Gilles Deleuze e sua Lógica do sentido

Abenon Menegassi

A lógica estóica alcança uma inteira originalidade em relação à filosofia de Aristóteles. Um primeiro ponto a ser levantado quanto a esta originalidade diz respeito a que o estoicismo tem uma visão de mundo muito diferente da visão de mundo aristotélica. Para Jean Brun no livro O estoicismo, embora aristotelismo e estoicismo sejam ambos empirismos, “...Aristóteles tem uma visão de mundo mais estática e hierarquizada...”, enquanto o empirismo dos estóicos é “...um empirismo da compenetração do homem e do mundo”. Isso implica em uma distinção entre conhecimento e sabedoria.

O mundo para Aristóteles é estático por que “...o movimento é apenas a tradução de incompletude (p. ex. a semente é incompleta em relação à árvore), na medida em que ele não é mais que a passagem da potência ao ato.” No movimento de passagem da potência ao ato aristotélico, cada coisa do mundo realiza aquilo que é, sem deixar de ser o que é para passar a ser outra coisa. Neste sentido, a semente de abacateiro realiza o abacateiro e não outra coisa.

E, para Aristóteles, o mundo é hierarquizado por que, no mundo, “... cada indivíduo é definido por um conjunto de atributos...”, onde, “... não há mudança de um gênero para outro, em virtude do princípio de identidade...”.

Assim, cada indivíduo possui um lugar no mundo, um lugar para o qual foi feito. Passar da potência ao ato é realizar o “movimento” (estático) de ocupação do lugar a que se está destinado no mundo (teleologia; o mundo tende a um fim), e a virtude de cada indivíduo consiste em desenvolver o hábito de ocupar este lugar no seio da hierarquia do mundo; “... hábito que lhe confere um equilíbrio no seio desta hierarquia em que está integrado”.

Uma das características principais do empirismo aristotélico é que ele se desenvolve enquanto formalização da experiência onde os sentidos são “... os mensageiros das qualidades atributivas”. A proposição aristotélica, derivada dos sentidos que, por sua vez, passam pelo entendimento, conflui para um juízo de inerência. O que significa isto? Significa que a proposição aristotélica atribui “... uma qualidade sensível a um sujeito através ou por intermédio do verbo ser”. Portanto, a proposição lógica elementar de Aristóteles adquire a forma: S é P, onde S é o sujeito e P é o predicado.

É preciso compreender que o silogismo aristotélico “versa sobre o geral”, quer dizer, a ciência de Aristóteles, sendo aquela que desenvolve proposições sobre “... características comuns de um certo número de indivíduos...” que existem particularmente. Ciência das características comuns dos indivíduos particulares, tal é a ciência de Aristóteles.

Assim, se pode versar silogisticamente partindo das características, p. ex., do homem em geral, para chegar ao atributo do homem em particular, atributo que lhe é inerente, no sentido forte do termo, pois, cada particular participa dos atributos comuns, inerentes ao geral. Silogisticamente só se pode dizer que “Sócrates é mortal” por que se tem como premissa principal que “todo homem é mortal”. Uma vez classificado como “homem” através do termo médio, “Sócrates” pode ser classificado como “mortal”, na conclusão.

O que aconteceu é que a partir da afirmação de que existe uma característica comum a todos os homens, foi possível atribuir um mesmo predicado comum, do geral, ao existente em particular. O que se fez, então, foi classificar o existente em particular, por ele pertencer ao universo em questão, como pertencente predicativamente, ao universo considerado. E, para Aristóteles, esse predicado se mistura com a coisa, ele atravessa a coisa e se faz uma parte essencial da coisa. Por isso, para Aristóteles conhecer é, sobretudo classificar. Eu conheço o objeto quando eu o classifico e, eu só posso classificá-lo quando eu o insiro, o torno inerente predicativamente a um universo qualquer, tomado por suas características comuns. Para Aristóteles, conhece-se o homem quando se atribui a ele um predicado que seguramente se encontra em todo o universal homem. Mas, seguramente não por que se observaram de algum modo todos os homens do mundo para saber que são mortais, mas por que simplesmente se afirmou a sua mortalidade (indução) e a adotou como característica comum a todos os homens.

