Hoje a noção de morte afeta muito a nossa vida, sobretudo em tempos de pandemia (coronavirus).

Hoje a noção de morte afeta muito a nossa vida, sobretudo em tempos de pandemia (coronavirus).

Com a morte batendo na porta o que devemos (temos) que fazer e comportar-se para ao menos nos consolarmos?

A Pandemia de COVID-19 tem produzido diversas narrativas sobre sua trajetória, desenvolvimento, controvérsias, entre outras. Neste sentido, já está em disputa entre historiadores, analistas políticos, epidemiologistas e teóricos de várias origens e correntes epistemológicas, uma versão dominante e estável dessa pandemia que trouxe ao mundo modificações inimagináveis e que contrariam o status quo do mundo moderno impondo a todos uma “nova ordem mundial”. Seria castigo de Deus

Acontece que a produção discursiva sobre a COVID-19 e suas consequências, como qualquer outro fenômeno social, encontra-se imersa em enredamentos políticos, científicos, econômicos, morais e culturais.

O ano de 2020/2021 foi e está sendo doloroso para todo mundo. A pandemia de covid-19 causou muitos estragos na vida de milhões de pessoas – muitos morreram e muitos foram contaminados e sofreram as graves consequências da doença. Em todos os países, os mais pobres sofreram os maiores impactos, perdendo emprego e renda, enquanto os mais ricos conseguiram se recuperar em tempo recorde. A pandemia de covid-19 expôs, alimentou e aumentou as desigualdades econômicas, de raça e gênero por toda a parte.

Nosso injusto sistema econômico está permitindo que os super-ricos acumulem imensas fortunas enquanto dificulta a vida de bilhões de pessoas. Do jeito que tem funcionado, a economia global está dificultando a sua vida, se você for pobre, mulher ou de grupos étnicos e raciais, como negros, indígenas e quilombolas.

A luta por um mundo mais justo e menos desigual tem que ser prioridade dos esforços de recuperação econômica. Os governos têm que garantir que todas e todos tenham acesso à vacina contra a covid-19 e apoio financeiro para lidar com os efeitos da pandemia. É preciso investir em serviços públicos, criar milhões de novos empregos e assegurar que todas e todos tenha educação e saúde de qualidade. É preciso também que os mais ricos e as grandes corporações paguem uma parte justa em impostos. As economias têm que funcionar para todas e todos, não apenas para um pequeno grupo de privilegiados.

A linha tênue entre o cuidado, controle e a estigmatização coloca em risco a integridade moral desses sujeitos. Não é muito difícil, por exemplo, identificar o estigma que se formou em torno dos povos ou pessoas com traços físicos asiáticos no início da então epidemia na China, ou seja, antes mesmo do reconhecimento da pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Houve e ainda há um processo violento de culpabilização dos chineses pela origem do novo coronavírus e sua suposta disseminação no planeta. Uma das questões que se tornou impregnante nas notícias, diálogos cotidianos e planejamento de ações de isolamento e flexibilização do distanciamento social, é a justificação moralcientífica de que as mortes desses indivíduos são esperadas, previsíveis e, portanto, podem ser naturalizadas.

Portanto, não há nada de natural ou esperado nas mortes dessas pessoas, nem deve ser utilizada retoricamente a justificativa epidemiológica para atenuar os óbitos. O perigo da “normalização” da morte é o relaxamento das medidas de proteção e tratamento dessas pessoas em tempos de escassez de recursos e colapso dos sistemas de saúde.

Del Campo reuniu em seu livro Pensar la pandemia (editora Dykinson, 2021) uma dúzia de trabalhos sobre os efeitos da covid-19 além da saúde e a economia. Em um destes estudos, Alejandro González Jiménez-Peña, especialista em filosofia da morte, acrescenta uma razão antropológica adicional para esta camuflagem da morte: “Antigamente ela era silenciada, era um tabu até ontem, antes da pandemia, e poderíamos continuar dizendo que é um tabu hoje em dia, apesar da pandemia”.

González relata como a “morte cotidiana”, a anterior à pandemia, havia se tornado uma “morte esquecida, escondida, distante, como assunto dos outros”.

Realmente. O assunto morte nunca era assunto para se travar uma boa conversa em uma mesa de bar. Quanto muito por alguns minutos ao se comentar o passamento de algum ente próximo –querido ou não, ou mesmo um conhecido. Logo já passávamos para o futebol, a novela, ou então apreciar o rebolado da morena desfilando em frente.

Antes que a covid-19 irrompesse nas nossas vidas, ninguém se sentava num bar ao anoitecer e, ao mesmo tempo que bebia uma cerveja, falava e refletia sobre a morte; ninguém contava a uma criança o que era. E ninguém fazia isso porque era sentida como algo reservado para o futuro Sempre foi um tabu.

De repente, em nossa sociedade “encobridora do óbito”, eis que irrompe a morte pandêmica, agressiva, esmagadora, que não diz respeito apenas aos outros, mas também a mim, você, enfim a todos nós – brancos, pretos, amarelos, pobre, ricos, autoridades, etc. etc.

