O NEOLOGISMO "CATADO" EM MANOEL DE BARROS

Pedro Gomes da Silva Neto

RESUMO: O neologismo “catado” em Manoel de Barros apresenta ao leitor uma visão geral do que é neologismo, os neologismos presentes no Poema “Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente o nada”, do livro O guardador de águas, de Manoel de Barros e faz uma reflexão sobre a renovação lexical das palavras e sua inclusão na linguagem social até a sua possível entrada para o dicionário.

PALAVRA-CHAVE: Neologismo. Manoel de Barros.

1. INTRODUÇÃO

Ao falarmos, muitas vezes usamos palavras que não sabemos a sua origem, muitas delas não estão presente no dicionário e seu uso é quase inevitável, quer sendo gíria, produto e/ou marca, mas como poderíamos identificá-las?

A esse fenômeno que possibilita a inserção de sufixo, prefixo e até mesmo a modificação do sentido da palavra, criando a nova expressão ou atribuindo novo sentido à mesma, é conhecido como neologismo.

O neologismo está muito presente nas discussões e/ou assuntos ligados ao campo da Internet “internetêz”; é possível observá-los com muita freqüência em salas de bate-papo (chat); no orkut (rede sociais), ou mesmo nos e-mails pessoais. Alguns exemplos conhecidos: rs (risada), vc (você), blz (beleza).

Segundo Carvalho (1984, p.8), neologismo é assim entendido:

[...] termo que significa nova palavra, composto hídrido do latim neo (novo) e do grego logos (palavra). Estão ligados a todas as inovações nos diversos ramos de atividade humana, seja arte, técnica ciência, política ou economia. Os pontos de referências serão sempre mudança, evolução, novidade, novo, criação, surgimento, inovação.

Os neologismos muitas vezes constroem-se com auxílio dos mecanismos usuais de produção lexical, como a composição (justaposição, aglutinação, prefixação) e a derivação, geralmente por sufixação, como os exemplos: petismo de ( PT) e pefelista de (PFL).

Como ponto de partida, trabalharemos o neologismo literário, aquele intencional, que embeleza ou reforça a idéia de criação de um poema, para tanto, discutiremos a presença dos neologismos em um poema de Manoel de Barros.

Em se tratando do poeta, dificilmente se aplica de forma exata qualquer teoria científica acerca dos neologismos, pois o mesmo, os define assim:

De neologismos eu tenho gosto. Fui criado em fazenda. E o povo de fazenda inventa muito que é pra completar o seu vocabulário. Pessoas que vivem isoladas precisam de inventar. Completar o real pobre com imaginações. Por lá tem surpresas. Vi façume de barba e curtume de cabelo. É preciso dar nome às coisas-ou desnome. (BARROS, 2001, p.56)

Para tanto trabalhamos com o poema “Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente o nada” do livro “O guardador de águas”

2. O CATAMENTO DAS PALAVRAS

Poema “Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente o nada”, do livro “O guardador de águas” (BARROS, 1998, p.55/65)

I

Não tenho bens de acontecimentos.

O que não sei fazer desconto nas palavras.

Entesouro frases, por exemplo:

- Imagens são palavras que nos faltaram.

- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.

- Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.

Ai frases de pensar!

Pensar é uma pedreira. Estou sendo.

Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo).

Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos,

retratos.

Outras de palavras.

Poetas e tontos se compõem com palavras.

II

Todos os caminhos – nenhum caminho

Muitos caminhos – nenhum caminho

Nenhum caminho – a maldição dos poetas.

III

Chove torto no vão das árvores.

Chove nos pássaros e nas pedras.

O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.

Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.

Crianças fugindo das águas

Se esconderam na casa.

Baratas passeiam nas fôrmas de bolo...

A casa tem um dono em letras.

Agora ele está pensando –

no silêncio líquido

com que as águas escurecem as pedras...

Um tordo avisou que é março.

IV

Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos.

Ela pode ser o germe de uma apagada existência.

Só trolhas e andarilhos poderão achá-la.

Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao fóssil,

Ao ouro que trazem da boca do chão.

Andei nas negras pedras de Alfama.

Errante e preso por uma fonte recôndita.

Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor!

V

Escrever nem uma coisa

Nem outra –

A fim de dizer todas –

Ou, pelo menos, nenhumas.

Assim,

Ao poeta faz bem

Desexplicar –

Tanto quanto escurecer acende os vagalumes.

VI

No que o homem se torne coisal – corrompem-se nele

os veios comuns do entendimento.

Um subtexto se aloja.

Instala-se uma agramaticalidade quase insana, que

empoema o sentido das palavras.

Aflora uma linguagem de defloramentos, um

inauguramento de falas.

Coisa tão velha como andar a pé

Esses vareios do dizer.

VII

O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.

Há que se dar um gosto incasto aos termos.

Haver com eles um relacionamento voluptuoso.

Talvez corrompê-los até a quimera.

Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.

Não existir mais rei nem regências.

Uma certa liberdade com a luxúria convém.

VIII

Nas Metamorfoses, em duzentas e quarenta fábulas,

Ovídio mostra seres humanos transformados em pedras, vegetais, bichos, coisas.

Um novo estágio seria que os entes já transformados

Falassem um dialeto coisal, larval, pedral etc.

Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural –

Que os poetas aprenderiam – desde que voltassem às

crianças que foram

Às rãs que foram

Às pedras que foram.