A lógica, ou silogística, aristotélica, procede a um conhecimento que ao versar sobre a “... extensão dos conceitos procura descobrir relações de inclusão ou de exclusão...” partindo do geral para o particular (dedução), mas também, do particular para o geral (indução), diz-se “isto é”, “isto não é”, e assim por diante.

Em Platão, a causa primeira era a Ideal. O mundo era apenas cópia. Agora, para os estóicos, no seu realismo espiritualista, a causa desce para o mundo e ocupa os corpos, a matéria, as substâncias, enquanto a Idéia vai para o lado dos efeitos, dos incorporais.

Deleuze, no texto Lógica do sentido, p. 8, afirma que os estóicos realizam uma reviravolta radical tanto no platonismo quanto no aristotelísmo. Diz ele:

“Os estóicos procedem a primeira grande reviravolta no platonismo, à reviravolta radical. Pois se os corpos, com seus estados, qualidades e quantidades, assumem todos os caracteres da substância e da causa, inversamente, os caracteres da Idéia caem do outro lado, neste extra-ser impassível, estéril, ineficaz, à superfície das coisas: o ideal, o incorporal não pode ser mais do que um “efeito”.

Antes, na p. 7 do mesmo texto, ele afirma que o que os estóicos estão operando é, sobretudo, uma cisão totalmente nova da relação causal. Esta cisão acontece porque o que os estóicos realizam é uma espécie de desmembramento da relação causal, e que esse desmembramento visa a refazer “... uma unidade de cada lado”. Quais lados?

Em primeiro lugar, diz Deleuze, os estóicos remetem as causas as causas, havendo entre elas uma ligação entre si. Então, temos já aqui uma linha das relações causais, o que os estóicos chamaram de Destino, mundo, Deus, natureza. Não é mais como em Platão, para quem as idéias (inteléquias fora do homem), eram causas das matérias do mundo, que, por sua vez, eram cópias daquelas Idéias.

Em segundo lugar, os estóicos remetem os efeitos aos efeitos, havendo igualmente certas ligações entre si (quase–causas). Então há, também, uma linha das relações de efeito entre si.

Causas

DESTINO, mundo, Deus, natureza

CORPO> palavra, significante

4 ELEMENTOS> fogo terra água ar

______________________________________________________________________________________________________________

EFEITOS linguagem

INCORPORAIS sigdo.

QUASE-CAUSAS

Feito este desmembramento, Deleuze faz a consideração de que para Carrol, assim como para os estóicos, “Esta dualidade nova entre os corpos, ou estados de coisas, e os efeitos ou acontecimentos incorporais conduz a uma subversão da filosofia” .(P.7), isso por que a visão de mundo concebida a partir desta subversão vai considerar que “... agora tudo sobe à superfície”.(p.7). O que isso quer dizer? Quer dizer simplesmente que agora o mundo não é mais o simulacro, tal como o entendia o platonismo. Quer dizer que agora o mundo não é mais sombra do mundo das Idéias platônicas, ao contrário, o mundo agora é devir, efeitos manifestos, superfícies que transmutam. No platonismo, do ponto de vista do conhecimento, partia-se da Deusa (Idéia ou Razão), passando pela doxa, à Epstemé. A teoria das reminiscências afirma que qualquer um podia se “lembrar” do verdadeiro conhecimento existente no mundo das Idéias, do qual participou um dia. Agora, para os estóicos, o conhecimento ou ciência terá como objetivo, através da dialética, impor a racionalidade a este mundo dos corpos e dos incorporais.

Na pág. 09, Deleuze afirma que “O acontecimento é coextensivo ao devir, e o devir, por sua vez, é coextensivo à linguagem”.Sendo assim, isso coloca o problema de como é possível fazer a passagem do acontecimento ao devir e à linguagem.

Trata-se de realizar a destituição da profundidade. Como? Através do paradoxo. Bem, dizem os estóicos e, com eles Deleuze, “O paradoxo destitui a profundidade”.(p.9). Por isso, os estóicos amam os paradoxos, e eles se servem deles de modo novo: “ao mesmo tempo como instrumento de análise para a linguagem e como meio de síntese para os acontecimentos”.(p.9).

