A sorte de um amor tranqüilo

Cazuza cantou o amor, o Rio, Deus, e nos fez pensar e voar.

É claro que vale a pena conferir o recente lançamento do Dvd do Barão Vermelho, com Cazuza no vocal, no memorável show de 1985, no Rock in Rio. O Rio, grande palco do samba e da Bossa Nova – crias suas – , foi, naquele ano, o grande anfitrião do mais influente ritmo musical do mundo, o rock. Além dos poderosos gringos, os roqueiros tupiniquins estavam à toda. E ninguém representava melhor o estilo, aqui no Brasil, que a banda carioca Barão Vermelho. E isso se devia, incontestavelmente, à hipnótica personalidade e talento do seu líder, com sua beleza, seu tesão e com o frescor inovador de suas letras. Este show do Rock in Rio é um marco na história de música brasileira. Além da música e do desbunde de nossa liberdade sexual tardia, havia o calor e de uma sociedade brasileira ávida pelo direito de ter eleições diretas para presidente. Quando o Barão Vermelho tocou “Pro dia nascer feliz”, Cazuza fecha a música com frases de otimismo sobre o futuro da nação – foi algo arrepiante. Quem não viu, pode conferir agora.Vinte e dois anos se passaram de lá pra cá, e a marca daquilo parece indelével. Cazuza rendeu teses, livros e, como todos sabem, um filme.

Às vezes penso que a cineasta Sandra Werneck, sem querer, prestou um desserviço à imagem de Cazuza. Muita gente gostou do filme – alguns muitos não – , que mostra a trajetória do cantor, do final de sua adolescência até a sua morte, com a doença. Dentre as pessoas que aplaudiram o filme, podemos destacar a própria Lucinha Araújo, sua mãe, a quem ele – como vemos em uma das cenas do filme – mandou “tomar no cu”. Sem moralismos: nada de mais um palavrão em um filme – ainda mais em se tratando de um filme baseado em biografia escrita pela mãe da pessoa retratada. Eu mesmo me lembro de já ter dito “nomes feios” à minha mãe. Discussão de valor à parte, pude observar um fenômeno: conheço pessoas que eram “fãs” e perderam a admiração pelo cantor-compositor-poeta após terem visto o filme. A produção, tão bem cuidada, a direção de fotografia, e a belíssima atuação do ator Daniel de Oliveira não deixam dúvidas de que é um bom produto cinematográfico. Entretanto, é natural que o público não familiarizado com a biografia de Cazuza tenha se espantado. Não é ainda considerado normal e apropriado – mesmo nos dias de hoje, e mesmo numa cidade cosmopolita – um jovem fazer tantas coisas consideradas “imorais” ou inadequadas ao mesmo tempo, como viver embriagado, usar drogas ilícitas em quantidades cavalais, arriscar a vida numa ponte, trocar dia por noite, transar com pessoas de “todos os sexos”, e xingar a mãe. É muita coisa pra cabeça do cristão médio. E há a agravante capital: as pessoas normalmente dão tanto valor à vida dos artistas quanto à sua arte, quando não mais à primeira. O fato de “Caju” ter sido um dos maiores letristas da música brasileira de todos os tempos, não faz com que ele seja amado como um outro roqueiro de sua geração, Renato Russo. Também bissexual, também usuário de drogas, também temperamental e difícil, também vítima da Aids, Renato, ao expor menos sua vida privada, acabou tento melhor aceitação popular, facilmente comprovada em números. É claro que o fato de algumas letras de Renato Russo conterem uma sutil temática de “auto-ajuda” (sem querer ser pejorativo, por favor) conferiu a ele, muitas vezes, o status de “messias”. E quantos jovens não passaram a ler a Bíblia, inspirados em letras como a de “Monte Castelo”, “Quando o sol bater na janela do teu quarto” e “Se fiquei esperando meu amor passar”, todas do disco As Quatro Estações, de 1989? Bíblia, Camões, filosofias orientais... Algo desconcertantemente novo e desbravador, e inspirador de busca por literatura. A juventude brasileira, cristã e não-leitora, parecia clamar por aquilo, o que recebeu agradecida. Grande Renato Russo! Um dia após a morte de Cazuza, no show da Legião no Jóquei Clube do Rio, ele homenageia o “barão” cantando trechos de suas canções e o chamando de “poeta” – naquela época, não sei por que motivo, poeta era um adjetivo. Um elogio. Quase um título de nobreza. Não era uma palavra comumente usada para designar compositores e letristas – com a exceção dos veteranos, como Caetano, e antigos, como Vinícius. Neste mesmo dia, eu estava no Canecão, com minha perna quebrada, assistindo ao show de Oswaldo Montenegro. Eu, na verdade, preferia estar no Jóquei, mas minhas condições físicas não permitiram. Oswaldo também homenageou Cazuza cantando e tocando, sozinho, “Bete Balanço” ao piano. Foi bem lindo aquilo.

