O CASO “FORD MOTOR COMPANY (1970) E O ROMPIMENTO DA BARRAGEM DE REJEITOS, EM BRUMADINHO/MG, DA MINERADORA VALE S.A. (2019).

1.1. O CASO “FORD MOTOR COMPANY (1970) E O ROMPIMENTO DA BARRAGEM DE REJEITOS, EM BRUMADINHO/MG, DA MINERADORA VALE S.A. (2019).

Não há como falar em desastre humanitário, sem mencionar a data de 25 de janeiro do ano de 2019. Nesse dia, por volta das 12h e 28min, ocorreu o rompimento da barragem de rejeitos no município de Brumadinho/Minas Gerais.

Os holofotes do mundo encontravam-se norteados ao município de Brumadinho. A atenção se deu, não pela beleza do lugar, tampouco pelo turismo local, mas sim pelo rompimento da barragem desativada da Mina Córrego do Feijão (B-1), sob responsabilidade da mineradora Vale, que ocasionou a morte de 270 pessoas (sendo que 2 das vítimas fatais eram gestantes), além da devastação que se arrastou por cerca de 300 quilômetros, atingindo 17 cidades ao longo das margens do Rio Paraopeba.

Por certo, ninguém imaginava que, a partir de então, aquele evento danoso colocaria o Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais na maior operação de busca e salvamento da sua história.

“Minutos após o rompimento da Barragem B1, o CBMMG recebeu dezenas de ligações telefônicas solicitando o empenho dos militares em ações de busca e salvamento das vítimas do rompimento. Imediatamente, foram acionados empenhos múltiplos de recursos de todas as unidades do CBMMG da região metropolitana de Belo Horizonte, dando início, então, à maior operação de busca e salvamento da história.”

É inegável a atitude heroica dos bombeiros que, com um efetivo de aproximadamente 4200 militares, apesar de todas as limitações, não mediram esforços para enfrentar aproximados 12 milhões de m³ de rejeito de minério a fim de salvar e localizar as vítimas da tragédia.

Com tamanha proporção, não poderia deixar de existir medidas judicias para, ao menos amenizar o desastre.

A partir de então, tornou-se conhecido o procedimento judicial de número 5010709-36.2019.8.13.0024 que, dentre as várias decisões proferidas naquele processo, determinou o bloqueio de valores e bens da mineradora Vale, além de estabelecer pagamentos emergenciais a todos atingidos e atingidas com residência dentro do limite de 1 km do leito do Rio Paraopeba, desde Brumadinho até a cidade de Pompéu/MG, a fim de assegurar uma maior efetividade na reparação ao dano causado pelo rompimento.

Às vésperas de completar 2 (dois) anos do rompimento, o Secretário Geral do Governo de Minas Gerais, Mateus Simões de Almeida, em entrevista coletiva, manifestou-se acerca das tentativas frustradas em obter algum acordo para com a mineradora Vale.

A proposta originária do acordo era de R$ 54 bilhões de reais, porém, a mineradora encontrava-se resistente a aceitar a proposta inicial.

Diante de tais circunstâncias, o Secretário Geral externou seu descontentamento na tentativa de obter uma contraproposta da mineradora Vale:

“ - Eu me frustro, na verdade, com a irresponsabilidade demonstrada por alguns que pretendem empreender e acham que isso pode acontecer ao custo de vidas e ao custo de toda uma estrutura econômica e social. Mas eu tenho certeza que a justiça ainda assim prevalecerá, porque eu tenho repetido que esse acordo será celebrado como o maior da história do Brasil, ou a condenação chegará como a maior condenação da história do Brasil. [...] Para nós, não é admissível que o número apresentado pela Vale não permita que as escolas sejam reconstruídas que as delegacias sejam refeitas, que a polícia se reestruture, que os hospitais possam apresentar um serviço de melhor qualidade, que a segurança hídrica seja garantida, que o esgoto seja reconstruído, que a água seja tratada e que o meio ambiente seja, efetivamente, restaurado. Nós não vamos aceitar um valor como se uma migalha fosse lançada. [...] Se não for suficiente, não será aceito. Nós não estamos aqui para pedir uma ajuda para a Vale – quero chamar a atenção para isso. E me incomoda muito o tom que a Vale anda usando, como se tivesse dado um presente aos mineiros. Ela é nosso algoz. Ela é criminosa nesse processo.”