Entretanto, a morte passou a ser nas conversas, em qualquer lugar, mesas do bar, filas do banco, recepções, etc., a ordem do dia. Não mais se ignora a morte. Preocupados com as estatísticas e tudo que diz respeito, incluindo as vacinas, cloroquina, responsáveis pelo aumento, desvios de recursos, enfim, todos se tornaram experts e especialistas no assunto. Mas uma coisa é certo, a morte pela pandemia continua assustando, aterrorizando e deixando as pessoas em pânicos.

Interessante e ao mesmo tempo preocupação adicional a conclusão da estudiosa Del Campo, e também sociológica, de acordo com González, mascara uma realidade que precisa ser confrontada. Se, como conclui o trabalho da Universidade da Pensilvânia, o impacto de cada falecimento se estende a nove familiares diretos, os mais de três milhões de mortes atribuídas à covid-19 no mundo até o momento se refletem em outras 27 milhões de vítimas adicionais, que, segundo o estudo, “criam uma nova onda de desafios para a saúde da população”.

Os estudos científicos demonstram que, “depois de experimentar a morte de um relacionamento próximo, os indivíduos correm um risco elevado de sofrer uma série de fatores de estresse negativos para o curso da vida e uma saúde piorada”. O trabalho aponta desde repetência escolar, rupturas sentimentais e perdas de apoio econômico e social até efeitos psicológicos. “As investigações futuras devem ter o cuidado de incluir o luto familiar como um possível antecedente de resultados adversos em múltiplos âmbitos e etapas da vida”, conclui o estudo.

Todas as mortes têm efeito nos familiares diretos. Com certeza. Mas nas causadas pelo coronavírus, o impacto é singular e maior. Entre as causas da especial incidência das mortes por covid, segundo o estudo, destaca-se que estas são “repentinas e imprevistas” frente a outras causadas por doenças mais prolongadas. Não se conta com um apoio familiar e social amplo, devido às medidas de confinamento, e o ritual depois da morte se vê afetado pela restrição no número de pessoas autorizadas nos sepultamentos. É a segregação pós morte. É o preconceito.

Esse estudo aponta como vítimas colaterais, especialmente, “aqueles que tiveram que enfrentar mortes súbitas, inesperadas ou em UTIs, onde seus seres queridos sofreram sintomas graves, incluindo dificuldade para respirar e agitação ao final da vida”. “Pode haver uma epidemia silenciosa de dor que ainda não captamos”, admitiu um médico de medicina paliativa aos pesquisadores.

O estudo também coincide em que “as medidas de distanciamento social deixaram alguns morrerem sozinhos”, e afirma que “todos estes fatores significam que os riscos por lutos complicados se tornaram mais altos durante a pandemia”.

Estranho. Sensação de impotência. Medo. Horror. Castigo!

Respirando gentilmente, as pessoas aproveitam o repouso. Mas entre uma respiração e a próxima não há garantia que a morte não vá se intrometer. Acordar com boa saúde é um evento que merece de verdade ser considerado milagroso, mas ainda assim tomamos isso como algo totalmente garantido.

Impossível não refletirmos em nossa história de vida. História de vida que a todos se iguala ao menos no seu início e no seu estertor. Alfa-beta. Isto porque nascemos sós e nus. Conforme a nossa vida se desenrola, passamos por todas as situações possíveis: necessitar, possuir, perder, sofrer, chorar, tentar… mas depois morremos, e morremos sós. Não fará a menor diferença se fomos ricos ou pobres, conhecidos ou desconhecidos. A morte é o grande nivelador. Em um cemitério, todos os corpos são semelhantes.

O nosso relacionamento com os outros é como o encontro casual de dois estranhos em um estacionamento. Olham um para o outro, sorriem e isso é tudo o que acontece entre eles. Vão embora e nunca mais se vêem. Assim é a vida – apenas um momento, um encontro, uma passagem, e depois acaba.

Se você compreender isso, não há tempo para brigas. Não há tempo para discussões. Não há tempo para mágoas mútuas. Quer pense nisso em termos de humanidade, nações, comunidades ou indivíduos, não sobra tempo para mais nada a não ser apreciar verdadeiramente a breve interação que temos uns com os outros. Tudo no tempo do Criador.

Nossas prioridades mundanas podem ser irônicas. E de fato são mesmos. Colocamos em primeiro lugar aquilo que julgamos ser o que mais desejamos; depois descobrimos que o nosso desejar é insaciável. Pagar a casa, escrever um livro, fazer o negócio ser bem-sucedido, preparar a aposentadoria, fazer longas viagens – coisas que estão temporariamente no topo de nossa lista de prioridades, consomem nosso tempo e energia completamente e, então, no fim da vida, olhamos para trás e nos perguntamos o que todas essas coisas significavam.