“O paradoxo é, em primeiro lugar, o que destrói o bom-senso como sentido único, mas, em seguida, o que destrói o senso comum como a designação de identidades fixas”. (p.3).

Por isso, em Lógica do Sentido Deleuze distingue trinta e quatro séries de paradoxos que formam a sua teoria do sentido, presentes também na obra de Lewis Carrol. Por sua vez, o paradoxo nasce no coração da dialética estóica.

Todos sabem que a dialética é invenção grega. Foi Zenão de Eléia (480-430 A.C). discípulo de Parmênides quem a inventou mais ou menos cem anos antes de um outro Zenão, (336-264 A. C.) agora de Cicio, Itália, fundar a escola Estóica. Aliás, Estóico vem de Stoa que significa pórtico ou ponte. O pórtico de que se trata é o de Poecilo ou Poekilo. Poecilo significa revestido de pintura, por que “... Polignote o decorara de pinturas para purificar este lugar (o stoa Poecilo) onde, sob a tirania dos Trinta, mais de mil e quatrocentos cidadãos haviam sido massacrados”.(Brun p. 17-18). Filosofia do pórtico, portanto, é o termo utilizado para designar o estoicismo. No começo, os alunos da escola deste Zenão de Cício eram chamados zenonianos, mas como era costume dar à escola o nome do lugar em que estava estabelecida, estes passaram a ser chamados de estóicos.

Pois bem, quem inventou a dialética foi Zenão de Eléia.

“Para os estóicos, a dialética vai ser justamente esta ciência dos acontecimentos incorporais tais como são expressos nas relações entre proposições e dos laços de acontecimentos tais como são expressos nas relações entre proposições. A dialética é realmente a arte da conjugação (cf. são as confatalia,”.(p. 9).

A ciência dialética dos estóicos tem a tarefa de eliminar o irracional e em crer que só a razão pura é atuante. Mas, esse racionalismo do “logos” não é o mesmo racionalismo de Sócrates, Platão e Aristóteles que se caracterizava por um racionalismo da inteligência ou intelectualismo. Como diz Brehier,

“Esse intelectualismo baseava sua realidade em um método dialético que permitia ultrapassar o dado sensível para alcançar formas ou essências afins à inteligência”. (Brehier, E. p. 41 História Da Filosofia)

No dogmatismo estóico não se conserva qualquer procedimento metodológico que visa a eliminar o dado imediato e sensível; antes, o de que se trata é de impor a razão a ele. Assim, como é que na dialética se estabelece o paradoxo, ou seja, como se pode construir proposições que exprimem através da linguagem os acontecimentos, segundo o modo como os entendiam os estóicos?

Na Terceira série: Da proposição, de Lógica do sentido, Deleuze tenta responder a esta pergunta. Mas, adianta ele “Tudo se passa na fronteira entre as coisas e as proposições”.(p.9). E é a dialética estóica que permitirá ao mais profundo e ao mesmo tempo imediato, que é a linguagem, fazer vir à superfície os acontecimentos e seus paradoxos.

“Os paradoxos aparecem como destituição da profundidade, exibição dos acontecimentos na superfície, desdobramento da linguagem ao longo deste limite”. (p.9).

Os acontecimentos puros são efeitos, efeitos de linguagem. “Estes subsistem na linguagem, mas acontecem às coisas”. (p. 26). Os efeitos são exprimíveis. A expressão ou enunciado (Lekton) é um incorporal exprimível por meio da proposição. Havendo muitas relações possíveis na proposição, qual a que convém aos efeitos de superfície, aos acontecimentos puros? Aqui não se trata de S é P. Veremos que em S é P, o predicado existe em S. Nos efeitos de superfície o sentido não existe na proposição, mas insiste ou subsiste nela.

Convém, para nosso propósito, que nos debrucemos um pouco sobre o conceito de Exprimível, pois é o exprimível que vai nos permitir entender como a lógica estóica concebe a proposição sobre as coisas do mundo. O que é um exprimível?

