ACADEMIA SERGIPANA DE LETRAS EM REVISTA

Carlos Heitor Cony vaticinou que a literatura da forma como a conhecemos, vai desaparecer. Ele o disse considerando as mudanças que a Internet introduz no mundo da escrita. Talvez Cony tenha muita razão, mesmo porque “todo o mundo é feito de mudanças”. Que seja! E se o é ou será, que o tempo resolva a questão. Por agora, voltemos às atenções para a mais nova Revista da Academia Sergipana de Letras (lançada em 6 de março de 2006).

A revista tem uma cara bonita e um corpo bom, dividido em doze partes. Quem quiser conhecer mais de perto a musa deste verão literário, vá encontrar-se com ela à Rua Pacatuba, 288.

Resolvi atrever-me a comentar os encantos da publicação. Escolhi o ponto de vista do belo literário, do uso da palavra pela palavra, do amor por ela, do gosto indizível das letras em comunhão de sentidos e significâncias. Os quadros, os dados e as pesquisas ficam para o momento mais apropriado. Este agora é o de vê-la passar, “Que coisa mais linda / mais cheia de graça / que vem e que passa...” no discurso de posse de Jorge Carvalho:

“Chego a esta casa de cultura com a consciência de que a minha disposição para aprender e a minha capacidade de ler, pensar e escrever constituem a minha única arma, a minha fortuna.

A seleção da sociedade tem mais força que as leis da seleção natural e somente a cultura emancipa o homem, posto que define as suas atitudes, crenças e modos de comportar-se.

O embate do tempo presente que busca a inserção do Brasil no campo da modernidade mundialmente estabelecida somente ganha objetividade se trabalhado a partir do tema da cultura, a única alternativa da sociedade brasileira – de qualquer sociedade”.

Acrísio Torres de Araújo, muito apropriadamente, faz uma lúcida reflexão sobre a existência de universidades, e ainda, sobre a importância do jornalismo.

“Para que existe uma universidade? Para que está aí e tem que estar aí a universidade? Para apenas expedir títulos, “fábrica de títulos”, como já denunciava Octávio de Faria? Na universidade, mestres e alunos devem ter consciência de que educação não é um mero treinamento, um mero passa-tempo, é a busca de idéias que tornem o mundo, a sociedade e a própria vida inteligíveis. Na verdade, quando uma coisa é inteligível tem-se um sentimento de aproximação, de participação; quando é ininteligível o sentimento é de distanciamento, de impassibilidade. Padece hoje o homem (porque não lê), padece de uma doença metafísica e, logo, a cura deve ser metafísica. Para Ortega y Gasset, em Missão da Universidade, a finalidade da universidade (que raros mestres parecem perceber) é a) antes de tudo, acima de tudo ministrar o ensino superior ao homem médio (na classificação de Kant), e b) fazer desse homem médio, antes de mais nada, um homem culto, ou seja, situá-lo à altura de seu tempo, ou melhor, à altura das idéias de seu tempo”.

Anderson Nascimento, Presidente da Academia Sergipana de Letras inclui a Solidão, de Estácio Bahia, um poema que extravasa movimento, som, inspiração.

Solidão

Estou só...

Na minha solidão de poeta

Rodopio com a terra e com a vida.

Ouço ao longe as trombetas

E os recados graves dos deuses

Sou profeta

Vi as luzes e as cores que teceram

a solidão no crepúsculo

e os perfumes das tardes de setembro

se desmanchando no ar.

Wagner Ribeiro escolhe, de Marcelo Ribeiro, Flor e fome, uma composição de rara sutilidade que denuncia as diferenças sociais.

Flor e Fome:

O sul maravilha

endossa

o sempre bem-vindo

canto poético:

o importante é a rosa

e o coro nordestino

sempre faminto

desafina o estribilho:

o importante é a roça.

Anderson Nascimento aprofunda a cobrança, preocupado com destino das crianças.

“Diante da grande dívida social em que estamos vivendo, inúmeras crianças são rejeitadas por suas mães antes mesmo de nascerem. Outras que nascem em condições de miséria, sobrevivem nas ruas e acabam perdendo seus valores culturais; religiosos, morais e humanos. Perdidas são obrigadas a se refugiar nas periferias ou em qualquer lugar por tempo indeterminado, sem nenhuma chance de emprego, criando outras formas de sobrevivência, inclusive o furto utilitário”.

A prosa lírica e reflexiva de Estácio insere à Revista da Academia o movimento do mundo, do Universo.

