MILONGA E CORDEL

Pode-se dizer que a milonga – canção popular de raiz uruguaia – é uma prima da poesia de cordel, que corre nos países hispânicos com o nome de “poesia popular”. A milonga transita livre pelas fronteiras do Brasil com Argentina Uruguai, tendo também vertentes e variantes nacionais, cantada em verso e prosa. Como a nossa poesia de cordel, em sua pré-história, também a milonga começou a ser composta em forma de quadra, com versos de sete sílabas, o que dá a idéia de que ambas as formas se originam da trova. Depois sua forma se expandiu e as variantes vão de sextilhas a décimas, sendo que a poesia de cordel criou variantes mais elaboradas, como o martelo, o galope – cujo fim era desafiar a memória e a habilidade dos cantadores e violeiros. Portanto, também os cantadores e os payadores também são descendentes e herdeiros da estirpe dos trobadores medievais, cujas canções – lá como cá – na verdade cavam notícia das coisas que ocorriam em volta, fatos que abrangiam tanto a política quanto as ocorrências mais comuns do dia a dia, as tragédias pessoais e naturais, o nascimento e a morte de algum personagem importante, amores e desamores, fatos de natureza profana e sagrada.

Jorge Luis Borges encontra na milonga a raiz do tango. Ele tenta fixar o nascimento da milonga nas periferias de Buenos Aires ou, no máximo, entre Montevidéu e a capital portenha. Mas o fato é que a milonga ultrapassa essas fronteiras e ocorre em todo o cone sul, desde o pampa gaúcho até as periferias mais distantes da Argentina. Trata-se de fato de poesia que tanto pode ser recitada apenas com fundo musical, quanto pode ser musicada na forma conhecida tanto no Brasil quanto no Uruguai e Argentina, quase uníssona, com poucas variações tonais. Depois a milonga se aproximou do tango de tal maneira íntima que hoje quase não há distinção.

As canções de cordel (não confundir com a poesia de cordel), são também musicalmente limitadas a no máximo cinco variantes, nas quais todas as letras compostas se enquadram. As nossas canções também não se prendem às sextilhas de sete sílabas, têm uma forma própria, mais aproximada da poesia dita clássica, com rimas. Os temas, porém, acompanham o registro geral e tratam, de forma romântica ou trágica, da vida comum, das ocorrências sociais e políticas, dos milagres e fatos extraordinários, da história presente e futura. Difere da poesia de cordel, cuja composição obedece a regras fixas, cuja base é a sextilha de sete sílabas, rimando nos formatos ABABAB, ABCBCB ou setilhas no formato ABABCCB e é recitado com acompanhamento de viola em harmonia que varia de dois ou três acordes, repicando o solo com o vocal.

A incursão de Ferreira Gullar na poesia de cordel foi fortuita e ocasional, tinha uma finalidade específica, não foi uma fase poética do autor que pudesse causar uma interrupção no itinerário que ele percorria na literatura. Em 1962, quando fez parte do Centro Popular de Cultura da UNE, Gullar escreveu “Quem matou Aparecida?” e “João Boa-Morte, cabra marcado para morrer”. “Quem matou Aparecida?” relata um drama urbano: uma mulher que trabalha como doméstica em Ipanema, é atacada pelo patrão, vê o seu companheiro, operário, desaparecer depois de participar de uma greve. Desesperada, a doméstica acaba se imolando, ateando fogo às vestes. “João Boa-Morte” foi escrito para ser apresentado em teatro e representações populares pelo CPC. “Oduvaldo Vianna Filho procurou Gullar para criar um espetáculo sobre reforma agrária e pediu que fizesse a estrutura da peça em versos, a fim de poderem usar um cantador do Nordeste”. "Cabra marcado para morrer" se transformou em filme dirigido por Eduardo Coutinho. “História de um valente” (cordel assinado com o pseudônimo de José Salgueiro) foi feito sob encomenda do Partido Comunista, a fim de ajudar na campanha para libertar o líder camponês Gregório Bezerra. O livro foi publicado na clandestinidade e Gullar usou o pseudônimo de José Salgueiro, poeta popular, numa referência à sua escola de samba. Só muitos anos depois Gullar assumiu a autoria do cordel. Eis o mais famoso cordel de Gullar:

João Boa Morte - Cabra marcado pra morrer

Essa guerra do Nordeste

não mata quem é doutor.

