UMA BIOGRAFIA PARA SE ESQUECER

André Iki Siqueira - JOÃO SALDANHA, uma vida em jogo

Companhia Editora Nacional, São Paulo 2007

Quando um biógrafo humilde confessa que teve de “estabelecer um prazo para o fim da pesquisa e da apuração” sobre o biografado e quando se vê que o livro objeto da biografia teve seu lançamento programado para fins do ano de 2007, não há como ignorar que existe uma ligação entre os fatos. E, depois, quando se compra o livro cujo valor foi a mais de R$ 60,00 também não se pode desligar uma coisa de outra. [Parêntese para perguntar: quando o livro nacional – que recebeu do Governo isenção TOTAL de impostos – vai chegar num patamar acessível a todos os brasileiros? E quando o Governo vai cobrar dos Editores essa atitude?] Voltando aos finalmente, como se diz, pergunto: como fica o leitor, quando o livro tropeça num número exagerado de erros, quando o texto perde-se num matagal de vírgulas, quando se vê que a própria biografia registra mais “o que se ouviu dizer”, fugindo sorrateira da realidade dos fatos e se escora em anedotas, verídicas ou não. O quê dizer? Mais uma vez, o quê dizer quando o livro repete, sem recriar, muitas das centenas de histórias que ele mesmo contou em seus livros e crônicas esportivas, acrescidas das histórias sobre histórias que muitos dos seus colegas de profissão, os jornalistas esportivos, também pontuaram tanto em volumes impressos quanto nos textos das colunas diárias de jornais. O quê dizer quando se percebe que, se o volume atingiu suas 551 páginas, não foi graças aos esforços do biógrafo em investigar a fundo a vida do biografado e sim graças às centenas de fotografias que entremeiam o texto, à impressão em tipo itc Century sobre papel couché de 90 g/m, espaçamento 1,5? Todos sabem que a vida de João Saldanha dará não só uma biografia, mas muitas biografias. Como personagem da história do futebol brasileiro, tudo o que se sabe da vida de João Saldanha, sobrará ainda muito caldo para filme longa metragem, para programas de TV e para vários documentários.

Pois André Iki Siqueira se esmerou num contexto de cronologia tão duramente traçada, que teve de dar por encerrada a biografia às pressas e entregar os originais à editora para que daí surgisse um bom produto de Natal. Todo o seu trabalho está travado pelo rigor da cronologia. Para os que não conheceram a vida do João Saldanha, principalmente em sua primeira fase bem mais política que cultural, o publicitário André Siqueira não teve trabalho em escolher e oferecer um panorama bem diversificado. Mas com certa tristeza se vê que os fatos descobertos serviram apenas para enquadrar o corpo mirrado do garoto João numa paisagem entremeada de sangue, disputas políticas, ambições de poder, guerras de latifúndio. É nesse espaço que a paisagem e os fatos bastante notórios da história do Rio Grande do Sul servem de estrada para os primeiros passos de João Saldanha, mas que também lança o menino em presumidas aventuras e tomadas de posição entre maragatos e chimangos, desvarios a que raramente se lança a juventude interiorana, acostumada à vida pacata e discriminatória do interior. Dessa caminhada por uma estrada cheia de pedregulhos pode-se inferir que houve um momento em que o futebol começou a tomar conta das atitudes políticas do jovem João Saldanha. Porém faltou a André Siqueira a dosagem certa de imaginação para localizar o ponto em que essa atitude foi importante na vida de Saldanha, uma vez que o jovem interiorano se dirigia direto para o confronto político, impedindo a cauterização das feridas ideológicas e provocando a fixação de algumas idéias que durante toda a vida ele praticou, inexorável.

Ora, direis, toda biografia é uma obra cronológica. Tendes razão. Porém, o ideal é que até as obras literárias que exijam o caráter e o rigor de uma cronologia viessem a ser elaboradas “sin perder la ternura jamás”. Quando se trata de trabalho de mestrado existe uma regra a seguir e não segui-la significa a perda de pontos. Por isso quando uma tese de mestrado se transforma em livro não consegue ocultar a rigidez não literária do texto. Mais: quando Cervantes criticou o Dom Quixote apócrifo, não o fez por ser uma obra literária má. Não era e não é. Cervantes condenou a dureza “de piedra” com que o texto foi elaborado. E por quê? Porque Avellaneda seguiu rigorosamente o roteiro que Cervantes havia deixado no primeiro volume, o que, também, teve o demérito de limitar a imaginação do autor. Ser fiel foi o pecado de Avellaneda...

De qualquer modo, a vida de João Saldanha está quebrada em dois fragmentos cheios de fanatismo. Primeiro, o lado político, a convicção ideológica, a obediência às diretrizes emanadas da União Soviética, a fé arraigada na opção socialista. Segundo, o fanatismo pelo futebol – e pelo esporte em geral. E essa convicção determinada em defesa do futebol e do jogador, tem algo da herança socialista por um lado. Por outro lado, bate de frente com todo o rancor ideológico que emana das diretrizes socialistas rígidas, que condena as práticas populares – incluídos carnaval e futebol – como “ópio do povo”. Então, podemos repetir, sem medo, que ser fiel foi o pecado de André Siqueira...

