Somos cúmplices

Não é por acaso que a morte do pequenino João Hélio Fernandes, 6 anos, tem causado uma ostensiva comoção e indignação de boa parte da sociedade brasileira. Olhos atentos devem estar percebendo a abertura do debate sobre a redução da maioridade penal, outros se abrem ante os holofotes da “necessária” e “obrigatória” pena de morte e, não vários “doutores do direito” novamente se apegam à velha ladainha da impunidade. Ou estão me enganando, pensam que sou burro, ou apostam na sempre deficiente e inoperante memória brasileira.

O fato é que não vai demorar muito para tal acontecimento cair no esquecimento. No Brasil cultivamos a arte de esquecer as mazelas da civilização. Para isso não faltam autoridades “cultas”, argumento acadêmico, pessoas respeitáveis, os “sabem tudo da vez” e várias explicações sobre o famigerado aumento da criminalidade. Penso seriamente que sou esquizofrênico, pois não consigo entender, tampouco engolir goela abaixo tais manifestações de desprezo e desonestidade em todas as esferas da vida.

A humanidade, além de porca, fascista e suja, é hipócrita, conivente e conveniente com os acontecimentos. Vamos ser justos aos fatos: logo, logo, passando os apelos midiáticos da Globo e companhia, a história do menino João Hélio Fernandes vai cair no esquecimento. Pode virar símbolo, mito, razão de viver para algumas pessoas ou mesmo um "novo" movimento social, capitaneado por uma ONG, ávida de dinheiro, da balela da “responsabilidade social”, assessoria, cursos de pós-graduação e representação política no congresso. Esse filme já foi - à guisa de inédito - mostrado pela TV, tal como a morte da professora Gisela no Rio de Janeiro, da pequena garota queimada anos atrás em BH, da funcionária pública, cuja ossada só foi encontrada após anos de procura ou mesmo da morte da atriz global ou do promotor de justiça José Francisco Linz do Rego na capital mineira. Esses são exemplos que, no calor dos acontecimentos, vieram à minha memória e o leitor certamente deve ter outros em mente. Não é necessário estar em um banco de uma universidade ou mesmo das instâncias da estrutura da segurança pública para perceber que, de uma forma ou de outra, somos responsáveis, verdadeiros cúmplices pela morte desse e de tantos garotos e garotas que acreditam - ou sequer tiveram tempo de - nesse país. A cada dia assassinamos um pouco de nós e do outro. O caso, lamentável em todas as situações, revela com acuidade o descaso com o ser humano, a banalidade que se tornou o mal e a fúria incompreensível daqueles que acham saudável ou mesmo lucrativo viver na invisibilidade.

Ao ler ou tomar ciência dos acontecimentos não é possível não sentir e pensar que a morte de uma criança sempre aponta para a farsa de nossa civilização e da 'inexistência' de Deus. Algo está muito errado e, faz tempo que as coisas não andam certo por aqui. Casos de violência, corrupção e criminalidade não devem e não podem cair na banalidade e na crença imbecil de que “tudo é normal”. O que nos separa dos animais é a arte do diálogo, da política, do convencimento, da negociação e responsabilização dos atos. Há muito vemos e somos vítimas da várias tentativas de programas no campo da segurança pública. Pública? Talvez eu tenha sido vítima de uma ação inconsciente, um "ato falho". Não há publicidade nesse país. A elite anda se escondendo em muros, carros blindados, e, os mais “empreendedores” já optaram por helicópteros. Perdemos o espaço público e a “cultura do medo” tornou-se um monstro amigável, possível de ser manipulado de acordo com os ventos políticos e candidatos a autoridades de ocasião. É por isso que não aceito. Não devemos aceitar a morte de uma criança com ou sem brutalidade. Pelo amor de Deus (outro ato falho?): é uma criança. Esqueçamos o automóvel. Estamos passando nesse país pelo mais invisível, e daí sua crueldade, genocídio que já se viu de novas gerações. A elite assiste calada e busca no famigerado conhecimento científico e normativo as explicações. É muita insensibilidade.

Não é lugar para mostrar saídas para a calamidade da segurança pública, o despreparo da polícia, a arrogância das autoridades ou mesmo o sensacionalismo da mídia. Prefiro o fato: a criança faleceu por motivo torpe. Não há outra explicação. Ficarei comovido e agradecido se alguém me disser que a humanidade ainda tem salvação. Não vale ser padre, pastor, mãe de santo, ser médium ou possuir doutorado. Não mais acredito em autoridades que conseguem dormir, com ou sem Deus, mediante a morte de uma ou mais crianças. E nós, brasileiros, uma “turma de malandros", "sem escrúpulos", resultado de uma sociedade autoritária, bruta, suja, machista, racista, cruel e hierarquizada. Ao mesmo tempo em que assistimos à entrevista da deprimida mãe do pequenino José, nos mantemos na mesma tela do Big Brother com o chato do tal do Bial tentando convencer as pessoas que nada aconteceu e que tudo está bem. Mais que isso, que a vida é um conjunto de modelos sem caráter e sem igual fisionomia na sociedade. Logo, o errado somos nós, e não as representações alienantes produzidas em um mundo virtual. Poupe-me dos detalhes dessa vida fútil e sem lugar. Deixemos as máscaras e representações caírem e pensemos bem: “amanhã morre outra”, “antes aquela do que a minha”, “é o fim dos tempos”, “ai meu Deus, onde isso vai parar?”. Coisa chata e impossível de deixar de ouvir. Somente ouvir, fique claro.

Todavia, sejamos francos: somos fracos, incompetentes e vamos esquecer esse momento que mancha, mas não acaba com essa fingida felicidade do brasileiro. Depois do carnaval, aumentemos o muro de nossas casas, coloquemos mais grades e vamos assistir dentro do espaço privado, quiçá sentados em uma privada, homens e mulheres se matarem, seja no trânsito, em casa ou na rua. E torça para que você ou quem esteja morando muito perto não seja a próxima vítima.

Lúcio Alves de Barros (texto publicado no Jornal Circuito Notícias. Região do Paraopeba, Brumadinho, Opinião, Ano 12, Edição 153, Fevereiro de 2007, p. 02).