Para voltar à infância, os poetas precisariam também de

reaprender a errar a língua.

Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma

nos mosquitos?

Seria uma demência peregrina.

IX

Eu sou o medo da lucidez.

Choveu na palavra onde eu estava.

Eu via a natureza como quem a veste.

Eu me fechava com espumas.

Formigas, vesúvias dormiam por baixo de trampas.

Peguei umas idéias com as mãos – como a peixes.

Nem era muito que eu me arrumasse por versos.

Aquele arame do horizonte que separava o morro do céu

estava rubro.

Um rengo estacionou entre duas frases.

Um descor

Quase uma ilação do branco.

Tinha um palor atormentado a hora.

O pato dejetava liqüidamente ali.

Convém salientar, que os neologismos do poema foram destacados e para efeito de identificá-lo o grifo é nosso.

O poeta criou 20 novas palavras em um único poema, “catamo-as” a saber: entesouro, Alfama, nenhumas, desexplicar, vagalumes, subtexto, agramaticalidade, empoema, inauguramento incasto, duzentas, coisal, larval, pedral, madruguenta, adâmica, versúrias, rengo, descor e liqüidamente.

Percebe-se que para “entesourar” a sua arte o autor deu nova forma as palavras, criando algumas, realçando sua linguagem, se inovando como explica Carvalho (1984, p.27/28):

A arte literária se renova a partir de novas formas, o que inclui novas palavras. Enquanto alguns escritores são avessos a novidade, outros arriscam e são quase sempre bem-sucedidos. [...] O leitor reconhece a autoridade do escritor, nos domínios da linguagem, motivo pelo qual os usos e inovações na literatura são aceitos.

Apesar de algumas obras e Manoel de Barros, não estarem tão próxima dos leitores, é sabido que os escritores de modo geral tem grande influência na linguagem social, pois suas novas palavras modificam hábitos de linguagem e do poeta, um bom exemplo é: descor, pois diariamente ouvimos: “minha calça está descorada”, ao invés de desbotada, sem cor etc.

Não basta a criação do neologismo para que faça parte do acervo lexical de uma língua, ou seja é necessária que ele seja incluso no dicionário, como afirma Alves (1994, p.85):

No entanto, apesar das arbitrariedades manifestadas pelos dicionários, eles simbolizar o parâmetro, o meio pelo qual decidimos se um item léxico pertence ou não ao acervo lexical de uma língua. [...] se está no Aurélio, como é comumente denominado nosso mais usado dicionário, a unidade lexical já é considerada integrada à língua portuguesa falada no Brasil.

3. A SEMÂNTICA DA PALAVRAS CATADAS

Dificilmente o sentido das neologias em Manoel de Barros serão àqueles que o poeta quis realmente dizer, ou aquilo que nós realmente entendemos, pois em se tratando da poesia “Manoelina” não devemos considerar a sua semântica sob uma única ótica, nos atrevemos atribuir, embora de forma grotesca sentido em dez delas:

entesouro, embelezar, valorizar algo;

nenhumas, afirmação ou reforço de nada;

desexplicar, tentar não explicar; retirar explicação

agramaticalidade, não fazer uso de gramática, transgressão da norma;

inauguramento, inauguração de algo;

incasto, impuro;

coisal, relativo à coisa;

larval, relativo à larva;

pedral, relativo à pedra;

descor, incolor, sem brilho, debotado.

Se déssemos as mesmas palavras a um grupo de pessoas e pedíssemos para que atribuíssem sentido as mesmas, uma ou outra palavra do grupo teria o mesmo sentido. No entanto, teríamos que levar em conta fatores como: sexo, idade, classe social, grau de instrução e principalmente a região do país onde se encontra o indivíduo. Nota-se que no campo semântico o neologismo pode significar muitas coisas, no campo literário e estilístico, uma infinidade de outros sentidos, porém, se perguntássemos o seu significado ao autor, nos surpreenderíamos com tantos outros, por ele expresso.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Levando em consideração que a língua move-se ao longo do seu tempo, que não é estática e sofre mudanças, assim sendo nota-se que antes tais mudanças eram mais lentas, hoje com o advento diário de novas tecnologias, da informática e de um maior acesso às Universidades, as pessoas criam mais, num ritmo surpreendente, com os neologismos não são diferentes, diariamente observamos novos termos vindo dos jovens, uma linguagem quase particularizada, (gírias), principalmente ligadas à internet.

É possível também, encontrar a presença de neologismos em obras literárias, em se tratando de Manoel de Barros não é diferente, dificilmente o poeta constrói suas obras sem lançar mão desse recurso.

O poeta “cata” palavras (descor, desexplicar, entesouro etc...), e cria uma nova, dando-lhe novos sentidos.

Aos poucos seu uso torna-se freqüente e deixa de ser novidade, sendo parte de nossa língua e passa a ser assumida pela sociedade em geral, compondo novos léxicos no dicionário da língua portuguesa.

REFERÊNCIAS

ALVES. Ieda Maria. Neologismo – Criação lexical. 2 ed. São Paulo, Ática, 1994.

BARROS, Manoel de. O Guardador de Águas. 2 ed. Rio de Janeiro, Record, 1998.

CARVALHO, Nelly. O Que é Neologismo. São Paulo, Brasiliense, 1984.

Silva Neto
Enviado por Silva Neto em 07/02/2008
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