Os bons clientes merecem preferência? Às vezes são até prejudicados

Os bons clientes merecem preferência? Às vezes são até prejudicados

por Márcio de Ávila Rodrigues

[08/03/2024]

Os bons clientes merecem preferência? Essa é, sem dúvida, uma ideia lógica. É uma expectativa do bom pagador e uma opção inteligente de quem está vendendo algum produto ou serviço.

Mas, em sociedade, nada é linear. Lidar com gente é sempre complicado.

Nunca me esqueci de um episódio que explicita bem a deturpação desta racional preferência pelo bom pagador. Aconteceu em meados dos anos 1990.

Eu trabalhava no hipódromo Serra Verde, em Belo Horizonte, como veterinário. Tinha também um esquema de supervisão de animais em treinamento.

Um dos profissionais não fixos que me atendiam era um ferrador de cavalos. Ele trabalhava sob demanda, cobrando cada atendimento.

Tanto os cascos dos cavalos quanto as ferraduras se desgastam regularmente com o atrito e o tempo. Aparar os cascos e trocar as ferraduras é necessário a cada 30 ou 45 dias, em média. E frequentemente alguma coisa sai da rotina e exige atendimento extra.

(Há muito os equinos deixaram de ser o principal meio de transporte, hoje isso quase só acontece nos sertões. Uso os parêntesis porque esta explicação parece dispensável, mas breve será necessária. O ser humano vai perder, progressivamente, o contato com a natureza.)

Em determinado momento notei que estavam muito frequentes as “enrolações" do ferrador quando eu o convocava. Adiava com frequência e me prejudicava.

Um dia, meu treinador descobriu a causa dos atrasos. O problema começou com outro cliente, um determinado dono de cavalos (na verdade o principal proprietário de cavalos do local) que era reconhecidamente mau pagador e estava com uma boa dívida com o ferrador.

Mas a reação aos atrasos de pagamento foi equivocada, oposta ao que seria esperado, ao racional. Com medo do tal cliente inadimplente ficar irritado e "dar o cano”, o ferrador teve a “brilhante ideia” de dar-lhe preferência e “enrolar" os bons pagadores, que lhe pareciam seguros.

Optei por uma saída pacífica e educativa. Simplesmente chamei outro ferrador para fazer o serviço. Não passei recibo, nada demonstrei. Posteriormente meu ex-ferrador preferiu deixar de ser “ex” e voltou manso e solícito.

Nada como o uso de uma das mais antigas regras do capitalismo: a concorrência profissional e comercial.

“Enrolar” os bons clientes não era um hábito exclusivo do meu antigo ferrador preferido. É um hábito comum entre prestadores de pequenos serviços, como nos consertos e na manutenção. Vão fazendo devagar (ou adiando) os serviços que lhes parecem de pagamento garantido enquanto atendem, com mais rapidez, aqueles que não desejam atrasar ou adiar.

Faz parte da mentalidade brasileira e de um grupo de pessoas que não conseguem avaliar todas as consequências de seus atos cotidianos.

Sobre o autor:

Márcio de Ávila Rodrigues nasceu em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, Brasil, em 1954. Sua primeira formação universitária foi a medicina-veterinária, tendo se especializado no tratamento e treinamento de cavalos de corrida. Também atuou na área administrativa do turfe, principalmente como diretor de corridas do Jockey Club de Minas Gerais, e posteriormente seu presidente (a partir de 2018).

Começou a atuar no jornalismo aos 17 anos, assinando uma coluna sobre turfe no extinto Jornal de Minas (Belo Horizonte), onde também foi editor de esportes (exceto futebol). Também trabalhou na sucursal mineira do jornal O Globo.

Possui uma segunda formação universitária, em comunicação social, habilitação para jornalismo, também pela Universidade Federal de Minas Gerais, e atuou no setor de assessoria de imprensa.