Para os estóicos o exprimível é uma das quatro espécies de incorpóreos. As outras três são o vazio, o tempo e o espaço. De acordo com o materialismo estóico, tudo é corpo. Como a lógica estóica não considera as coisas em geral, este mundo onde tudo é corpo passa a ser uma grande composição de indivíduos onde nenhum desses indivíduos é igual a outro indivíduo. Nada é semelhante a nada. Cada indivíduo possui uma qualidade que é só sua, própria; uma idiossincrasia. (Idion).

Então, se para Aristóteles o que importa é a forma geral, pois “... o indivíduo aparece no mundo sempre em face de uma generalidade”. contrariamente, para os estóicos ‘... A individualidade é uma noção fundamental e constitutiva “. (Brun, p. 50)”.

Para os estóicos cada corpo individual possui uma tensão interior. No caso do homem esta tensão interior é o espírito. Todo individuo é um corpo com um espírito. Trata-se, portanto, paradoxalmente, de um materialismo espiritualista. Os corpos, dizem os estóicos segundo Brun “... são as únicas realidades e a única substância. Sendo a matéria UNA, ela é o substrato dos elementos e a sua substância”. (Brun, p. 50).

Posto que tudo é corpo, tudo no mundo se liga. De acordo com a teoria estóica da causalidade e da harmonia universal, se tudo é corpo, e o homem é um corpo, então ele pode e deve unir-se ao universo, ao mundo e compenetrar-se com o mundo. O que é exprimível, embora incorpóreo, só o é através de uma expressão, de um enunciado (lekton), de uma proposição, seja através do onoma (nome) seja através da Lexis (frase). Por isso mesmo, tanto um quanto outro só podem ganhar realidade através da palavra, que também é corpo.

Pode-se dizer que para os estóicos a palavra é o significante. Por outro lado, aquilo que o significante exprime é o significado. Em complemento, aquilo que se encontra no exterior é o objeto. Considerar o objeto aqui é fundamental, pois sem objeto não se trataria de representação, mas imaginação já que a imaginação, para eles, repousa sobre nada e a representação repousa sobre um objeto.

Então, na palavra, que é corpo, encontra-se o exprimível, que é incorporal, e esse incorporal, contido na palavra, é o significado.

“A primeira grande dualidade era a das causas e dos efeitos, das coisas corporais e dos acontecimentos incorporais. Mas, na medida em que os acontecimentos-efeitos não existem fora da proposição que os exprimem, esta dualidade se prolonga na das coisas e das proposições, dos corpos e da linguagem”. ( L.S. pág. 25).

Aqui é preciso cautela! Como entender o fato de que o significado, que é incorpóreo, se relaciona com o significante, com a palavra, que é corpo? Não podemos esquecer que para os estóicos existe um desdobramento em duas linhas daquilo que é corpo e daquilo que é incorpóreo. Esta distinção opera uma espécie de efeito dobradiça, uma articulação, como vimos, entre aquilo que é causa e aquilo que é efeito. Existe uma diferenciação, concebida pelos estóicos, entre estes dois mundos. Deste modo, se por um lado o significante, que é corpo, pertence ao mundo das causas, do presente, por outro o significado, que é incorpóreo, pertence ao mundo dos efeitos, que é passado e futuro. A este desdobramento, Deleuze vai chamar de primeira grande dualidade que abre as séries de paradoxos. Como diz Brehier:

“Daí que a proposição não exige mais a penetração recíproca de dois objetos, impenetráveis por natureza, ela apenas exprime um certo aspecto de um objeto, na medida em que executa ou sofre uma ação; este aspecto não é uma natureza real, um ser que penetra o objeto, mas o ato que é o resultado mesmo de sua atividade ou da ação de um outro objeto sobre ele. O conteúdo da proposição, isto que é significado por ela não é, então, jamais um objeto, nem uma relação de objetos”.(Brehier, E. Theorie des Incorporels dans l`ancien stoicisme.Paris. Vrim, 1928, p.20).