Tal procedimento finalizou-se em um acordo bilionário entre a mineradora Vale, o Estado de Minas Gerais, a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais e os Ministérios Públicos Federal e do Estado de Minas Gerais, para a reparação dos danos ambientais e sociais decorrentes do rompimento da barragem B-1, no importe de R$ 37.689.767.329,00 (trinta e sete bilhões, seiscentos e oitenta e nove milhões, setecentos e sessenta e sete mil e trezentos e vinte e nove reais).

Assim, em virtude do indigesto e desastroso acontecimento que ceifou centenas de vidas, surge, além da Ação Coletiva que se finalizou com o bilionário acordo a ser pago pela mineradora Vale, uma avalanche de processos indenizatórios de naturezas individuais, principalmente na Comarca de Brumadinho, tendo a mineradora Vale como parte ré nas demandas.

Além do mais, apesar da mineradora mencionar a disponibilidade de canais administrativos para análises das demandas individuais, importa-se destacar que, na via administrativa é a própria mineradora (por meio de seus representantes) quem recebe as demandas, analisa-as e consequentemente decide se é cabível, ou não, alguma reparação em favor das partes requerentes.

Portanto, apesar da divulgação de vários procedimentos apreciados na esfera extrajudicial por parte da mineradora, os numerosos indeferimentos administrativos fizeram com que o juízo da comarca de Brumadinho ficasse abarrotado de processos judicias que, diga-se de passagem, transcorrerão por anos até uma resposta justa a cada caso.

Superados os apontamentos acima, na esfera penal, sem adentrar no mérito quanto à competência da Justiça Estadual ou Federal para julgar os delitos causados em virtude do rompimento, o que pode-se extrair da denúncia ofertada pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais nos autos de nº 0003237-65.2019.8.13.0090 , é “que o rompimento da Barragem I, na Mina Córrego do Feijão, ocorreu de forma abrupta e violenta, tornando impossível ou difícil a fuga de centenas de pessoas que foram surpreendidas em poucos segundos pelo impacto do fluxo da lama, e o salvamento de outras centenas de vítimas que estavam na trajetória da massa de rejeitos”.

Torna-se inconteste que não foi soado o alarme, além do mais a construção do refeitório da referida mina, encontrava-se instalada em local abaixo da barragem que se rompeu, além das áreas industriais e administrativas que se situavam bem à frente da Barragem I:

“Apesar do conhecimento de situações de emergência que deveriam ser notificadas para o Poder Público e para a comunidade (notadamente em zona de autossalvamento), a situação foi ocultada pela VALE. Não foi realizado nenhum alerta, tampouco acionadas sirenes que evidenciassem o impacto potencial ou iminente da onda de lama. Funcionários da VALE e de empresas terceirizadas, membros da comunidade de Brumadinho e visitantes, que estavam na trajetória do fluxo de lama da Barragem I, foram surpreendidos pelo impacto violento do imenso volume de rejeito, dificultando a possibilidade de defesa ou fuga.

“Imediatamente à frente da Barragem I, funcionavam as áreas industriais e administrativas da Mina da VALE, inclusive as instalações de refeitório, vestiário, oficina e almoxarifado, utilizadas por mais de 600 funcionários da VALE ou de empresas terceirizadas. Todas essas estruturas estavam localizadas a poucos segundos do fluxo da lama no caso de rompimento da Barragem I, tempo minuciosamente calculado no estudo de cálculo de risco monetizado mantido internamente pela VALE.”

Tal catástrofe, torna-se inegável que houve total afronta ao tão falado “Princípio da Dignidade da Pessoa Humana” e, neste sentido, a M.M. Ministra Carmem Lúcia Rocha, na ADI 3510, esclarece:

“a constitucionalização do princípio da dignidade da pessoa humana modifica, em sua raiz, toda a construção jurídica: ele impregna toda a elaboração do Direito, porque ele é o elemento fundante da ordem constitucionalizada e posta na base do sistema. Logo, a dignidade da pessoa humana é princípio havido como superprincípio constitucional, aquele no qual se fundam todas as escolhas políticas estratificadas no modelo de Direito plasmado na formulação textual da Constituição”.

