CRÔNICA PARA OS CASAIS QUE ESTÃO SE SEPARANDO, PAR A OS QUE JÁ SE SEPARARAM - E PARA OS QUE NEM COGITAM SOBRE ISSO

Ontem meu irmão me ligou pela manhã num demorado interurbano para contar uma tragédia: estava se separando da esposa. Visitei pela parte da tarde uma amiga e ela me narrou uma outra tragédia: seu filho, casado a vários anos, estava se separando. E como sei de dezenas de outros casos similares, acabei por concluir que a vida conjugal anda em crise. Os motivos que são expostos justificando as separações são os mais diversos: desde as divergências religiosas à incompatibilidade sexual; dos desníveis de intelecto à impossibilidade de aceitação da atualização promovida pelo outro. Em alguns casos registra-se agressões verbais sem ofensas mais graves, em outros as ofensas verbais já atingem a fundo e, em última instância, porrada, soco, pontapé evidenciam o profundo descontentamento. Curioso é que a grande maioria desses casais em crise , quando do começo da relação , se declarava no estado da mais perfeita e adorável paixão. O que aconteceu , então? Rapidamente vem a explicação: Ah! Ela mudou muito... Ah! Ele não é mais o mesmo... Falam com a cara como de quem foi iludido por um comerciante experiente em vender gato por lebre. A venerada pessoa de outrora torna-se alguém execrável, desprezível, inviável para uma convivência a dois. E quando a separação se efetiva, se não se efetiva harmoniosamente mas a partir de um processo litigioso, e se há bens e filhos a serem disputados, então os antigos amantes se transformam em verdadeiros monstros da inimizade, do ódio pelo outro. Dos antigos beijos trocados chega-se ao nojo. Dos gestos de ternura chega-se aos obscenos. Dos desejos de “vá com Deus, te amo!” chega-se a um “quero que se foda!” Das alturas da boa educação e do respeito desce-se às profundezas da vulgaridade inominável. E então vem a ambição que quer tirar o máximo proveito material da situação, e para isso – não raro – não mede esforço chegando mesmo a usar de falcatruas. Os elementos se tornam mesquinhos, chulos, sem vergonha, sem caráter. E pensar que um dia compartilharam a mesma cama romanticamente, amorosamente, gostosamente... Suspiros foram dados; olhares ternos foram oferecidos. Juras foram trocadas.... Mas a realidade presente é que a relação desmoronou e já não existe mais. Foi o psicólogo Erick Fromm (acho que é assim a grafia do seu nome, se não estou enganado) que , a meu ver, melhor definiu o sentimento chamado amor: disse ele mais ou menos assim: amar é estar encantado com a presença do outro; é, do mesmo modo, estar encantado com o que o outro é e pensa, e faz! Em síntese, amar é estar encantado pelas características gerais do outro. Ora, fica entendido então que o dinheiro que o outro tem não serve como referencial de amor; que a beleza física também não; que o status ostentado pelo outro na sociedade idem. Ora, se o dinheiro e a beleza e o status do outro não servem como referenciais de amor, o que servirá então ? Se se tirar isso de uma pessoa – o que sobrará??? Meu Deus: sobrará a pessoa! Legitimamente, autenticamente, nem mais nem menos. Com todas as suas virtudes e fraquezas. E é a personalidade dessa pessoa , seu particular modo de ser e de ver o mundo, a manifestação de sua química pessoal e particular que deve encantar um outro alguém. Ela poderá ter dinheiro ou não; poderá ser linda ou humilde de beleza; poderá ter status ou ser desconhecida até pelo lixeiro: se for agradável a alguém, se for encantadora às vistas de alguém, e se esse alguém desejar ardentemente viver uma relação íntima com a referida, então verificaremos um evento raro: o exercício do verdadeiro amor! Muito possivelmente ( e digo desse modo porque não sou o dono da verdade) a esmagadora maioria dos casais em separação amigável ou litigiosa não considerou esses fatores lá no início da relação. Têm-se uma visão por demais romântica (quando se tem) do que seja relação a dois: em pleno século XXI busca-se o príncipe ou a princesa encantados. E não se percebe que a condenação está exatamente no que se diz: “encantado” ou “encantada”. Tudo o que está sujeito ao encanto está infalivelmente sujeito ao desencanto. Vinícius dizia: que seja infinito enquanto dure... referindo-se ao amor. Durará infinitamente se for verdadeiro. Só o que é verdadeiro é eterno. E só o que é verdadeiro busca o eterno: a alma, a personalidade, o ser do outro. O melhor exemplo que tenho para oferecer é o do casal Jorge Amado e Zélia Gattai. Zélia admirava e respeitava profundamente a Jorge; e Jorge à Zélia! Ambos eram encantadíssimos um pelo outro, mas não desse encantamento pueril de estórias de conto de fadas que não considera o ser do outro, mas daquele encantamento que reverencia a luz que é natural no outro. E... será que é fácil de a gente encontrar essa alma iluminada que irá nos trazer mil felicidades, e a quem quereremos oferecer mil outras ? Aparecerá se estivermos preparados para esse amor de admiração, de respeito, de carinho, para não dizer de verdadeira veneração mutua; aparecerá e nos revolucionará toda a existência. Meus melhores votos que você viva essa felicidade leitor(a) , com quem já esteja no presente ou, se em transitória solidão, com quem você venha a adorar num futuro bastante próximo, porque, como dizia Chico Buarque de Hollanda : a gente vai se amando, vai se amando porque sem um amor ninguém aguenta essa vida não.

CAVALAIRE
Enviado por CAVALAIRE em 05/12/2005
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