Cazuza e o Rio – Uma das abordagens poéticas e críticas sobre o Rio de Janeiro que mais me impressionaram na vida foi a letra de “Um trem para as estrelas”. O filme homônimo do Cacá Digues também me passou isso. Adoro o filme. Mas a canção é ainda melhor. A imagem de um Rio pluricultural, “uma cidade de cidades camufladas”, como na música “Rio 40 graus” de Fausto Fawcet, cantada por Fernanda Abreu. Tanto o filme como a canção “Um trem...” são ricos e tristes. A letra diz: “estranho o teu Cristo, Rio, que olha tão longe além, com os braços sempre abertos, mas sem proteger ninguém/ eu vou forrar as paredes do meu quarto de miséria com manchetes de jornal, pra ver que não é nada sério/ eu vou dar o meu desprezo a você que me ensinou que a tristeza é uma maneira da gente se salvar depois/ um trem pras estrelas/ depois dos navios negreiros, outras correntezas”. A crítica mordaz ao cristianismo capitalista, aborda a pobreza, o racismo histórico e outras mazelas das quais as metrópoles não puderam se desvencilhar. É o Rio ruim. O mais carioca dos poetas-cantores de sua geração não poderia deixar de cantar a face cruel de um país, refletida no cotidiano de sua cidade. Cazuza fez canções com crítica social como poucos. O bom do Rio ele quase não precisava cantar: suas músicas e, de certa forma, sua vida, foram out-doors de bela carioquice, estampando a cidade para o Brasil. A carioquice boa, da malandragem charmosa, elegante, de bem com a vida. Da modernidade.

Cazuza e o amor – O modo torto de viver o amor encontrado pelo poeta está presente em vários pontos de sua obra. É claro que suas canções de amor não são predominantemente “tortas”. Mas vou aqui destacar uma canção romântica revolucionária, e “torta”. Quando Caetano Veloso gravou em seu disco ao vivo Totalmente Demais a música “Todo amor que houver nesta vida”, registrada originalmente pelo Barão Vermelho, a indústria fonográfica e a crítica especializada começaram a ver Cazuza com novos olhos. A regravação de Caetano era um selo de qualidade. É claro que o mainstream tem seus “pauzinhos”. João Araújo, então presidente da Som Livre e pai de Cazuza, fora um dos responsáveis pela contratação de Caetano na época do “LP/movimento” Tropicália, quando era executivo da Phillips. Teria sido a gravação do cantor baiano uma retribuição? Bem. O fato é que, tráfico de influência cultural ou não, “Todo amor que houver nesta vida” é uma música e tanto. É recheada de imagens poéticas inesperadas: “eu quero a sorte de um amor tranqüilo...” (verso que remete a um desejo de um relacionamento emocionalmente estável), “...com sabor de fruta mordida/ nós na batida/ no embalo da rede/ matando a sede na saliva” (aqui a mais pura sensualidade), “ser teu pão, tua comida, todo amor que houver nesta vida/ e algum trocado pra dar garantia” (uma novidade na abordagem poética: uma pessoa desejando amor e ao mesmo tempo dinheiro do ente amado, numa sinceridade quase desorientadora para os habituados a canções românticas convencionais. O verso “algum trocado pra dar garantia”, é claro, nos pegou de surpresa). Como ele consegui unir tão bem cinismo e sinceridade em poesia... Esta canção é uma das mais cultuadas de Cazuza. A bela expressão “veneno anti-monotonia”, cantada também nela, virou, muito mais tarde, título de um excelente Cd de Cássia Eller, no qual a cantora regravou músicas do autor de “Faz parte do meu show”.

