"Tropa DA elite"

Aproveitando o embalo de final de ano e dos tempos de nostalgia resolvi assistir o famigerado filme “Tropa de elite”. Não sou crítico de cinema e tampouco entendo dessas coisas, mas confesso que não achei nada demais na história do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais). Eu até gostei dela e tive compaixão do diretor José Padilha, o qual deve ter ouvido muitas críticas levianas e pobres, haja vista que o filme não merecia tantas, pois o diretor nada mais fez do que mostrar o que a maioria da população já sabe e, infelizmente, se divertiu e gozou com a realidade mostrada na tela.

Vamos aos fatos mais evidentes do enredo de José Padilha. Em primeiro, é importante mencionar que ele foi baseado no hoje best-seller “Elite da Tropa” (Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 2006 - agora com nova capa), livro do já conhecido antropólogo Luiz Eduardo Soares e dos oficiais do BOPE André Batista e Rodrigo Pimentel. Trata-se de uma obra na qual os autores dizem ser de ficção. Boa saída para escrever em um país democrático no qual não se pode falar nada sem ser julgado e prejudicado de alguma maneira. O livro não é uma grande obra, apenas uma narrativa que revela, melhor do que o filme, os interstícios da corrupção no Rio de Janeiro. Mostra, inclusive, uma organização no interior do próprio BOPE sedenta por assassinar o então governador Brizola (1991-1994). Paranóia policial-militar é coisa perigosa, é bom saber que os fatos tenham se dado somente na ficção. O filme não mostra este episódio, pois de duas uma: ou porque o longa-metragem tem início em 1997, ou o diretor deve ter tido lá os seus motivos para não revelar essa lado da farda preta. Mas o livro, tal como o filme, não é um grande empreendimento e somente revelam fatos que já são mais do que conhecidos. Todavia, os dois mostram acontecimentos que valem à pena serem pensados, principalmente, quando o problema é tão manifesto que causa perplexidade a cegueira coletiva.

Quanto ao filme “Tropa de elite” é certo que vai mais longe no revelar da vida oculta da polícia. A linguagem cinematográfica é mais propícia ao público que não gosta de ler e, como já se sabe, o longa-metragem do BOPE já tem data marcada para sua estréia em âmbito internacional. Talvez a platéia de lá, ao contrário da de cá, entenda de uma vez por todas que a Polícia Militar do Rio de Janeiro (por extensão a dos outros estados) possui uma “tropa da elite”. Não é preciso ir longe para perceber que ela nasce, desenvolve e cria corpo justamente para a manutenção de um Estado de coisas, para não dizer Estado de Direito (não desejo criar problemas com meus amigos que se apegaram ao campo normativo para entender e viver nesse Brasil) falido, no qual quem se dá bem são sempre os donos do poder que no passado e no presente, aqui e ali, no legal ou no ilegal, no formal ou no informal, no início ou no final estão sempre nas posições privilegiadas, nas universidades federais, nos cargos públicos, nas esferas das autoridades do judiciário, do executivo ou do legislativo. Tanto no livro como nas filmagens tais condições são patentes. Retomo os fatos.

O filme do diretor mencionado é ambientado em 1997, período no qual o país se preparava e recebia novamente com felicidade o Papa João Paulo II. De lá para cá, se não fosse deixado claro para o telespectador o período, pouco fazia diferença. Todavia, o filme é protagonizado pelo valente, respeitado, carismático e “bom policial”, capitão Nascimento (Wagner Moura). Nascimento, apesar das qualidades carrega os defeitos do machismo, da onipotência que perpassa a alma dos policias, da vontade de salvar o mundo e do descaso, às vezes por não ter optado pela omissão, pelos direitos humanos. O capitão, que se tornou piada no cenário brasileiro, devido sua forte e polêmica “voz de comando”, tem por função liderar uma “faxina” social de meliantes que operam no tráfico de drogas e, ao mesmo tempo, cuidar para que “durma bem” e não seja alvo da feiúra das paisagens do Rio de Janeiro os olhos do Papa. O seu objetivo, neste caso, é a manutenção da paz e da ordem em um morro (de nome fictício) do Rio de Janeiro. Na trama, para o controle dos transtornos oriundos da corrupção que invadiu, inclusive, os quartéis da Polícia Militar, os policiais do BOPE fazem uso dos mais variados apetrechos que fazem parte de uma guerra suja e leviana, como os espancamentos, a procura dos “suspeitos”, a suspensão de direitos e a tortura.