Só nos resta, portanto, dizer que o exprimível, sendo um incorpóreo, que estando do lado do significado e do efeito, que o exprimível é o acontecimento puro, o puro devir, que une o passado e o futuro, que exprime o paradoxo. Agora, sendo o exprimível o acontecimento puro ou o puro devir, cabe-nos fundamentar como é que ele pode se expressar na proposição.

Veja, foi dito que o exprimível está do lado do significado que, por sua vez, é um efeito do significante. Não foi dito que o exprimível é o significado. De acordo com a física do estoicismo antigo, dois corpos podem se misturar por justaposição ou por fusão. Assim, eles se tornam Um. Mas, um corpo e um incorpóreo não se misturam. Deste modo, o significante não se mistura ao significado. Há uma barra aí. Além disso, o significado, que é um incorpóreo, não pode ser assimilado ao exprimível, não porque este seja um corpo, ele não o é, mas porque ele pertence a uma categoria de efeitos ainda mais sutil que o significado. Pertence a uma quarta dimensão da proposição: o sentido. Mas, entre o significado e o exprimível não há barra. Brehier refuta a hipótese de que o exprimível possa ser assimilado ao significado, contudo, escreve ele, “... isso não quer dizer que não exista uma íntima fusão entre o exprimível e a linguagem”, portanto, consideramos aí, o significado. (Brehier, E. Theorie des Incorporels dans l`ancien stoicisme.Paris. Vrim, 1928, p. 14-15)

Então, de um lado, o significante (palavra) e o objeto, do outro, o significado (efeito) e o exprimível. Agora, vimos que de um lado os corpos se misturam, se compenetram. E do outro lado? Do outro lado não. Já foi dito: o significado não pode ser assimilado ao exprimível. Então o significado não é o exprimível em pelo menos dois sentidos: nem por fusão nem por justaposição. Então, como se dá esta “íntima fusão entre o exprimível e a linguagem”, a que se refere Brehier? Este é o problema que Deleuze procura atacar em Lógica do sentido, e dele tirar as conseqüências fundamentais ao seu projeto.

Ressalvando: o exprimível só está do lado do significado enquanto efeito de linguagem. É, então, preciso retomar a questão que Deleuze coloca em Lógica do Sentido.: qual é o aliquid que ultrapassa as limitações da designação, da manifestação e da significação, e assim, do significado? Responde Deleuze: é o sentido. Portanto, o acontecimento puro, que é incorpóreo, e que é o devir, e que se apresenta como paradoxo, é o que é exprimível pelo sentido.O sentido é este aliquid que ultrapassa, sobretudo, a significação, sendo, portanto, uma quarta dimensão da proposição. Diz Deleuze:

“A questão é a seguinte: há alguma coisa, aliquid, que não se confunde nem com a proposição ou os termos da proposição, nem com o objeto ou o estado de coisas que ele designa, nem com o vivido, a representação ou a atividade mental daquele que se expressa na proposição, nem com os conceitos ou mesmo as essências significadas?” (p.20, L.S).

“O sentido é a quarta dimensão da proposição. Os estóicos a descobriram com o acontecimento: o sentido é o expresso da proposição, este incorporal na superfície das coisas, entidade complexa irredutível, acontecimento puro que insiste ou subsiste na proposição”. (p. 20, L.S.).

“O sentido, o expresso da proposição, seria, pois, o irredutível seja aos estados de coisas individuais, às imagens particulares, às crenças pessoais e aos conceitos universais e gerais. Os Estóicos souberam muito bem como dize-lo: nem palavra, nem corpo, nem representação sensível, nem representação racional. Mais do que isto: o sentido seria, talvez, “neutro”, indiferente por completo tanto ao particular como ao geral, ao singular como ao universal, ao pessoal e ao impessoal. Ele seria de outra natureza”. (p. 20 de L.S.).

Em Lógica do Sentido, Deleuze explica de várias maneiras porque o sentido é a quarta dimensão da proposição, e ele vai se exigir fazer isso, justamente para resgatar a originalidade estóica no que concerne à linguagem, para que a dimensão do sentido possa trazer à lógica, através do conceito de exprimível uma nova estrutura proposicional, o que resultará numa nova maneira de expressar ou atribuir predicação válida aos acontecimentos. Sobretudo, vai dizer Deleuze, o sentido não pode derivar nem da designação, nem da manifestação e nem da significação. Por qual motivo?