Não mata dono de engenho,

só mata cabra da peste,

só mata o trabalhador.

O dono de engenho engorda,

vira logo senador.

Não faz um ano que os homens

que trabalham na fazenda

do Coronel Benedito

tiveram com ele atrito

devido ao preço da venda.

O preço do ano passado

já era baixo e no entanto

o coronel não quis dar

o novo preço ajustado.

João e seus companheiros

não gostaram da proeza:

se o novo preço não dava

para garantir a mesa,

aceitar preço mais baixo

já era muita fraqueza.

"Não vamos voltar atrás.

Precisamos de dinheiro.

Se o coronel não quer dar mais,

vendemos nosso produto

para outro fazendeiro."

Com o coronel foram ter.

Mas quando comunicaram

que a outro iam vender

o cereal que plantaram,

o coronel respondeu:

"Ainda está pra nascer

um cabra pra fazer isso.

Aquele que se atrever

pode rezar, vai morrer,

vai tomar chá de sumiço".

Já a afinidade de Jorge Luis Borges com a milonga foi mais pródiga, talvez buscando uma afirmação para esse ritmo portenho, talvez uma contraposição à aversão que o poeta nutria pelo tango. Nem por isso Borges se considerava um milongueiro, porque também não tinha raízes populares – sua poesia era clássica por demais. Mas depois de ver muitas de suas poesias musicadas acabou por aceitar a homenagem que os milongueiros lhe faziam toda vez que isso era possível. Além das milongas, Borges compôs algumas letras que foram musicadas por Astor Piazzolla: “A Don Nicanor Paredes”, “Alguén Le dice AL tango”, “El Títere” e “Jaccinto Chiclana” são alguns desses tangos. Eis algumas milongas de Borges: “Milonga de Calandria” (Música: Eladia Blázquez), “Milonga de Albornoz” (Música: José Brasso), “Milonga del Infiel” (Música: Sebastián Piana) e “Milonga del Muerto” (Música: Sebastián Piana). A seguir reproduzimos duas das mais famosas Milongas de Jorge Luis Borges.

Milonga de Manuel Flores

(Música: Vitor Ramil)

Manuel Flores va a morir,

eso es moneda corriente;

morir es una costumbre

que sabe tener la gente.

Y sin embargo me duele

decirle adiós a la vida,

esa cosa tan de siempre,

tan dulce y tan conocida.

Miro en el alba mis manos,

miro en las manos las venas;

con estrañeza las miro

como si fueran ajenas.

Vendrán los cuatro balazos

y con los cuatro el olvido;

lo dijo el sabio Merlín:

morir es haber nacido.

¡Cuánto cosa en su camino

estos ojos habrán visto!

Quién sabe lo que verán

después que me juzgue Cristo.

Manuel Flores va a morir,

eso es moneda corriente:

morir es una costumbre

que sabe tener la gente.

Milonga del Marfil Negro

(Música: Julian Plaza)

Alta la voz y animosa

como si cantara flor,

hoy, caballeros, le canto

a la gente de color.

Marfil negro los llamaban

los ingleses y holandeses

que aquí los desembarcaron

al cabo de largos meses.

En el barrio de Retiro

hubo mercado de esclavos;

de buena disposición

y muchos salieron bravos.

De su tierra de leones

se olvidaron como niños

y aquí los aquerenciaron

la costumbre y los cariños.

Cuando la patria nació

una mañana de Mayo,

el gaucho sólo sabía

hacer la guerra a caballo.

Alguien pensó que los negros

no eran ni zurdos ni ajenos

y se formó el Regimiento

de Pardos y de Morenos.

El sufrido regimiento

que llevó el número seis

y del que dijo Ascasubi:

"Más bravo que gallo inglés".

Y así fue que en la otra banda

esa morenada, al grito

de Soler, atropelló

en la carga del Cerrito.

Martín Fierro mató a un negro

y es casi como si hubiera

matado a todos. Sé de uno

que murió por la bandera.

De tarde en tarde en el Sur

me mira un rostro moreno,

trabajado por los años

y a la vez triste y sereno.

¿A qué cielo de tambores

y siestas largas se han ido?

Se los ha llevado el tiempo,

el tiempo, que es el olvido.

Salomão Rovedo
Enviado por Salomão Rovedo em 11/01/2008
Código do texto: T812459