Cazuza e o ocaso – O último trabalho de Agenor Miranda de Araújo (nome de Cazuza) foi Burguesia, que é, juntamente com A Tempestade, “do” (eu e muitos preferem “da”) Legião Urbana, um dos mais angustiantes e fortes “discos de despedida” – se é que existe esta categoria musical – que já se gravou. No disco, Cazuza grita por socorro, sensibilizando e fazendo tremer o mais impávido e frio ouvinte. Se em A Tempestade Renato Russo entrega seu corpo e sua alma, no álbum duplo Burguesia, o que se vê é uma pessoa lutando com todas as suas forças contra a morte. Nesse aspecto do emocionante disco, que não é o melhor de Cazuza, destaca-se a canção “Cobaias de Deus”: “se você quer saber como eu me sinto, vá a um laboratório, ou um labirinto/ e seja atropelado por esse trem da morte (...) me sinto uma cobaia/ um rato enorme/ nas mãos de um Deus mulher/ um deus de saia/ cagando e andando vou ver o E.T. (...) traga uma corda irmão/ irmão acorda/ nós as cobaias vivemos muito sós/ por isso Deus tem pena e nos põe na cadeia/ e nos faz voar dentro de uma cadeia/ nós, as cobaias de Deus/ nos somos as cobaias de Deus”.

É. Cazuza voou alto – ele quis assim. E, para isso, teve que também fazer voar.

Certo dia, quando eu tinha 17 anos, na casa de um amigo roqueiro, eu o perguntei se ele gostava de músicas românticas, pois eu gostava, e nós conversávamos basicamente sobre rock, sendo a palavra “romântico” algo que soava brega naquela época. Era quase uma heresia se declarar amante de canções de amor. Desta forma, a minha pergunta foi tímida – eu, um fã enrustido de Roberto Carlos, sendo vocalista de uma banda rock, onde ele, o meu amigo, era o guitarrista. Então ele falou que gostava. Idiotamente eu estranhei, pois eu o via como um fã de rock, além de um guitarrista de rock. Então ele tirou da sua estante o primeiro LP solo do Cazuza e disse “ – Eu gosto de música romântica assim”. Aquele “assim” fez eu entender melhor a música. Cazuza foi romântico até os ossos, e o rótulo “roqueiro” era mesmo pouco pra ele. Sua forma de descrever o amor, influenciou profundamente toda a minha geração. De burguês mimado a corajoso poeta romântico e social, é bem provável que ele tenha morrido sem ter tido um “amor tranqüilo”. Mas, cá entre nós: que poeta vai querer, de fato, algo assim? Cazuza foi um anjo torto sobre a Terra.

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As 15 canções mais urgentes, viajantes e “voadoras” de Cazuza (se não conhece algumas, procure):

1. “Só as mães são felizes”

2. “Um trem pras estrelas”

3. “O assassinato da flor”

4. “Cobaias de Deus”

5. “Blues da piedade”

6. “Todo amor que houver nesta vida”

7. “Bruma”

8. “Filho único”

9. “Boas novas”

10. “A orelha de Eurídice”

11. “Quarta-feira”

12. “Azul e Amarelo”

13. “Como já dizia Djavan”

14. “Obrigado”

15. e “Ideologia”, é claro.

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Luciano Fortunato
Enviado por Luciano Fortunato em 19/11/2007
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