Essa biografia de João Saldanha foi planejada assim. O biografado escolhido a dedo, qualificado pelo volume de retorno financeiro. O tempo datado pronto para determinar a unanimidade dos capítulos. Assim é que essa história, que principia em 1917 (ano da Revolução Russa), de lá pra cá atravessa a Época de Ouro do futebol, até chegar em 1990, quando João Saldanha – muito doente dos pulmões (enfisema) – fez tudo para conseguir liberação médica para ir à Copa do Mundo da Itália. Acabou morrendo lá mesmo. O interessante é que André Siqueira adotou um esquema de ir mesclando a vida de João Saldanha com os fatos históricos que rodeavam sua existência. Mas essa técnica – se podemos chamar assim – foi emagrecendo ao caminhar da biografia, na razão inversa da importância que a vida de João Saldanha ganhava na história do futebol brasileiro. E na razão direta em que o João Saldanha político perdia em importância. Senão nesse mesmo caminhar, André poderia sinalizar que na década de 90 houve o nascimento da Perestróica e o conseqüente colapso da União Soviética. Também a Guerra Fria submergiu nas águas geladas do rio Volga. Seria sem dúvida um trauma para o velho comuna assistir a derrocada do único sistema político capaz de enfrentar os americanos e os chineses. Ainda mais sendo esses fatos seguidos pelo advento da democracia, globalização e capitalismo global. O velho comunista tremeria na base.

Ademais, dá na vista que foi um trabalho realizado sem sair do eixo Rio-São Paulo. André Siqueira não demonstra em nenhuma linha que teve o trabalho de se deslocar para o Rio Grande do Sul – até mesmo às cidades uruguaias fronteiriças – onde decerto acharia rastros da família Saldanha e poderia comunicar seus achados com mais precisão. Se o advento da internet facilitou, por um lado, a pesquisa sobre a vida, a movimentação e as atividades do biografado, por outro lado tornou os pesquisadores mais preguiçosos, fazendo-os esquecer que o que já está na rede não é mais inédito e é provável que grande parte dos leitores já tenha conhecimento da notícia. Assim é nesta segunda parte da biografia de João Saldanha: muitas das informações tomadas através de depoimento já são de domínio público, não careciam de uma biografia para serem conhecidas. E mais uma vez prevaleceu o lado folclórico do João Saldanha, nada se soube sobre sua vida e dramas privados, que ele viveu intensamente na última fase da vida. A elogiar, se não fosse dado à matéria um tratamento sintético exagerado, o relato da viagem de Saldanha à Itália, onde viveria os últimos momentos da existência.

Não passou em brancas nuvens outra observação feita ao acaso, mas com propósito bem definido. Vamos da voz a André Siqueira: “Numa segunda-feira de junho de 2003, fui a Maricá com meu primo Sacha Amback e sua mulher, Christiane. Eu estava ansioso e preocupado. Meu destino era a última casa onde morou João Saldanha; e meu objetivo, conhecer seu filho, João Viotti Saldanha – amigo de Sacha –, e sua mãe, Ruth Saldanha, a segunda esposa de João. (...) Eu queria fazer um documentário sobre a vida de João Saldanha e pedir a autorização da família para tanto. Fui recebido com alegria e tive a concordância e o entusiasmo dos dois. Fiquei muito feliz com esse sinal verde. Lógico que poderia escrever sobre a vida de João sem que eles me autorizassem, mas a participação da família era fundamental para recompor o personagem e transmitir carga emocional ao trabalho”.

Nesse pequeno excerto pode-se ver que não foi gratuita a crítica sobre os lapsos da fluência da escrita, a presença de vírgula e ponto-e-vírgula, excessiva e inoportuna, que a revisão deixou passar. Também aqui há uma referência que remete à discussão entre a invasão de privacidade e a pseudo liberdade de escrita que o biógrafo deve ter, à luz de recente biografia de conhecido cantor. Há um pouco de arrogância na frase “Lógico que poderia escrever sobre a vida de João sem que eles me autorizassem”. Poderia mesmo? No caso da biografia (esta, sim, não autorizada) de conhecido cantor, causou engulhos de vômitos a intervenção judicial favorável à proibição, não porque o texto ofendesse a vida privada – ao contrário, está dentro dos limites éticos – mas sim pela ausência da promessa de mais alguns $$ na conta corrente de Roberto Carlos. Paulo César de Araújo se esqueceu de dar – como se dizia antigamente – o jabaculê...

Rio de Janeiro, 3/9 de janeiro de 2008.

Salomão Rovedo
Enviado por Salomão Rovedo em 09/01/2008
Reeditado em 09/01/2008
Código do texto: T809557