Onomatopéia: fenômeno sui-generis?

ONOMATOPÉIA: FENÔMENO SUI-GENERIS?

Alexandre Melo de Sousa

UFAC

RESUMO:

Este trabalho apresenta alguns enfoques sobre a onomatopéia: fenômeno lingüístico que consiste na imitação ou reprodução aproximada de ruídos por meio dos sons da linguagem. São apresentadas algumas discussões de base teórica, a saber: a relação som – sentido, o tratamento da onomatopéia no âmbito morfológico, a manifestação onomatopáica em outras línguas, a onomatopéia como recurso estilístico, entre outras; baseadas nas quais, concluímos que a onomatopéia é melhor apreendida na esfera fonoestilística.

PALAVRAS-CHAVE:

onomatopéia, fonologia, formação de palavras, estilística.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este artigo, cujo escopo é a onomatopéia, tem por objetivo precípuo apresentar, panoramicamente, alguns enfoques a respeito do referido fenômeno lingüístico.

Embora demos maior destaque ao aspecto estilístico, mais exatamente fonoestilístico, não deixamos de salientar outros aspectos: um deles é a relacionar o referido fenômeno de imitação sonora com a noção de arbitrário do signo, para isso assinalaremos algumas considerações a respeito do liame que se estabelece entre som e sentido.

Outro aspecto consiste em mostrar o tratamento do fenômeno na lingüística estrutural, mais especificamente na Morfologia, no tocante à formação de palavras.

1 A relação som – sentido

Inicialmente queremos traçar uma discussão sobre o elo que se estabelece entre som e sentido. Para tanto, faz-se necessário tecer algumas importantes considerações sobre a natureza do signo lingüístico, já que este reúne em si a relação entre conteúdo e expressão: mecanismo no qual se baseia a linguagem humana.

De acordo com Jakobson (1969), a relação entre conteúdo e expressão constitui, desde a Antiguidade, um constante problema para a ciência da linguagem, mas que foi retomado, após longo período de esquecimento por parte dos lingüistas, por Ferdinand de Saussure, que retomou a concepção e a terminologia da teoria apresentadas pelos estóicos:

Essa doutrina considerava o signo (sêmeion) como uma entidade constituída pela relação entre o significante (sêmainon) e o significado (sêmainomenon). O primeiro era definido como "sensível" (aisthêton) e o segundo como "inteligível" (noêton), ou então, para utilizar um conceito mais familiar aos lingüistas, "traduzível" (JAKOBSON, 1969, p. 98-9).

Segundo Saussure (1995), a linguagem une a expressão ao conteúdo por convenção, não por natureza. De acordo com a teoria saussureana, o signo lingüístico não estabelece relação entre uma coisa e uma palavra, mas entre um conceito (significado) e uma imagem acústica (significante), como explica o autor:

O laço que une o significante ao significado é arbitrário ou então, visto que entendemos por signo o total resultante da associação de um significante com um significado, podemos dizer mais simplesmente: o signo lingüístico é arbitrário.

Assim, a idéia de "mar" não está ligada por relação alguma interior à seqüência de sons m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada igualmente bem por outra seqüência, não importa qual (...) (SAUSSURE, 1995, p.81-82).

De acordo com Saussure, “arbitrário” quer dizer que o significante não possui nenhum vínculo natural com a realidade. Podemos dizer, então, que o significante é "imotivado" em relação ao significado. Para o autor, tal constatação é aplicável até mesmo no caso das onomatopéias, cujas imitações aproximativas de certos ruídos naturais poderiam relacionar, equivocadamente, significante e significado. Então, apresenta os seguintes argumentos em defesa de sua posição:

a) as onomatopéias, como uma "imitação aproximativa" de ruídos, são criadas a partir de sons vocais padronizados na língua, portanto, são convencionais;

b) as onomatopéias tendem a adquirir características dos demais signos à medida que se integram ao léxico da língua, sofrendo, por exemplo, alterações morfológicas;

c) as onomatopéias tornam-se de importância secundária, já que se apresentam um número bem reduzido na língua.

A despeito das conclusões do mestre genebrino sobre a natureza das onomatopéias, não há por que demolir o caráter convencional das mesmas, mas simplesmente relativizá-lo, na medida em que a associação som-sentido depende de fatores nitidamente culturais e não universais. Quer dizer: a relação som/sentido é “sentida” como motivada pelos falantes, mas, no contexto de uma análise científica, vemos que esta relação é puramente intuída, mas isto não garante focos de universalidade à relação sígnica. A motivação, pois, existe, mas não é tão universal que destrua o arbitrário do signo, ainda que, no seio de uma cultura, a motivação onomatopaica seja maior que para signos como mesa e cadeira.