A afronta ao princípio aqui tratado torna-se agravada pelo desrespeito, uma vez que, sequer o minuto de silêncio fora respeitado pelo, até então, Presidente da Vale S.A. Sr. Fábio Schvartsman, além do mais chamou a mineradora de “joia brasileira”, demonstrando que o capital, do ponto de vista da empresa, é muito mais valioso do que as vidas que foram ceifadas.

“Presidente da Vale se senta durante um minuto de silêncio em homenagem às vítimas de Brumadinho

Durante audiência na Câmara dos Deputados, Fábio Schvartsman também classificou a tragédia de 'acidente' e chamou a mineradora de 'joia brasileira'”

Além do mais, os indícios de que a mineradora tinha ciência do risco de rompimento da barragem e nada fez a fim de evitar tamanha catástrofe, são claríssimos.

“Vale sabia que barragem em Brumadinho tinha risco elevado de colapso

Relatório mostra que a barragem tinha duas vezes mais chance de se romper do que o nível máximo tolerado”.

“Engenheira sabia de problemas na barragem, diz funcionário da Vale à CPI - Simulações de emergência foram intensificadas depois desse episódio, sete meses antes do rompimento em Brumadinho, mas Vale não removeu refeitório nem prédio administrativo”

Tal afronta a direito personalíssimo torna-se inconteste, tanto pela omissão demonstrada, bem como pela violência imposta às vítimas.

Para ter-se ideia da violência das mortes, a primeira vítima citada na denúncia ofertada pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, no rol de vítimas fatais identificadas, consta-se catalogados 11 (onze) partes/membros/fragmentos do corpo desta. Demonstrando assim, a maneira violenta e indefensável a que as pessoas foram submetidas, tendo como consequência o óbito.

Tamanha crueldade nas mortes, apenas amplia a responsabilidade da mineradora Vale que, em razão do risco implantado da natureza da sua atividade de extração mineral, torna-a objetiva (independentemente de culpa), com fundamento no parágrafo único do art. 927 do Código Civil, o qual restou-se consagrado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 5º, incisos V e X.

No mesmo sentido, além da responsabilidade civil, destaca-se, nesse ponto, a conclusão de um dos inquéritos citados no livro “BRUMADINHO A ENGENHARIA DE UM CRIME” (Editora Letramento), escrita por LUCAS RAGAZZI e por MURILO ROCHA, que teve como embasamento a Investigação da Polícia Federal (Delegados: Cristiano Campidelli, Luiz Augusto Pessoa Nogueira, Rodrigo Teixeira e Roger Lima De Moura), extrai-se que:

“No dia 20 de setembro de 2019, a Polícia Federal concluiu o primeiro inquérito sobre a tragédia de Brumadinho, com o indiciamento de 13 funcionários da Vale e da Tüv Süd, além das duas empresas, pelos crimes de falsidade ideológica e de uso de documentos falsos. O primeiro delito está relacionado às informações falsas contidas nos documentos de Declaração de Condição de Estabilidade (DCE) produzidos em junho e setembro de 2018. As DCEs estabeleceram um Fator de Segurança (FS) mínimo (1,05) fora dos padrões adotados internacionalmente para validar a barragem I, cujo FS era 1,09. Em todas as outras barragens da mineradora, o FS mínimo considerado era de 1,3, como prevê a literatura do setor de mineração e como havia sido recomendado durante os painéis de especialistas promovidos pela Vale no final de 2017 e durante o ano seguinte. O segundo crime, o uso de documentos falsos, se deu no momento de registro dessas declarações de estabilidade, com a assinatura de funcionários da vale e da Tüv Süd, junto à Fundação Estadual de Meio Ambiente (Feam) e ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), atual Agência Nacional de Mineração (ANM), por três vezes (em junho e setembro) no ano anterior à ruptura da barragem.”

Após as repugnantes condutas relatadas na investigação acima apontada, levanta-se o seguinte questionamento: “Quanto VALE uma vida?” [Valor Estatístico de uma vida (VSL)].

