Justificativa ou comentário do poema "Do que ficou"

Não costumo justificar o que eu escrevo, pois geralmente escrevo para mim mesma e a justificativa está em mim mesma. Mas vou justificar o que eu escrevo hoje, só por rebeldia contra mim mesma.

A inspiração para este último poema veio de uma das minhas noites de insônia, noites nas quais sempre me vem algo produtivo. Primeiro a sensação de querer estraçalhar meu corpo inteiro com as mãos, de raiva da miserável condição humana. Depois um momento de contemplação espiritual, e percebo que tem algo querendo sair de dentro de mim, misticamente, como flor que rompe a terra com brutalidade e se transforma em sentimento, paixão e leveza. De mim nasceu mais uma flor, que dessa vez não foi do mal nem doentia como as de Baudelaire.

Lembrando dos meus amigos e companheiros de escola com os quais vivi os últimos cinco anos, e pensando sobre meu futuro incerto como o Portugal de Fernando Pessoa, percebi o quanto a ausência deles e de todo aquele ambiente ainda estava presente em mim. Olhei a estrela, longe... E seu brilho a iluminar meu corpo e minha cama desfeita, de forma branda. Aí entendi, que mesmo que o relógio tenha engolido alguns dos momentos mais formidáveis da minha vida, a vida mesma os conservou. Podemos alcançar a imortalidade sim, somos superiores ao tempo que tanto nos amedronta. Porque as coisas que foram ficam. Como a cama desarrumada do amor de algum tempo atrás, ainda conserva o calor e o cheiro dos amantes. Se ela é deixada ali, intocada como um santuário, jamais perderá os momentos ali conservados. Essa é a semântica do texto.

Não posso esquecer também que outros já disseram o que eu disse, outros não, aliás o mestre Quintana:

"O sumo bem só no ideal perdura...

Ah! Quanta vez a vida nos revela

Que 'a saudade da amada criatura'

É bem melhor do que a presença dela..."

Há intertextualidade muito forte entre meus textos e os dele, para mim ele é a maior inspiração e o maior poeta contemporâneo, embora póstumo.

Sobre a estrutura do texto, preferi fazer a composição em terzas ao estilo de Dante Alighieri, pois é uma estrutura poética que demonstra exatamente os anseios semânticos do texto; imortal, antiga e ainda muito presente apesar da idade. Tão presente que foi usada por Drummond na sua "Máquina do Mundo", embora com versos impecávelmente brancos. As terzas representaram também, especificamente na Divina Comédia, a ascensão mística do poeta: Inferno, Purgatório, Paraíso, além de uma referência à Trindade Pai, Filho e Espírito Santo. Para mim, o significado é similar, porém adaptado; tomo a liberdade de modificar as terzas como Drummond as modificou. Para mim o poema "Do que ficou" mostra toda minha trajetória até aqui, subindo uma escada que não sei para onde vai, nem de onde veio (por isso faço as mesmas rimas e uso as mesmas palavras na última e primeira estrofe), mas uma ascenção também em direção a algo. Talvez dentro de mim mesma. O degrau mais alto aqui, o começo-fim do poema, é a divagação a respeito da estrela, e a sublimação do sentimento que para mim é o verdadeiro amor: a amizade sincera. Nada mais além disso, segundo eu mesma, pode ser considerado amor. Quanto a isso não tem discussão, eu vivi.

Para a conclusão deste artigo metalingüístico, gostaria de fazer você, amigo leitor, refletir mais a respeito da arte literária. A partir de versos simples e aparentemente bobos como os de "Do que ficou", pode-se tirar conclusões e reflexões como as que eu escrevi acima. Por isso preste bastante atenção naquilo que você lê; analise, como um quadro ou escultura. Esse próprio texto tem não (só) a função metalingüística, mas também essa aí.