Merchandising II (uma análise)

Depois de conferir o conteúdo do ensaio fotográfico com a “Eva” (Playboy de janeiro), permito-me digredir um pouco sobre o tema, objeto de crônica que publiquei ontem na categoria “Humor”, tratando apenas da impressão que me causou a capa.

Em primeiro lugar, quero dizer que me sinto extremamente feliz por ter abordado o assunto, e de maneira leve. Acho que, ao fazê-lo, rompi com algum sempre renitente ranço de repressão sexual. Lembro-me que meu irmão, mais atirado, não tinha problemas em afixar esses pôsteres no armário, apesar das censuras de nossa mãe.

Obviamente, os tempos mudaram. Hoje é muito maior a liberdade de expressão, mas também maiores os abusos, como me lembrou o amigo Raferty, aqui do Recanto. Ana Málasa, outra recantista, me alertou em tom de brincadeira para as ilusões provocadas pelo excesso de fantasia sexual. São observações de quem tem sensibilidade, cultura e capacidade de reflexão.

Apesar do título, não quis com minha crônica estimular nenhum tipo de indústria da pornografia, embora eu considere válida a expressão pornográfica feita com um certo humor e poesia. Eis a questão – que no fundo é o centro de qualquer debate em torno de moral e cultura: quais são os limites individuais ou coletivos além dos quais um produto cultural, uma atitude ou um gesto podem ser considerados ofensivos, indignos, incivilizados, prejudiciais ou maléficos a um ou mais indivíduos?

Essa pergunta nos coloca diante de amplitude assustadora de afirmações e de senões; de princípios e exceções; de agravantes e atenuantes. Se fosse simples respondê-la, teríamos provavelmente uma moral imutável. E, no entanto, a moral muda, às vezes até radicalmente – e em aspectos não necessariamente ligados ao campo da sexualidade.

Há algum tempo vi no programa da Hebe Camargo uma velhinha elogiar uma garota de programa pela coragem de fazer o que queria. Trinta anos antes, a mesma senhora talvez recriminasse a prostituição. Quem sabe, equivocadamente, essa mulher tenha visto no comportamento da garota uma saída para a dominação do homem, que tanto sofrimento causou às mulheres por séculos. Estou dizendo que talvez seja esse o ponto de vista dessa senhora, embora tenha me chocado uma mudança tão radical em tão pouco tempo.

Por princípio, sou contra a prostituição. Entendo que o amor não pode ser vendido, mesmo que compreenda as dificuldades sociais e as amarras do processo de superação dos modos primitivos de interação ente machos e fêmeas num período de enorme precariedade econômica e pouca consciência. A nova onda capitalista tem-se aproveitado de toda essa base instintiva, promovendo uma comercialização do sexo nunca antes vista, o que confunde as conquistas dos desejos libertários aflorados nos anos 60 com o comércio de todo o tipo de grosseria. Ora se tudo tornou-se vendável, e em grandes quantidades, porque o mesmo não ocorreria com o sexo, e as drogas, por exemplo?

Nesse carrefour (*), para não perder a ironia, homens e mulheres têm deparado com seus limites, e buscam realização sexual, por meio de uma série de experiências em suas vidas maritais ou não. O mesmo se dá no plano da cultura, revelando nova abertura para o que se publica em imagens ou palavras. De tudo isso, o que nos parecerá “saudável” daqui há alguns anos? Ninguém sabe. Eu mesmo, quando publico alguns textos aqui no Recanto não tenho absoluta certeza de sua validade poética ou moral. Só o tempo dirá.

Superada em algum momento essa fase agressiva da economia, com todos os seus reflexos na cultura (e vice-versa), restará a questão do humano e sua busca pela elevação e refino das formas de prazer, o que tem implicações no plano da espiritualidade, já que fronteiras estão sendo abertas no campo da religião e da ciência.

Que vastidão e que complexidade!

Resta-me voltar a estas minhas singulares (se é que não acham risíveis) questões: O que é para mim o corpo? O que é para mim a sexualidade? O que é para mim a nudez? O que é que me revelam? De que maneira e em que profundidade me desafiam?

Por isso o que para muitos possa não ter passado de uma fantasia de quarentão lambendo com os olhos o corpo da modelo, é um momento de significativa riqueza. Estão lá dentro as fotos: algumas convencionais (mulher com cobra e maçã), algumas supostamente artísticas (em preto e branco), algumas meio psicodélicas (com distorções de luz). Uma lembra a Vênus de Boticcelli, por causa do cabelo propositalmente ondulado; outra lembra a Cigana Adormecida, de Rosseau. E na mais ousada delas, num ângulo de baixo para cima, “Eva” mostra-se em toda a sua naturalidade, como talvez nenhuma fêmea primitiva possa tê-lo feito.

Eu sei que a Roberta Foster recebeu um bom cachê para se exibir, e que tudo foi feito dentro de um esquema comercial milionário. Ainda assim, é preciso reconhecer que esse grau de naturalidade na nudez e uma confirmação de que, afinal, temos um corpo, do qual é preciso cuidar, em vários sentidos. Eva – pelo menos a da classe média para cima - saiu do paraíso e está mais bonita, mais saudável e mais livre. O que vai fazer (e o que faremos todos) com essa conquista só o tempo dirá.

Acho que finalmente preguei o pôster na parede. Grato a vocês.

(*)palavra francesa que quer dizer cruzamento, trevo, e que foi usada para batizar uma famosa rede de supermercados. Em Brasília, a loja fica localizada próxima a um trevo rodoviário

Nelson Oliveira
Enviado por Nelson Oliveira em 13/01/2006
Reeditado em 15/01/2006
Código do texto: T98299