O Paradoxo de Lewis Carrol

Na “Terceira série: da Proposição” de Lógica do Sentido, Gilles Deleuze, levanta a questão sobre qual proposição seria conveniente para expressar ou exprimir os efeitos de superfícies. Na p. 13, ele afirma que diferentes autores concordam em que há três relações “... distintas nas proposições”. São elas: a designação, a manifestação e a significação. Após analisar cada uma destas relações, Deleuze as refuta concluindo que de fato existe uma quarta dimensão na proposição que é a que convém à expressão dos acontecimentos-efeitos ou acontecimentos puros.

Com relação à significação e seu primado sobre a designação e a manifestação, Deleuze levanta um problema: há um paradoxo no coração da lógica, o “Paradoxo de Lewis Carrol”, do texto “O que a tartaruga disse a Aquiles”, e que consiste no seguinte:

“Quando dizemos “logo”, quando consideramos uma proposição como concluída, fazemos dela o objeto de uma asserção, isto é, deixamos de lado as premissas e a afirmamos por si mesma, independentemente. Nós a relacionamos ao estado de coisas que designa, independentemente das implicações que constituem sua significação”.

Para que isso aconteça, acrescenta Deleuze, duas condições são necessárias. Primeiro é preciso que as premissas sejam “... efetivamente verdadeiras; o que nos força desde já a sair da pura ordem de implicação para relacioná-la a um estado de coisas designado que pressupomos”. (p.17).

Em segundo lugar

, “... mesmo supondo que as premissas A e B sejam verdadeiras, não podemos concluir daí a proposição Z em questão, não podemos destacá-la de suas premissas e afirmá-las independentemente da implicação a não ser admitindo que ela é por sua vez verdadeira, se A e B são verdadeiras: o que constitui uma proposição C que permanece na ordem da implicação, não chega a sair dela, uma vez que remete a uma proposição D, que diz ser Z verdadeira se A e B e C são verdadeiras... até o infinito”.(p.17).

Em suma, “... de um lado destacamos a conclusão das premissas, mas com a condição de que, de outro lado, acrescentemos sempre outras premissas das quais a conclusão não é destacável”. (p.17).

Deleuze nomeia de heterogeneidade à esta des-continuidade que aparece na relação entre os nomes e as coisas designadas por eles. Na designação, o nome dado a uma coisa necessita que um outro nome o sustente, gerando uma série infinita de definições. Pelo motivo lógico de que sendo A=A, ele não pode siginificar a si mesmo. E se o significante, que é o nome, convoca sempre outro que o definan então isso é ao infinito. Assim, não há início absoluto, sendo que apenas arbitrariamente é que se poderia colocar um termo original nesta série que a faça estancar. Este paradoxo da regressão ao infinito (proliferação indefinida) aparece de diferentes formas no texto de Carrol “O que a tartaruga disse a Aquiles]”.

Assim é que o sentido representa como que uma fronteira neutra, impenetrável, entre as coisas e as proposições. Pois, “o acontecimento subsiste na linguagem, mas acontece às coisas. As coisas e a linguagem acham-se menos em uma dualidade radical do que de um lado e de outro de uma fronteira representada pelo sentido. Esta fronteira não os mistura, não os reúne [...], ela é antes, a articulação de sua diferença: corpo/linguagem”. (p.26) Assim, esta dualidade aparece em ambos os lados:

Do lado da coisa, há as qualidades físicas e relações reais, constitutivas do estado de coisas; além disso, os atributos lógicos ideais que marcam os acontecimentos incorporais. E, do lado da proposição, há os nomes e os adjetivos que designam o estado de coisas e, além disso, os verbos que exprimem os acontecimentos ou atributos lógicos. (p.26)

Como atributo dos estados de coisas, o sentido é um extra-ser, ele não é ser, mas aliquid que convém ao não-ser. Como expresso da proposição, o sentido não existe, mas insiste ou subsiste na proposição. E era um dos pontos mais notáveis da lógica estóica esta esterilidade do sentido-acontecimento: somente os corpos agem e padecem, mas não os incorporais, que resultam das ações e das paixões. Este paradoxo podemos, pois, chamá-lo de paradoxo dos Estóicos. (p. 34).