Segundo estudos os valores podem variar a depender do país:

“O Valor Estatístico de uma Vida obtido para o Brasil ficou entre R$ 3,758 e R$ 4,690 milhões, a partir das estimativas do modelo de efeitos fixos. Este VSL é próximo do encontrado por Lavetti e Schmutte (2016) também para o Brasil, no qual os autores estimaram em R$ 2,85 milhões a preços de 2003. Para os homens, o VSL variou entre R$4,453 milhões e R$ 5,195 milhões de acordo com as estimativas obtidas por efeitos fixos, enquanto que para as mulheres, o VSL foi menor, em média, oscilando entre R$2,354 milhões e R$3,424 milhões. Estes resultados também se aproximam do VSL obtido por Lavetti e Schmutte (2016)para os homens no Brasil, que foi entre R$3,81 e R$3,86 milhões a preços de 2003. Ou seja, isto mostra que as estimativas do VSL geradas pelo modelo de efeitos fixos apresentam, além de consistência estatística, consonância com os VSL’s encontrados na literatura. Convertendo-se estes VSL’s em dólares e comparado-os com os VSL’s médios calculados para vários países, apresentados na meta análise realizada por Viscusi e Masterman (2017), observa-se que o VSL médio obtido para o Brasil, a partir da amostra completa, que é de $1,502 milhões, aproxima-se do VSL médio de países como Coréia do Sul ($1,509 milhões para o ano de 1999), Canadá ($2,168 milhões para os anos 1981 a 1985), mas está muito aquém dos VSL’s médios de países desenvolvidos como Reino Unido ($41,964 milhões para os anos de 1979 a 1983) e Austrália ($22,007 para os anos de 1992 a 1993), por exemplo. Destaca-se o baixo VSL médio brasileiro em comparação com o Chile, no qual o valor médio obtido para o ano de 2006 foi de $10,827 milhões, ou seja, aproximadamente dez vezes menor. Cabe salientar que se tais valores apresentados fossem trazidos a valor atual, assim como foi realizado para o VSL médio do Brasil, possivelmente estas diferenças aumentariam.”

Nesse raciocínio, extrai-se da Denúncia ofertada pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais (p.51), que houve um “Estudo de Valoração” realizado pela mineradora Vale S.A.:

“Para a Barragem I, o “Estudo de Valoração das Consequências” serviu para orientar a tomada de decisão da VALE sobre os riscos que assumiria e para informar os tomadores de decisão sobre detalhes dos custos para a corporação no caso de rompimento da barragem. Na “esfera econômica”, calculou os danos diretos externos, que se referem a edificações domiciliares, comerciais, industriais, conteúdo das edificações, veículos, pontes, pastagens, pecuária, infraestrutura e postos de combustíveis. A figura 26 demonstra tabelas elaboradas pela VALE para estimar os custos de indenizações para atingidos no caso de rompimento da barragem, projetando o valor de veículos e até mesmo itens domésticos, todos considerados de forma segregada por classes socioeconômicas (A, B, C, D e E). Por exemplo, a figura mostra que a indenização de um veículo da classe A seria em torno de 67 mil reais, enquanto de um veículo de um atingido da Classe D/E seria de 12 mil reais. Até mesmo o valor da indenização pela destruição da cama, sofá, fogão, TV e ventilador era detalhado e calculado conforme a classe socioeconômica do atingido. A VALE detinha profunda informação sobre as estimativas de consequências econômicas no caso de rompimento da Barragem I.” (grifo nosso).

Ou seja, restou-se claro que foram efetuados cálculos pela mineradora a fim de precificar, além dos objetos, a vida humana, em caso de eventual desastre (o que de fato ocorreu).

Não foi a primeira vez em que as grandes corporações utilizaram as vidas humanas como simples objetos precificados. Tal análise remete-nos ao conteúdo da obra “Justice: What's the right thing to do?”, publicada em português com o título “Justiça: O que é fazer a coisa certa”, do professor de filosofia da Universidade de Harvard, Michael J. Sandel (Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2016, páginas 57 - 59).

A obra supracitada expõe que, durante o ano de 1970, os automóveis compactos denominados de Ford Pinto, ao serem colididos pela traseira, corriam sérios riscos de explosão (SANDEL, 2016).

