"Um Campeão Destronado" = Recordações=

No geral aquele colega era até um cara simpático, boa praça, de fácil convivência. Mas quando o assunto era sinuca, sai de baixo. Ele era o bom, o melhor, o grande, o insuperável, o batedor de recordes, o imbatível realizador de grandes façanhas e o escambau. Eu só ouvia e nada dizia. Até aquela altura de minha vida, vinte e pouquinhos anos, ainda não havia jogado sinuca uma única vez. Era virgem no assunto.

Um dia eu e ele disputávamos o primeiro lugar em vendas, estimulados por um belo cheque extra no final do mês, e a luta estava renhida. Ele em Jaú e eu em Bariri. O que representava uma grande desvantagem para mim em vista do tamanho das duas cidades na época. Mesmo assim eu meti os peitos e estava conseguindo bons resultados. Mas ele também estava. Nossos “espiões” nos deixavam a ambos bem informados um sobre o outro. A disputa estava pau a pau. Exatamente pau a pau todos os dias. Eu fazia cinco vendas, o cara fazia cinco, eu fazia três, o cara três. E assim íamos indo em direção a um empate.

Durante o dia ele trabalhava muito e vendia bem, mas à noite jogava sinuca. Eu continuava trabalhando e empatava com ele. Sem jogar a bendita sinuca.

Na última noite de nossa temporada na região escondi algumas vendas que havia feito, na esperança de ganhar dele de surpresa, pagamos nossa conta no hoteleco, e fomos, a turma toda, encontrar o restante do pessoal em Jaú.

Meu prezado concorrente estava jogando sinuca quando fui a um bar comprar cigarros. Parei e fiquei observando-o. Eu era leigo, mas havia visto muito meu tio, um verdadeiro campeão, jogar, e logo percebi que o “rei da sinuca” era apenas razoável. Resolvi deixá-lo irritado. Por puro instinto de sacanagem:

- Você até que joga direitinho, mas não é lá grande coisa.

Ele me olhou com uma simpática expressão de ódio e continuou fazendo suas jogadas. Quando errava alguma bola mais difícil eu o incentivava. Incentivava-o a ficar puto da vida:

- Bela merda de jogo o seu...Tem malícia nenhuma...Já consultou um oculista?

Correndo o risco de levar uma tacãozada na cabeça, fiquei por ali peruando e dando palpites até que ele reagiu:

- Você fica aqui enchendo o saco, mas aposto que não joga porra nenhuma.

- Isso é o que você pensa, cara. Já ganhei milhões de dólares jogando sinuca em Las Vegas.

Os amigos riram. Sinuca em Las Vegas...

- Muito engraçadinho...Pega uma porra de um taco e vem disputar uma comigo.

Fiz-me de rogado:

- Só se eu puder lhe dar alguns pontos de vantagem. Caso contrário, seria covardia.

O coitado até que jogava direitinho, muito melhor do que eu que nunca pegara em um taco até aquela ocasião, mas seus nervos eram fracos. Não resistia a uma provocação e o sangue lhe subia logo à cabeça.

Peguei o giz azul, espalhei-o até perto do punho direito, imensamente profissional, esfreguei a cabecinha do taco com o giz, violentamente, fiz a primeira mira em um tempo imensamente longo e dei minha primeira e fortíssima tacada. Algumas bolinhas, provavelmente de bom coração, entraram em algumas caçapas para minha imensa alegria e irritante e duradoura gargalhada, também minha.

Dali em diante era mirar, bater com o taco e ver as bolinhas caindo. As bolinhas iam caindo e eu ia comentando que aquele era um jogo ótimo pra criança, que desenvolvia o raciocínio, a precisão, a mira e o intelecto. Tão fácil que ficava até sem graça.

Quando deveria ser a vez do colega meus pontos já eram imbatíveis. Ganhei sem que ele pegasse no taco e sem que eu acreditasse que o fizera. Sabia que era sorte de principiante, pura e simples.

Continuamos jogando e comecei a apanhar cada vez mais. Cheguei a apanhar “de lambretta”, que é quando a gente não faz ponto algum, e estava começando a ficar desanimado quando o trouxa quis se exibir e disse alto:

- Vamos jogar a última da noite. Se você ganhar eu te passo todas minhas vendas de hoje.

Epa!!! Opa!! Como é que é o papo? Com as vendas dele eu seria o campeão do mês e levaria para casa, além de uma bela grana em comissões, o checão do diretor!!

- E se eu perder?

- Se você perder, não. Você vai perder. Se você perder você me dá uma venda sua de hoje.

- Quantas vendas você tem?

- Cinco. Bem feitas e com os cheques grampeados nela.

- Mostra.

Ele mostrou e começamos a jogar depois que ele garantiu que, caso perdesse, não pediria revanche. As testemunhas faziam a maior algazarra em volta. Todos apostando nele. Ninguém teve coragem de apostar no azarão que aqui lhes conta essa passagem edificante de sua vida.

Gente, acho que o espírito de Ruy Chapéu, que ainda estava vivo ( e nem sei se continua), baixou em mim. Joguei divinamente. Fiz minha bolinhas rebolarem em direção às caçapas, fiz bolinha fazer curva e sair do pano verde, fiz bolinha saltar por cima de uma dele e matar a da vez, enfim, fiz o diabo e ganhei disparado. Minhas pernas tremiam durante o jogo, mas minhas mãos estavam tão firmes e precisas quanto as de um robô japonês. E meus olhos se tornaram de lince à procura da caça.

Voltando a São Paulo no carro do gerente, eu, ele e mais uns dois colegas, cantamos diversas vezes: “Tava jogando sinuca/ um cara maluco me apareceu/ dizendo que era o bom/ jogou comigo e se fu.../. Só ele não achava graça nem participava da cantoria tão legal. Não sei porquê...

Algum tempo depois nenhum de nós se lembrava mais do nome dele. Era só o “Sinuquinha” pra todos nós.

Hoje em dia, usando quatro graus diferentes em meus óculos bifocais, fico feliz quando apanho pouco na sinuca.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 17/03/2008
Código do texto: T904805
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