Há liberdade na disciplina

Taxado de louco, bêbado, drogado e perdido, o cantor e compositor Renato Russo, ao contrário desta fama, deixou nas centenas de letras que compôs uma sensibilidade e uma lucidez invejáveis. Numa delas – “Há Tempos” – um trecho me intrigou durante um longo período, talvez por não ter compreendido a sua dimensão na primeira vez em que a vi (ouvi). Era a época da minha adolescência – uma fase de vida em que normalmente nossas percepções são egocêntricas e limitadas.

O poeta cantou ao som do rock que “disciplina é liberdade, compaixão é fortaleza, ter bondade é ter coragem (...)”. É uma pena que algumas das melhores lições de vida não sejam assimiladas quando mais precisamos delas. De todo o trecho citado da música, a frase “disciplina é liberdade” era a mais difícil de entender, pois soava contraditória. Disciplina sempre me pareceu sinônimo de rigidez, de uma postura típica do universo militar. Como imaginá-la uma base para a liberdade?

Muitos pais que romperam com modelos tradicionais de educação, taxando-os de excessivamente rígidos, vivem às voltas com as consequências do outro extremo dessa posição. Eles deram aos seus filhos uma liberdade com a qual estes não sabem lidar. O resultado é o crescimento do número de crianças mimadas, prepotentes, despreparadas para respeitar o outro e precoces nos aspectos mais negativos disso. Normalmente elas se tornam adolescentes desamparados, sem rumo e com um visível medo de crescer.

É este público que compõe a maior parte das escolas do Brasil e do mundo na atualidade. Se num passado não muito distante um bom professor tinha apenas que ter conteúdo e ser um pouco policial, agora ele precisa infinitamente mais. Tentar educar uma criança ou um adolescente na sala de aula é estar disposto a ser professor, policial, psicólogo, terapeuta, sociólogo, antropólogo, pai, amigo, artista, monge, ninja...

Exageros à parte, a verdade é que a escola vem abarcando responsabilidades que cada vez mais escapam das mãos dos pais. Há quem admita não conseguir mais delimitar os espaços e as ações dos filhos. E limite é algo que a sociedade vai necessariamente impor a todos que queiram fazer parte dela. Neste sentido há liberdade, sim, na disciplina. Todos – crianças, adolescentes e adultos – têm tarefas a cumprir no mundo socialmente organizado. Criar filhos com mordomias e sem responsabilidades é querer que eles sejam acomodados e incompetentes mais tarde.

A liberdade individual tem que existir de forma harmônica com a liberdade coletiva. Uma pessoa não tem o direito de impedir que o outro tenha aquilo que ela não quer. Daí a difícil tarefa de despertar interesse de toda uma classe por uma determinada aula. A minha liberdade de escolher os caminhos que desejo seguir não pode ser um pressuposto para que eu decida que todos devam seguir os meus passos.

Dos 12 aos 13 anos estudei em um colégio interno onde havia diretor de disciplina e hora para tudo. Ao contrário do que muitos possam imaginar, aprendi lições inestimáveis com este modelo de educação. Havia hora para dormir e para levantar; para comer, estudar e para o lazer; haviam tarefas a serem cumpridas: arrumar o quarto, separar e levar a roupa suja na lavanderia, manter as atividades escolares em dia.

Tudo era muito bem dosado e tudo fluía sem prejuízo da minha liberdade de vivenciar o que eu mais gostava. Nunca me esquecerei do diretor de disciplina – que também era professor de Inglês e tinha um bom humor refinado, a quem todos respeitavam sem que ele precisasse levantar a voz ou ser rude. No alojamento éramos acordados por ele ao som dos Beatles ou de Simon & Garfunckel, antes da campanhia soar nos avisando de que era hora de pular da cama e de arrumá-la.

Meus pais estavam longe de ser carrascos e intransigentes, mas sabiam que eu precisava de aprendizados duradouros, como honestidade, hombridade, honradez, respeito, dedicação e determinação. Precisei de disciplina para obter isso e tudo foi praticado em casa, reforçado no colégio interno e lapidado ao longo da minha independência em todos os sentidos. Talvez por isso eu consiga enxergar agora como é óbvio o que Renato Russo quis dizer. Apenas os disciplinados podem ser livres; apenas os fortes de espírito conseguem ter compaixão; apenas os corajosos optam pela bondade.

Roberto Darte
Enviado por Roberto Darte em 11/05/2008
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