Rigorosamente, há dois tipos de subtrair:

a) aqueles determinados pelo sistema, como arbitrário relativo: a exemplo dos derivados e compostos, no plano da expressão, e da metáfora e da metonímia, no plano do conteúdo. (Cf. GUIRAUD, 1980);

b) aqueles determinados pela relação som/ sentido, mediados pelo referente: é o caso da imitação sonora, que consiste numa aproximação dos sons físicos através de sons lingüísticos; a ilustração sonora, que consiste no aproveitamento da linha melódica para dar sugestão de que os fonemas estão expressado algo inerente à natureza do que se comunica. “Assim, a subilante /s/ participa dos exemplos de imitação sonora quando se fala dos assobios, dos sussurros. Se porém transmite um apelo de silêncio ou sua impressão de suavidade tem-se uma ilustração sonora”. (Cf. MONTEIRO, 1991, p. 109).

Como vemos a abstração sonora está ligada às sensações naturais, táteis, visuais, excluído as auditivas. Para nos valemos de Jakobson (1969) prepondera a função conativa da linguagem.

Do ponto de vista semântico, há que se fazer a distinção entre a onomatopéia primária, que consiste na imitação do som pelo som e a onomatopéia secundária, que evoca não uma experiência acústica, mas um movimento.

Por fim, é o caso da sugestão rítmica, que resulta da tensão do relaxamento e da distensão prosódicos de que resulta o ritmo (Cf. MASSINI-CAGLIARI, 1992). Mas não vamos nos deter neste aspecto relacionado à motivação sonora. Voltemos ao nosso interesse central: a imitamos sonora ou onomatopéia.

2 A onomatopéia na formação de palavras

A onomatopéia ou imitação sonora é um fenômeno marginal em morfologia, porque não segue a nenhuma sistematização. Não parte de constituídas mórficos, sendo antes uma formação ex nihilo, de modo que não tem tratamento especial em morfologia, que trata dos processos regulares e sistemáticos de formação de palavras. Representativo desta concepção é Rocha (1998, p.99), que caracteriza o fenômeno como assistemático e imprevisível. Reporta-se a Melo (1975, p. 225-6), que se refere à onomatopéia ou imitação sonora nestes termos:

outros processos de formação vernácula difíceis ou impossíveis de sistematizar: obscuras analogias, "intuição poética, espírito chistoso, vivacidade de imaginação dão nascimento a novas palavras, que não se podem enquadrar nos processos clássicos, ou ao menos não obedecem aos planos e normas habituais. Quem explicará satisfatoriamente palavras como maçaroca, serelepe, bagunça, ganzepe, beldroega, bigorrilhas, desmilinguido, borocoxô, saçaricar, chinfrim, fuzarca, pilantra, ranzinza, fuzuê, esbregue, calhorda, salafrário, bisbórria, safardana, I mazorro, salabórdia, engazopar, et similia (apud ROCHA, 1998, p.99).

3 A onomatopéia nas diversas línguas

Decorrente do seu valor imitativo, mas dependente da cultura, o que torna a imitação sonora onomatopéia um fenômeno intermediário entre o arbitrário absoluto e o arbitrário relativo, há que se enfatizar o caráter relativo do fenômeno onomatopaico. Lopes (s/d) exemplifica com os seguintes verbos relativos a “miau”:

Francês – miauler

Inglês – mew

Alemão – miauen

Outros exemplos poderiam ser aduzidos aqui, mas cremos que é o suficiente para mostrar que a onomatopéia não fere o principio da arbitrariedade do signo, mas também não se circunscreve a pura comunalidade de que fala Saussure (1995). Nem é particular o suficiente para contribuir specimen de arbitrário absoluto, nem universal o suficiente para ilustrar a tese naturalista.

Trata-se de um fenômeno de destruição fluidia nos domínios estilísticos, semânticos e morfológicos.

4 A onomatopéia como fenômeno estilístico

A nosso ver a onomatopéia, no âmbito de uma cultura de uma língua se caracteriza mormente como num fenômeno estilístico e expressivo. Faz parte do que Troubetzkoy (1970) denominou forma expressiva, que pode ser assim definida:

Ces difficultés peuvent être résolues au mieux si I'on attribue I'étude dês procedes phoniques d'expression et d'appel à une branche scientifique particuliere, à savoir Ia phonostyfistique. On pourrait Ia subdiviser d'une part em stylistique expressive et em stylistique appellative, et d'autre part em stylistique phonétique et em stylistique phonologique. Si dans Ia description phonologique d'une langue on doit étudier Ia stylistique phonologique (aussi bien au point de vue de Ia fonction expressive qu'à celui de Ia fonction d'appel), Ia tache propre de cette description doit toutefois rester I'étude phonologique du "plan représentatir. La phonologie n'a done pás à être subdívisée em phonologie expressive, appellative et représentetive. Lê nom de "phonologie" peut comme auparavant être reserve à I'étude de Ia face phonique de Ia langue, de valeur représentative, tandis que \'étude dês éléments de Ia face phonique de Ia Jangue, de valeur expressive et de valeur appellative, será faite par Ia "stylistique phonologique", qui de son cote ne serait qu'une partie de Ia "phonostylistique" (TRUBETZKOY, 1970, p. 29).