Como dito, o mundo fantasioso do filme não deixa a desejar. Há muito já sabemos do uso ostensivo da tortura e das pancadas da Polícia Militar e Civil e não é novidade a suspensão de direitos no Brasil. Quanto à procura de suspeitos, ela faz parte do poder discricionário da polícia e o BOPE, no filme, a utiliza muito bem. Apesar dos exageros, até porque já sabemos que o trabalho em tela faz parte do mundo real somente na polícia que tem sua face espetacular, o enredo não convence, justamente por mostrar o que já se sabe. A criminalidade e a violência requintadas e estetizadas pelo diretor recebe, contudo, contornos dramáticos na humanidade do capitão Nascimento, um policial que, tal como boa parte dos policiais na vida real, sofre de neurastenia da angústia (a denominada síndrome do pânico), provavelmente, produzida pela ansiedade do filho que vai nascer e pelo sonho romântico de dias melhores. O mesmo podendo-se dizer do aspirante e humilde André Matias (André Ramiro), que, apesar se sábio em Foucault (genial paradoxo), tem sua identidade despedaçada ante uma outra oferecida pela instituição abstrata do Estado.

Com nova identidade o jovem e disciplinado Matias incorpora e materializa o Brasil da forma que ele é: um negro que busca suspeitos na sua cor, em sua juventude pobre e na vingança, através da universidade na qual convive com uma namorada branca que gosta de fumar maconha. Sua tolerância vai ao fim assim que o seu melhor amigo, o aspirante Neto Gouveia (Caio Junqueira), é assassinado cruelmente pelo proprietário da “boca” do tráfico. Nesse caminho o filme se reveste de nova roupagem. Esperamos com ansiedade o mudar de face e a perda da ingenuidade, da esperança e da "virgindade" de Matias. Ao mesmo tempo em que se torna um "capitão do mato" moderno, o jovem policial critica, tal como o capitão Nascimento, a classe que se intitula como média e alta e que, descaradamente, financia há tempos o tráfico de drogas. E, diga-se de passagem, não é qualquer tráfico. O filme ainda trata do tráfico do final da década de 80 e início de 90. Hoje ele é diferente e o BOPE já possui armas mais sofisticadas e o famoso carro de combate, o caveirão. No entanto, a mensagem do filme é ainda mais do que clara, a mesma população que percorre as ruas e as avenidas pedindo paz, é a mesma, pelo menos em grande parte, que financia o tráfico de drogas e, por ressonância, o de armas. Duas faces de uma população medíocre, hipócrita, excludente, leviana, autoritária, machista e por aí vai. A “tropa da elite” é essa. Apesar de saber quem são os verdadeiros traficantes e onde eles estão, pouco ela faz. Na elite a tropa não coloca as mãos, a narrativa do filme revela que eles se contentam em matar crianças, adolescentes, entregar olheiros, fogueteiros e informantes. Não foram presos o comandante da PM que se gabava da desordem do Estado e do seu “ganho” oriundo do jogo do bicho e seus comparsas. Nestes, a despeito de saber da existência o BOPE não mexeu. Creio que a questão era essa mesma. Não mostrar o fim destes personagens é evidenciar que tudo continua como antes. O Brasil tal como ele é.

Capitão Nascimento termina sua narrativa entregando para Matias uma arma que colocou fim ao chefe do tráfico que matou o seu melhor amigo. Finalmente, o capitão que chama no teatro de operações os alunos de fanfarrões, vai para sua humilde casa. Ele não omitiu, preferiu e foi para a guerra e dela saiu deixando o “pepino” para o jovem e agora disciplinado Matias, o qual se realmente existisse na realidade, continuaria matando pobres, jovens, negros e invadindo favelas de dentro do caveirão, mas longe da corrupção certamente existente na cúpula da polícia, dos partidos, sindicatos, igrejas, jogo do bicho, escolas de samba e dos mecanismos de corrupção que perpassam o legislativo, o judiciário e o executivo. Triste fim o do Matias e parabéns para a “tropa da elite”.

Lúcio Alves de Barros (é bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela UFJF, mestre em sociologia e doutor em Ciências Humanas: sociologia e política pela UFMG). Organizador do livro “Polícia em Movimento”. Belo Horizonte: Ed. ASPRA, 2006.