Relata-se que, tais condutas foram apuradas quando uma das vítimas processou a Ford Motor Company pelo erro no projeto, e então foi divulgado publicamente que os engenheiros da Ford tinham ciência do perigo de explosão inerente ao tanque de combustível, mas por meio de análise de custo benefício, os executivos da companhia obtiveram a conclusão que “os benefícios de consertar as unidades (em vidas salvas e ferimentos evitados) não compensavam os 11 dólares por carro que custaria para equipar cada veículo com um dispositivo que tornasse o tanque de combustível mais seguro.” (SANDEL, 2016).

“Durante os anos 1970, o Ford Pinto era um dos carros compactos mais vendidos nos Estados Unidos. Infelizmente seu tanque de combustível estava sujeito a explodir quando outro carro colidia com ele pela traseira. Mais de quinhentas pessoas morreram quando seus automóveis Pinto pegaram fogo e muitas mais sofreram sérias queimaduras. Quando uma das vítimas processou a Ford Motor Company pelo erro de projeto, veio a público que os engenheiros da Ford sabiam do perigo representado pelo tanque de gasolina. Mas os executivos da companhia haviam realizado uma análise de custo e benefício que os levara a concluir que os benefícios de consertar as unidades (em vidas salvas e ferimentos evitados) não compensavam os 11 dólares por carro que custaria para equipar cada veículo com um dispositivo que tornasse o tanque de combustível mais seguro.

Para calcular os benefícios obtidos com um tanque de gasolina mais seguro, a Ford estimou que em um ano 180 mortes e 180 queimaduras poderiam acontecer se nenhuma mudança fosse feita. Estipulou, então, um valor monetário para cada vida perdida e cada queimadura sofrida — 200 mil dólares por vida e 67 mil por queimadura. Acrescentou a esses valores a quantidade e o valor dos Pintos que seriam incendiados e calculou que o benefício final da melhoria da segurança seria de 49,5 milhões de dólares. Mas o custo de instalar um dispositivo de 11 dólares em 12,5 milhões de veículos seria de 137,5 milhões de dólares. Assim, a companhia chegou à conclusão de que o custo de consertar o tanque não compensaria o benefício de um carro mais seguro.”

Nesse mesmo prisma, o repugnante esquema capitalista adotado em 1970, pela FORD, foi objeto de pesquisa, também, dos Professores Dr. Gustavo Hermont Corrêa e Dr. Rubens José dos Santos, os quais fizeram apontamentos inerentes ao crime cometido pela companhia FORD em 1970 e atualmente pela mineradora Vale S/A.

“Acontece que, ao se realizar testes de impactos traseiros, engenheiros da FORD constataram que impactos desta natureza a mais de 50 km/h poderiam provocar o rompimento do tanque, o que, por sua vez, fazia com que fossem borrifadas partículas de gasolina suficientes para que gerasse uma explosão, caso houvesse uma faísca de um cigarro, ignição ou metal raspado e, então, o veículo seria incendiado, colocando assim, os seus ocupantes em risco de morte ou lesão grave.

Porém, como as máquinas responsáveis pela produção da carroceria do FORD PINTO já estavam prontas e produzindo, a ordem era apenas dar continuidade à produção, pois todos sabiam que o senhor Lee Iacocca sempre dizia que “Segurança não vende”, além de ter imposto que o veículo não passasse de 2.000 libras (peso) e que não custasse um centavo acima de US$2.000,00 (dois mil dólares da época). Por isso, mesmo após a descoberta de que haveria uma solução econômica (US$25,00 – (vinte e cinco dólares) da época) ao problema, um pedaço de plástico de um quilo e um dólar, tal solução não fora adotada.

Para mercados, como o canadense, em que as normas exigiam uma segurança maior, os veículos exportados passaram por uma leve modificação, ao receberem uma camada extra de amortecimento, porém, no mercado americano, em que as normas de segurança eram mais brandas, nada foi feito pela FORD em relação ao veículo, mas apenas em relação ao governo, ao fazer lobby contra o Padrão Federal de Segurança de Veículos Motorizados 301. O que deu certo, já que conseguiu atrasar a sua entrada em vigor até o ano de 1977 e ainda convenceu os reguladores federais da época a tratar a segurança dos automóveis a partir de uma análise de custo-benefício, o que culminou com um relatório no ano de 1972, decidindo que uma vida humana valia US$200.725 dólares da época, atualizados para US$278.000,00 (duzentos e setenta e oito mil dólares) em 1977.

