística e Literatura nos façam lembrar de um caldeirão de sopa de leguminosas (ou sopa de letras e palavras?), onde juntas dão um certo sabor ao alimento, todavia, é possível identificar cada uma, assim como a presença do óleo e da água no recipiente –, cada qual no seu espaço, cumprindo a sua função.
 
Sem querer entrar no campo da Fonética – disciplina que estuda detalhadamente os sons da fala –, pode se afirmar que a representação física do vocábulo vento contribui com a fala tensa do eu-poético, no momento em que a primeira sílaba de vento /ven/ lembra um sopro, pela constrição do ar entre o lábio inferior e os dentes incisivos superiores, quando da ação da fricativa labiodental [v], no seu ponto ou zona de articulação.  
 
E se um dia o grande gênio italiano, Leonardo da Vinci (1452-1519) afirmou que a poesia é pintura cega, de forma mui respeitosa, aqui peço licença para dele discordar. Porque no fragmento (estrofe) do poema, em pauta, está a demonstração da pintura, dum vendaval, feita com palavras, cujo vento vê e sabe por onde vai passar. No contexto apresentado, ele escolhe o telhado e transforma suas telhas em cacos. “E invade a casa por vidros quebrados.” Sinal de que sabe que ali há espaço para ele atuar, causando estrago, conforme descreve o último verso, acima, a ponto de o leitor sentir o pontiagudo dos vidros, que podem ferir não só corpos, mas, também, ferir almas.


O eu-poético, como bom observador, não ousa lutar com o vento. Ele apenas o examina. Certamente, por ser dotado de sabedoria, ele prefere preservar a vida a travar uma batalha vã.
 
 
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(*) Para Saussure, a relação sintagmática, do grego syntagma, significa coisa posta em ordem. E pode se afirmar que a linguagem obedece dois eixos: um vertical (de seleção) outro horizontal (de combinação), no momento em que falamos ou escrevemos algo, ordenando as palavras para que a mensagem seja decodificada.