Dessa forma, segundo o autor, apenas os elementos fônicos de caráter expressivo e apelativo têm valor para a Estilística, já que esta atenta para a manifestação expressiva da linguagem. Como Câmara Jr. (1978) observou, ao dedicar espaço à Fonoestilística, em seu estudo, Trubetzkoy pretendia, na verdade, mostrar que não deveriam ser incluídos no conceito de fonema os traços expressivos nos quais se revelam "a manifestação psíquica ou o apelo", já que o fonema está exclusivamente relacionado com a função representativa. Como acrescenta Câmara Jr (1978, p. 29), a Fonoestilística aproveita traços fonéticos "que não estão sistematicamente utilizados nas oposições e nas correlações dos fonemas e dos grupos fonêmicos". Cabe a ela, portanto, destacar o valor expressivo das vogais e das consoantes, as ilustrações e os simbolismos sonoros, as sugestões rítmicas entre outros recursos sonoros. Dá-se destaque ao critério acústico a fim de detectar as impressões auditivas que despertam os fonemas.

Aqui nos aproveitamos da proposta de Herculano de Carvalho (1974) a respeito do qual fala Martins (2000, p. 48-49) que tipifica desta forma as onomatopéias:

a) como sons imitativos produzidos acidentalmente pelo homem, possuem caráter momentâneo e individual; são uma imagem intencional do som natural. Têm a possibilidade de repetir-se em situação semelhante e valer como sinal (natural e intencional). As onomatopéia criadas por escritores ficam geralmente restritas a um único ou a poucos empregos.

b) como objeto sonoro de configuração definida e valor significativo constante, dentro de uma determinada comunidade lingüística, constituído por uma combinação de sons correspondentes aos fonemas da língua dessa comunidade: zás, pum, pimba, dlim-dlão, tlim-tlim, tic-tac, etc. – são as onomatopéias propriamente ditas.

Os dois tipos onomatopáicos, referidos anteriormente, não se integram ao sistema léxico-gramatical da língua, uma vez que não constituem verdadeiras palavras; “são sinais quase totalmente destituídos de valor denotativo próprio e representam globalmente uma situação e não desempenham função na frase”. Cada uma delas, assim como as interjeições, tem valor de toda uma frase (cf. MARTINS, 2000, p. 49)

c) como significante que desempenha um papel sintático na frase e recebe uma categoria gramatical, temos uma forma lexicalizada e não uma onomatopéia propriamente dita. É comum a onomatopéia tornar-se substantivo ou verbo. O signo onomatopáico é uma verdadeira palavra; seja qual for o seu valor conotativo, denota o objeto que significa e desempenha função na frase, como os substantivos pio, uivo, estalo, ribombo, ou verbos como tilintar, bimbalhar, zumbir, etc. “Estas palavras estão ligadas ao seu significado em razão de convenções e, independentemente de seu valor conotativo, exercem função representativa” (MARTINS, 2000, p. 49).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo exposto, conclui-se que a onomatopéia é um fenômeno marginal em lingüística, em especial na morfologia, em que recebe o inexpressivo nome de criação ex nihilo (CARVALHO, 1984, p. 22).

O raio de ação da onomatopéia, como vimos, é mais apreendido na estilística da expressão, tendo alcance tanto na fala cotidiana quanto na criação poética, haja vista o conhecido “Sinos de Belém”, de Manuel Bandeira e “Incêndio em Roma”, de Olavo Bilac. Em abordagem imanente-fenomenológica, do polonês Roman Ingarden, (Cf. CEIA, 2005), os itens onomatopáicos fazem parte do estrato fônico, portanto, possui tratamento mais adequado no âmbito da Fonoestilística.

Contudo, por não ser universal para as línguas naturais, não fere o princípio da arbitrariedade do signo. Apenas relativiza o princípio.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CÂMARA Jr. J. M. Contribuição à estilística portuguesa. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico. 1978.

CARVALHO, J. H. de. Teoria da linguagem. Coimbra: Atlântida, 1974.

CARVALHO, N. O que é neologismo. São Paulo: Brasiliense, 1984.

CEIA, C. “Crítica fenomenológica”. In: Carlos Ceia. E-Dicionário de termos literários, 2005. (Disponível em http://www.citadel.edu/faculty/leonard/ISER.html)

JAKOBSON, R. Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1969

LOPES, E. Fundamentos da lingüística contemporânea. São Paulo: Cultrix, s/d.

MARTINS, N. S. Introdução à estilística. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000.

MASSINI-CAGLIARI, G. Acento e ritmo: fonética do português – elementos musicais da fala, sílaba, duração e acento. São Paulo: Contexto, 1992.

MONTEIRO, J. L. A estilística. São Paulo: Ática, 1991.

ROCHA, L. C. de A. Estruturas morfológicas do português. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

SAUSSURE, F. de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1995.

TROUBETZKOY, N. S. Principes de phonofogie. Paris: Klincksieck, 1970.

[O presente artigo foi publicado na Revista Caderno Seminal [ISSN 1806-9142], v. 08. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007, p. 21-31.]