A partir desse valor, arredondado para US$200.000,00 (duzentos mil dólares) pela FORD, que considerou ainda os valores de US$67.000,00 (sessenta e sete mil dólares) por cada pessoa queimada e US$700,00 (setecentos dólares) para o reparo de cada veículo, é que ela fez os seus cálculos sobre o custo-benefício entre as vidas humanas X lucro da empresa e chegou à conclusão de que não era economicamente vantajoso fazer uma melhoria de US$11,00 (onze dólares) ou até menos por carro para que pudesse impedir que 180 pessoas se queimassem e que outras 180 pessoas morressem queimadas por ano, pois arcar com o valor de eventuais indenizações (estimadas em US$49.500.000,00 (quarenta e nove milhões e quinhentos mil dólares) seria mais “barato” do que ter de arcar com os custos extras de aproximadamente US$137.000.000,00 (cento e trinta e sete milhões de dólares), ao se considerar toda a linha de produção. Logo, daria “mais lucro” matar e lesionar pessoas.”

Logo, tendo como parâmetro os casos (Ford de 1970 e Vale S/A de 2019), percebe-se que as condutas adotadas por ambas, encontram-se completamente às margens da Moral e da Ética. E nesse sentido Ronald Dworkin (2012) conceitua que “A ética estuda o modo como as pessoas gerem a sua responsabilidade de viver bem, e a moral pessoal concentra-se naquilo que cada indivíduo deve às outras pessoas.” (DWORKIN, 2012, p. 336)

Portando, diante das catástrofes ocasionadas por ambas as empresas, apesar de tais fatos terem ocorridos em épocas distintas, há que levantar vários questionamentos inerentes a humanidade, uma vez que o capital das grandes corporações passou a ser considerado bem mais valioso do que a própria vida humana, que começou a ser analisada por meio de “custo/benefício” por parte de determinadas empresas que, agindo de maneira imoral e sem ética, colocam em “xeque” a própria dignidade da pessoa humana.

1.2. CONCLUSÃO

Diante de todo contexto, não há como não se indignar diante de total crueldade. Uma vez que, a morte de mais de 270 pessoas (sendo 2 das vítimas grávidas) e destruição de mais de 270 famílias, além é claro, da expressiva devastação ambiental, não pode ser considerada como mero infortúnio, até mesmo porque, ultrapassados mais de 3 (três) anos desde o rompimento, até a presente data, ainda restam 6 (seis) vítimas desaparecidas.

São famílias e amigos que choram, que colecionam traumas irreparáveis, são crianças que sequer viram os pais retornarem de seu labor, e jamais serão vistos novamente. São viúvas que perderam seus maridos, mães que perderam filhos, além, é claro da destruição ambiental que se propagou e devastou com as várias cidades e famílias. São alunos que perderam professores, bem como professores que perderam seus alunos, avós e avôs que não mais abraçarão seus netos. Mães e pais que não puderam ver o rosto do filho, ou filha, pois os corpos foram completamente despedaçados.

Apesar da catástrofe em si, o que se busca nesta breve exposição, não é discutir se a competência para julgamento é da Justiça Federal ou Estadual, mas sim refletir, desde a inafastável importância do Corpo de Bombeiros da Polícia Militar, em especial do Estado de Minas Gerais, e até mesmo sobre as condutas adotadas pelas grandes corporações ao realizarem análises de “custo/benefício”, quando na verdade o que está sendo calculado como um mero “bem” a preço de mercado, é a vida do ser humano, e tudo em prol do lucro empresarial.

Fernando dos Santos Resende

REFERÊNCIAS:

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CORRÊA, Gustavo Hermont; SANTOS, Rubens José dos. TRAGÉDIA EM BRUMADINHO. Desafios Jurídicos e Planejamento Estratégico: A precificação da vida humana sob o aspecto jurídico; Coordenação de Rafael Tallarico e Gustavo Hermont Correa – D’PLACIDO, 2021, (p. 65-88).

DWORKIN, Ronald. Justiça para Ouriços. Edição negociada com Harvard University press. Coimbra. Portugal: Almedina, 2012. p. 335.

Fernando Resende
Enviado por Fernando Resende em 29/05/2022
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