O QUE HÁ PARA COMEMORAR?

Não é porque as coisas são difíceis que nós não nos atrevemos; é porque nós não nos atrevemos que elas se tornam difíceis. Sêneca.

Certas datas são marcadas pelo pressuposto de que, comemora-se a conscientização dôo evento que ela representa, com a finalidade principal de estabelecer-se um marco tão significativo em si mesmo que o indivíduo ao percebe-lo cria um vínculo indelével entre a data e sua própria consciência. A importância desse processo para a sociedade revela-se de relevante magnitude na medida em que cria uma consciência coletiva acerca de assuntos tidos como de suma importância pelo poder constituído, assegurando não apenas a sua própria manutenção como também – e não por menos – a sustentabilidade da infra-estrutura política que encimada por uma casta social, mantém-se no poder à custa desta consciência formada por estereótipos.

Nesta vertente temos como data recentemente marcada de comemorações, o dia internacional da mulher, celebrado a oito de março, visando criar uma consciência coletiva acerca do respeito e igualdade no tratamento entre homens e mulheres, inclusive com a celebração do princípio constitucional que assegura igualdade entre homens e mulheres. A data em si encerra esta finalidade original de tomar conta de nossos corações e mentes e volta-los com ânimo para a importância da igualdade entre pessoas, independentemente do seu sexo, religião, filiação política, origem étnica ou social, enfatizando que os desníveis de qualquer ordem somente serão responsáveis por conseqüências desastrosas e indesejáveis para todos e para tudo que nos cerca e nos é mais precioso.

Todavia, o que há de fato para comemorar? Que data é esta celebrada a oito de março de cada ano e que se revelou importante para celebrar a igualdade entre homens e mulheres? Pois foi a oito de março de mil oitocentos e cinqüenta e sete que as operárias de uma tecelagem na cidade de Nova Iorque decidiram fazer um ato grevista de grandes proporções a fim de pleitearem junto aos seus patrões melhores condições de trabalho, diminuição da jornada de trabalho que, àquela época era de dezesseis horas, bem como salários iguais aos dos homens, e cujo resultado foi uma repressão de tal grandeza que a fábrica foi fechada resultando na morte de aproximadamente cento e trinta tecelãs carbonizadas.

Assim considerado temos a comemoração da morte como elemento motivador da importância de conscientização dos indivíduos para a igualdade entre sexos. E isso não pára aí. Uma observação mais detida nos mostra que praticamente todas as datas relevantes são marcos que comemoram a morte. O dia “D” (Desembarque do aliados), a morte de Getúlio Vargas que, ironicamente, saiu da vida para entrar na história; a uma morte celebrada a mais de dois mil anos: a crucificação do filho de Deus!

Olhando desta forma pode parecer muito cruel, mas é a verdade. Comemoramos a morte como símbolo da nossa própria vida, como mensagem que nunca deve ser esquecida. Comemoramos a lembrança daqueles e daquelas que deram sua própria vida para que a nossa se perpetue. E achamos que essa comemoração possui um elevado valor moral: o valor de nos proporcionar a necessária conscientização acerca do evento a ser lembrado e jamais esquecido; um evento que pela morte nos faz comemorar a vida; um evento que traz para dentro de nós a necessária comoção que não fomos capaz de sentir quando estes eventos realmente aconteceram. Objetivamente não podemos nos esquecer das torres gêmeas, nem do massacre da escola de Beslan, nem mesmo do metrô de Madrid, nem de João Charles de Menezes, e ainda de quaisquer outras ocorrências nefastas e mórbidas que, neste início de século persistem em ocorrer de forma cada vez mais constante, causando dor e sofrimento a milhares de seres humanos. Seres humanos como nós. Seres humanos que não possuem – em sua maioria – qualquer tipo de ideologia política ou mesmo fé religiosa que as distinga das demais que lhes cercam.

Afinal, ter-se fé ou posicionamentos político próprios não pode ser elemento discriminador capaz e suficiente para atrair para si a intolerância de semelhantes que lhe cercam e que com você convive. Aliás, é a intolerância o elemento definidor desta onda de “comemorações” baseadas no sofrimento coletivo, na dor que nunca se esquece, na perda de ente queridos que nada fizeram para tornarem-se vítimas (quase sempre indefesas) de algozes que buscam uma vingança; uma vingança que também foi baseada na sua própria dor, demonstrando inequivocamente que a intolerância fala mais alto na alma humana que qualquer outro sentimento.

Diga-se de passagem, que este sentimento de intolerância não é verificado apenas em eventos como os acima descritos, mas sim em demais atividades do cotidiano, haja vista que intolerantes são os governantes, os políticos de qualquer ordem, os profissionais liberais, os dirigentes empresariais, professores universitários, comerciantes e pessoas públicas que, embora não demonstrem tal sentimento, muitas vezes agem nos seus dia-a-dia por pequenas ações ou omissões que revestem-se do sentimento de intolerância, e ainda de forma deliberada, não se preocupam em corrigir-se a fim de evitar que este sentimento se perpetue ao longo da raça humana.

