Sobre dissimulação no Rio de Janeiro

Sei que nunca é justo monolitizar o comportamento de um conjunto humano, pois atenta-se contra as naturais e incontáveis possibilidades de variação dentro do grupo escolhido. Se falamos de países ou cidades, tais riscos só aumentam. Sinto-me, contudo, impelido a generalizações no momento. Não tanto para com os pobres indivíduos, vítimas de imposições invisíveis perpetuadas pelo meio que habitam, pela cultura de grupos, lugares, influências.

Dia desses vi a briga do médico mineiro com dois cariocas no Big Brother Brasil pelo youtube. A carioca reclamava algo sobre terem votado nela, etc e tal, e o mineiro resolve botar para fora a antipatia que sente pela moça, o quanto achava ela falsa, na cara dura mesmo, e a "pobrezinha" se chocou. "Sujeira sim, mas só debaixo do tapete, porque falar na cara é crime!". Fez-se ela vítima do monstro da sinceridade e convocou outro carioca a comprar sua briga. O médico não teve medo e soltou-lhe o verbo também, para estarrecimento do novo adversário.

Não sei quem estava certo ou porquê. Não acompanho o programa, embora sempre acabe sabendo do que rola via internet ou "gente a minha volta". Pensei na cena por me fazer lembrar de outra, ocorrida em Minas Gerais, quando do nada um rapaz vem para o outro, sem necessariamente estar brigando, em meio a um churrasco amigável, dizendo que não vai com a cara dele, que acha ele isso e aquilo, que até o respeita por esse ou aquele motivo, mas deseja deixar claro que não o considera um "dos seus". Tal cena, claro, poderia ter ocorrido em qualquer lugar e não necessariamente prova que os mineiros não sabem agir dissimuladamente ou que cariocas não possam dizer certas coisas na cara de modo corriqueiro, sem precisar estar "lavando roupa suja" para isso, mas vez ou outra sou levado a crer que certas atitudes e "jeitos de ser" não fazem parte do conjunto de virtudes individuais redigidas no manual invisível de "como viver bem no Rio de Janeiro", e quebrá-las pode trazer conseqüências danosas, transformar uma vítima circunstancial em "bandido" aos olhos públicos, ou seja, mais vítima do que antes, sendo esta, claro, a real intenção do acusador: Voltar o problema da vítima contra ela, mantendo suas mãos limpas e intocadas.

Divago sobre isso em função de algo ocorrido dias atrás. Alguém me liga de uma agência e diz que seu cliente gostou de duas fotos minhas lá tiradas pelo "irrisório" preço de dez reais, já que eu não tinha fotografias próprias, um "book" ou "composite". Segundo este telefonema, o cliente precisava de mais fotos até o dia seguinte para me colocar na seleção de um comercial contra apenas um concorrente. Insisti que não possuía um "book" ou coisa parecida, mas que talvez pudesse providenciar algo em 2 ou 3 dias, mas o homem do telefone manteve sua posição. O prazo seria só até o dia seguinte, e eu precisaria de 30 fotografias tiradas em estúdio e um videobook. Algo que ELES poderiam providenciar a um custo específico, caso eu não conseguisse por fora. Claro. Era uma armadilha. Eu tiraria as fotos, gastaria o dinheiro e "perderia" o concurso. Agências assim têm nesses servicinhos de foto e vídeo sua principal fonte de renda. Minha vontade era expor o esquema e deixar claro ao sujeito que eu NÃO FARIA AS FOTOGRAFIAS COM ELE. Pensei bem e vi que seria burrice. Não. Simplesmente disse que não tinha condições no momento. Ele insiste num abatimento. Continuo alegando que não posso, e a barganha de mentirinha se mantém, ainda que os barganhadores saibam do que realmente está em jogo. Despeço-me educadamente do homem, promentendo ver se conseguia as fotos em tempo e deixo a estória para lá. Agisse eu de outro modo, ele se declararia ofendidíssimo ("Você está desconfiando de mim?") e certamente vetaria qualquer chance futura que eu pudesse ter de conseguir algo de verdade pela agência, caso realmente se tratasse de uma.

A moral dessa história serve para duzentos e oitenta situações corriqueiras onde os princípios da formalidade são vistos como um mal, uma atitude deselegante, e em situações onde deveriam prevalecer sobre qualquer espírito mentiroso de camaradagem. No Rio de Janeiro (e em diversos lugares) muita gente parte da idéia de que qualquer desconhecido deveria confiar plenamente em suas índoles antes de mais nada. "Você não confia em mim?", pergunta-me a secretária "sete-um" de uma agência onde trabalhei enquanto me passa a perna por baixo dos panos. "Você não confia em mim?" é a pergunta número 1 dos suspeitos. Quem não deve não teme a precaução do outro.

No Rio da informalidade e da malandragem, dissimulação torna-se instrumento de sobrevivência, até para quem não a aprecia. Se você desconfia de Joãozinho enquanto este lhe oferece uma oportunidade imperdível, invente uma boa desculpa. Se ele insistir, invente uma melhor, e siga assim até que ele desista, mesmo que, no fundo, ambos saibam das verdades em jogo. O primeiro que deixar cair a máscara é o bobo, o que não aceita brincadeira, o que pensa maldade, que tem preconceito, que não é "amigo". Vale para brincadeiras que escondem ofensas. Vale para o cara que deseja roubar sua namorada e está pronto a lhe fazer passar por idiota ciumento caso você o acuse do intento. O bom carioca deve ter sempre condições de usar as próprias palavras e atitudes perniciosas em defesa de suas "puras intenções", deixando qualquer acusador em maus lençóis. É assim que funciona. Quem não sabe jogar é o bobo, esteja ou não certo, pois razão aqui é só um detalhe. Um incômodo detalhe.

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Luiz Mendes Junior é escritor e roteirista. Seus textos também podem ser encontrados no blog http://noticiasdofront3.blogspot.com e no site http://dominiocultural.com

Luiz Mendes Junior
Enviado por Luiz Mendes Junior em 23/02/2008
Código do texto: T871641
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