É como alguém que viaja em um país estrangeiro e paga a sua viagem na moeda daquele país estrangeiro. Quando chega à fronteira, surpreende-se ao tomar conhecimento que a moeda do país não pode ser trocada ou levada. Da mesma forma, nossas posses e aquisições mundanas não podem ser levadas através do portal da morte. Se confiarmos nelas, nos sentiremos, repentinamente, empobrecidos e roubados. A única moeda que tem qualquer valor quando viajamos pelo limiar da morte é a nossa realização espiritual. E aqui não importa qual religião você pratica.

Em um sentido mundano, é melhor nos sentirmos satisfeito e apreciarmos aquilo que já temos. O tempo é muito precioso. Não espere até estar morrendo para compreender a sua natureza espiritual. Se fizer isso agora, vai descobrir recursos de bondade e compaixão que não sabia possuir. É a partir dessa mente de compaixão e sabedoria intrínseca que você pode beneficiar os outros.

O progresso espiritual começa quando resolvemos ser cuidadosos. Se você colocar-se no lugar do outro, vai perceber o quanto é destrutivo ferir ou matar qualquer ser, ainda que seja um inseto. Todos os seres querem viver. Se você cuidar dos outros com essa perspectiva, fechará as portas para o seu próprio sofrimento.

A mente é com um microscópio. Amplia tudo. Se você critica-se o tempo todo – “sou tão pobre, não sou suficientemente alto, meu nariz é grande demais” – se concentra a atenção em todas as suas inadequações e misérias, elas só piorarão até que, em desespero, você fique prestes a desistir de tudo. Ainda mais com o coronavirus ao seu lado a lado invisível.

Em vez de dizer: “sinto-me detestável. O que devo fazer?”, pense no sofrimento dos outros e gere compaixão. É muito importante, realmente, ver o sofrimento, prestar atenção no caixa do banco que está atormentando, no velho pálido e cansado que arrasta os pés pela rua, na criança que chora infeliz. Veja a profundidade do sofrimento e a partir daí dimensione o seu próprio sofrimento. Os outros estão doentes, estão imersos na guerra e na fome, estão morrendo com ou sem o corona, mas com o corona a morte passou a ser mais explícita e menos distante.

Compaixão é o desejo fervoroso de que todos os seres, sem exceção, encontrem a liberação do sofrimento, desde o seu pior inimigo até o seu melhor amigo. Para desenvolver uma compaixão genuína que inclua todos, primeiro exercita a compaixão com aqueles que lhe são próximos; depois estenda-a aos desconhecidos e por fim a todos os seres por todo o espaço.

Depois direcione o seu desejo para a felicidade deles. Como a felicidade vem apenas da virtude, deseje que qualquer felicidade que os outros possam ter alcançado, em função de suas virtudes passadas, possa nunca diminuir ou ser perdida, e que possa aumentar sempre, até que alcancem a felicidade infinita e imutável. Esse desejo pela felicidade dos outros é o significado verdadeiro de amor. Regozijar-se com qualquer extensão de felicidade que os outros possam ter, traz uma alegria ilimitada à nossa própria existência. Existência até quando? Já não temos mais a expectativa de uma longa vida, pois a qualquer momento o corona nos toma de sopetão.

Reconheça sempre que a qualidade onírica da vida e reduza o apego e a aversão. Pratique o bom coração em relação a todos os seres. Seja amoroso e compassivo, não importa o que os outros façam. O que fazem não importará muito quando visto por você como um sonho. Esse é o ponto essencial. Essa é a verdadeira espiritualidade. É disto que necessitamos nesses tempos de pandemia mortal.

Você precisa praticar a essência, que é a compaixão e o amor altruísta, e a partir daí tentar ajudar os outros da melhor maneira que puder. Não há muito tempo para isso. Use todos os seus recursos de corpo, fala e mente. Seja você cristão, hindu, judeu ou budista, a compaixão e o amor são os mesmos. A vitória sobre as falhas e desilusões leva à vitória sobre a morte. De modo que para cada um de nós é que alcancemos as qualidades de compaixão e sabedoria e o supremo e imortal estado de iluminação. Aprendizado do livro “Vida e morte no budismo tibetano”, por Chagdud Tulku Rinpoche. Mas de grande sabedoria e verdade.

Assim, se conseguirmos este estado de iluminação, por certo estaremos em melhores condições para aceitarmos e/ou convivermos com mais resignação a viver lado a lado e de mãos dadas com a morte que nos tornou tão próximos, pois ainda nada sabemos sobre a tal ‘companheira’, e até quando vamos tê-la ao nosso lado.

O que quer que pareça ser prioritário em sua vida é, na realidade, bastante temporário. Vem e vai. Nada é confiável. É tempo de preparar-se. Converter-se. Crer. Ser manso. Praticar o bem e a caridade. Precisa olhar o próximo.

Extrema/13/06/21.

Milton B. Furquim

Milton Furquim
Enviado por Milton Furquim em 14/06/2021
Código do texto: T7278478
Classificação de conteúdo: seguro