“O homem, desde os seus primórdios, sente uma necessidade irresistível de marcar o seu tempo e muitos foram os modelos de registros eleitos para satisfazer esta exigência insensata do ser humano de acompanhar as suas passadas pelos campos da vida, até que a sua curiosidade incontrolável descobriu os movimentos constantes e imutáveis dos astros, no universo”.

A concepção de mundo e do seu enfrentamento vem na palavra da historiadora Thetis Nunes:

“Desde a juventude gravei a lição que aprendi com Jean Cristophe, o personagem símbolo criado pelo genial Romain Roland, o mentor intelectual da geração otimista e progressista a que pertenço: “A mentira heróica é uma covardia, só há um heroísmo, é ver o mundo tal como ele é e amá-lo assim mesmo”.

José Amado Nascimento torna a perguntar de que cor são os seus olhos. Poema objeto de desejo de qualquer poeta, por isto muitos o parodiaram.

De Quelle Couleur Sont Mês Yeux?

Mês yeux ne sont pás verts

Comme l’espoir qu’il y demeure

Mês yeux ne sont bleus

Comme le bonheur qu’ils désirent.

Mes yeux ne sont pas jaunes

Comme le désespoir de quelques heures.

De quelle couleur sont mes yeux?

O texto da revista da Academia prima em se tornar diamante e oferece aos seus leitores a Destinação, de Mário Cabral.

Destinação

Deu-me o Senhor, de vez, o tempo e a vida

E mãos para doar e proteger;

deu-me a visão de pássaros e flores

e a glória de criar e conceber;

deu-me o dom de colher a luz da aurora

e a lição de errar e refazer;

deu-me o Senhor, enfim, o gesto e a voz

e a graça de sonhar e de saber...

Mas veio a dor... O longo anoitecer...

A mudez... A tristeza... O desamor...

E o absurdo desejo de mão-ser...

Os médicos revelam sua face poética, Marcelo Ribeiro (já citado), e, agora, José Abud aponta com os

Hai-Kais

Pelas verdes Campinas

qual gazelas, correm

as meninas.

Na calma do campo, as cigarras

quebram o silêncio

com sua algazarra.

Seis e meia. Ei-los

mergulhados na piscina do tempo:

os ponteiros.

60 minutos. Nunca ultrapassa.

A hora feliz voa. A triste

se arrasta.

Na poça, pálida e nua,

despudorada, banhava-se

a lua.

A construção do texto imortal tem a participação de Carlos Ayres Britto com

Argamassa

Há qualquer coisa de garça

na imponência do mármore.

Há qualquer coisa de mármore

na imponência da garça.

Penso que os dois já fizeram parte

da mesma argamassa.

Tem ministro cantor e ministro poeta, este é o nosso. Não deixou por menos a questão social.

Mãezinha

Tudo o que deseja a mãezinha-graveto,

A mãezinha murcha deste sertão perdido,

É um belo par de seios fartos

Para a boca do filhinho recém-nascido.

Hunald Alencar contribui com uma leve e irônica sensualidade em:

Instrumental

Violão de estrelas indormidas

possuis da fêmea antiga

o aguardar-se ser tocada

para iniciar a cantiga.

Acompanhado em sua serenata por Marcelo Ribeiro:

Bem-querer

Um pouco do dorso

braço, cotovelo

um terço do antebraço

o lóbulo da orelha

uma nesga de rosto

e cabelos, muitos dos seus cabelos

é tudo que vejo neste instante

da mulher que amo

e que dorme ao meu lado

dividindo o travesseiro

mais bela e sensual

que todas as mulheres do mundo

vistas nuas, por inteiro...

Cabral Machado nos leva em seu passeio de trem.

Itinerário de Viagem

(1936-1942, Quatro viagens por ano)

Trem triste da partida e trem alegre da volta

Partido o trem de Calçada/Parte com asas nas rodas

Sinos e apitos cantando/Na alegria da viagem

As gentes cantam também/Cada qual no seu destino

Velhos, moços e crianças/Os homens e as mulheres

Todos nas classes se arrumam/Rapazes namoram moças

Adultos ficam sisudos/Os velhos guardam lembranças

Caem em choro mil crianças/Nos trilhos range o comboio

Eu me vou feliz também/para a terra que me espera

Na ponta do fim da linha/Onde vive a doce amada

Bem longe, no meu Sergipe/Nascida toda de encantos.

São 570 páginas de que servem muitíssimo para nos livrar do estado lastimável de desprestígio à cultura.