Enfim, não se verifica qualquer ato por parte das pessoas em evitar, em condenar definitivamente ao esquecimento o sentimento da intolerância, este sentimento que permeia os comportamentos de líderes extremistas, chefes terroristas, membros de organizações criminosas, políticos cuja pequenez ideológica se confunde com sua mínima estatura social e demais pessoas que a eles se afiliam diuturnamente, elevando e cerrando fileiras em plena consonância com ideais propostos e em absoluta concatenação pela primazia da intolerância.

Assim exposto, verificamos que nada há que se comemorar com datas que celebram a morte e o sofrimento de irmãos que vivem, próximos ou distantes de nós e que em nada diferem de nossa comunidade humana; fato é que somos todos, antes de tudo, seres humanos que possuem anseios, sonhos, esperanças e ambições e das quais não podemos ser privados por outros sob a simples alegação de que o mundo precisa mudar, e que esta mudança será, inexoravelmente, melhor (melhor para quem?), além do que estaremos negando nossa própria essência baseada no amor e na paz ao admitirmos a intolerância como elemento indissociável da existência – ou coexistência – da própria raça humana, não apenas enquanto ente racial, mas sim como ente racional que coabita neste planeta com outras raças tidas como irracionais, mas que demonstram pertencerem a uma racionalidade muito mais lúcida e oportuna do que aquela que alegamos possuir e que nos dá a oportunidade de considerarmo-nos em estágio mais elevado que as demais.

Por derradeiro, mas sem qualquer intenção de esgotar a possibilidade de discutir-se de forma cada vez mais ampla o presente tema, não nos esqueçamos que a intolerância não pode ser substituída pela indiferença, uma vez que esta última é muito mais perniciosa ao desenvolvimento humano que a própria intolerância.

Os indiferentes são aqueles que instados a se manifestarem acerca da qualquer tema polêmico ou que deles exija um posicionamento – ou melhor, uma escolha – preferem declarar-se neutros (leia-se omissos), ou ainda sem opinião (leia-se descompromissados com ao senso coletivo), preferindo que alguém escolha por eles para depois poderem alegar que com os prejuízos da escolha feita eles não possuem envolvimento, uma vez que não escolheram para não serem aprisionados pela própria escolha.

Não há nada mais pernicioso para a raça humana – além do intolerante – que não seja um indivíduo indiferente, já que este espécime nada mais é que um verme que infecta o tecido social, a nação, as estruturas políticas e até mesmo o futuro da existência humana.

Não existe futuro para alguém que não possua um posicionamento determinado e firme acerca de assuntos que envolvem seu próprio futuro, bem como o futuro de sua descendência e ainda de sua espécie; os indiferentes, assim como os intolerantes possuem a mesma verve: ambos não suportam escolhas, não suportam crises, enfim, não suportam aquela sensação de perda, da dor indizível que sobre seus ombros pesará toda a vez que deles for exigido uma posição que esteja de em dissonância com o seu respectivo modo de pensar; algo inimaginável para alguém que sempre supôs ter controle sobre o seu destino e daqueles que o cercam – desde que esta posição não seja por demais polêmica – em especial se esta não lhe for útil de alguma forma prática.

Ademais, cabe aqui uma pequena citação da obra do pensador italiano Antonio Gramsci acerca dos indiferentes:

Odeio os indiferentes também porque me dá nojo o seu choramingo de eternos inocentes. Peço contas a cada um deles pelo balanço do que a vida lhes pôs e põe, cotidianamente, do que fizeram e, especialmente, do que não fizeram. E sinto poder ser inexorável, não dever desperdiçar a minha compaixão, não repartir com eles as minhas lágrimas. Sou partigiano, vivo, sinto nas viris consciências de meus companheiros já pulsar a atividade da cidade futura que estamos construindo. E, nesta, a cadeia social não pesa sobre poucos; qualquer coisa que acontece não se deve ao acaso, à fatalidade, mas é obra inteligente dos concidadãos. Não há nesta ninguém à janela observando enquanto os poucos se sacrificam, abnegados no sacrifício; e tampouco há quem esteja entocaiado à janela e que pretenda usufruir o pouco bem que a atividade de poucos busca, e afogue a sua desilusão injuriando o sacrificado, o abnegado, porque não teve êxito na sua tentativa.

Vivo, sou partigiano. Por isso odeio quem não parteggia, odeio os indiferentes

Nós temos que nos tornar na mudança que queremos ver. Mahatma Gandhi.

BIBLIOGRAFIA:

Gramsci, Antonio (1917). Indifferenti, In: Cittá Futura, 11/feb./1917 (In: Scritti Giovanili 1914-1918. Torino: Einaudi, 1972). Tradução livre de Roberto Della Santa Barros. Cotejada com a versão de P. C. U. Cavalcanti (Convite à Leitura de Gramsci. Rio de Janeiro: Achiamé, 1985) e conferida junto à tradução de C. N. Coutinho (Escritos Políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004).