Avançando um pouco mais podemos dizer que estes acontecimentos ideais que caracterizam os sentidos são singularidades, ou seja, são pontos singulares ou pontos sensíveis em um processo. É que o acontecimento ideal ou singularidade é de uma dimensão distinta das dimensões da designação, manifestação ou significação. Que são as dimensões que fazem com que a proposição incorra em círculo vicioso que não escapa “a maneira tradicional de dizer o ser, ou seja, a partir de categorias universais ou gerais e de Idéias supra-sensível, como vimos no começo. “A singularidade é essencialmente pré-individual, não pessoal, aconceitual. Como vimos, ela é completamente indiferente ao individual e ao coletivo, ao pessoal e ao impessoal, ao particular e ao geral - e às suas oposições. Ela é neutra. (p. 55).

Mas, perguntaríamos: como é que os estóicos não perceberam que se eles colocassem o significado do lado dos efeitos, eles não poderiam coloca-lo de volta no lado das causas para, com isso, dizer as coisas na sua corporeidade, pois só corpo se mistura com corpo? Mas, os estóicos não queriam dizer as coisas na sua corporeidade. Quem fazia isso era Aristóteles. Os estóicos querem escapar do problema que uma tal pretensão acarreta, que é o de querer dizer o ser por um não ser. Os estóicos escapam a este problema, justamente porque colocam o significado embaixo da barra, criando uma lógica dialética que se contenta em expressar os acontecimentos de outra maneira; não pelo que é no presente, mas pelo que vem a ser no transcorrer do tempo.

Para entendermos isso, é preciso levar em conta o que diz Brehier em História da filosofia sobre a dialética estóica. Segundo ele, a dialética estóica não se exerce sobre as coisas; ela se exerce sobre enunciados V ou F relativos às coisas; os juízos (axiómatas) são os mais simples desses enunciados, sobre os quais se pode dizer que são V ou F, de acordo com sua representação adequada ou não das coisas.

Esses juízos são aqueles que se compõem “... de um sujeito expresso por um substantivo ou pronome e de um atributo expresso por um verbo. O atributo (categórema) é uma expressão incompleta que reclama um sujeito, como p. ex. “passeia”. O conjunto do sujeito e do atributo: “Sócrates passeia”, forma uma expressão completa (autotelés) ou juízo simples”.

Na dialética dos estóicos, a conclusão não é dada em função de uma relação de inclusão de conceitos expressos por um juízo categórico; ao contrário, a conclusão é dada por uma relação que ocorre entre fatos expressos por proposições simples, “... cuja relação se exprime por um juízo composto (Ouk aplá axiómata). Ex. “se está claro, é dia”. Assim, em “é claro, é dia”, temos uma proposição simples relacionando fatos e em “se está claro, é dia” temos um juízo composto (hipotético).

São cinco o número de juízos compostos que a dialética estóica conhece:

1. o hipotético (synemménon) se x, então y

2. o conjuntivo ( ^ ): se é dia, está claro. A maior é uma hipotética

3. o disjuntivo (v): negação de um conjuntivo: não é verdade que Platão tenha morrido e que esteja vivo...

4. o causal (v): ou é dia ou é noite; é dia, não é noite.

5. o mais ou menos (v)

São esses juízos, simples ou compostos, que segundo Deleuze, darão aos estóicos condições de propor uma nova maneira de expressar os acontecimentos.

Muito mais poderia ser dito sobre o livro e o assunto em geral. Meu objetivo foi o de dar linhas gerais sobre o tema. Espero ter alcançado minimamente este objetivo.

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Bibliografia

Brehier, E. O antigo estoicismo. História da Filosofia. Editora Mestre Jou. São Paulo

________ Brehier, E. Theorie des Incorporels dans l`ancien stoicisme. Paris. Vrim, 1928.

Brun, J. O estoicismo. Edições 70. Lisboa, Portugal.