AMIZADES PROFUNDAS

Publicado por: Manuel Marques
Data: 15/04/2007
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Créditos

Autor: Manuel Marques Voz: Manuel Marques
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Amizades Profundas

I

À volta apenas o silêncio, as memórias de um tempo cujo significado talvez um dia perceba. Se houvesse qualquer tipo de esforço talvez lá chegasse mais cedo, porventura seguiria no raio que ribombeou fazendo descer a água descontrolada das nuvens negras, densas... uma guerra? De palavras é sempre um vendaval decerto,

- Vizinho, acude ó vizinho
- O que é que tu queres malandro? Parto-te todo, parto-te todo!
- Oh vizinho, acude, faça alguma coisa

ou apenas algumas gotas de sangue a cair pela boca esmurrada de alguém que se meteu com a mulher errada de um homem que já me pareceu mais certo, correcto, tanto que até dava os bons dias ao meu pai, noutros tempos de ventos menos incertos

- Está mesmo bom vizinho, e o tempo, ah o tempo!
- Então rapaz, olha manda cumprimentos...

mais correctos, nem que fosse pela aparência. E sem ter muito a ver, antigamente íamos ao restaurante Lourenço, talvez a conjugação com o Marques o fizesse reviver memórias fotográficas já distantes mas ainda bem vivas. Porventura algum desses guerrilheiros sem pernas ou braços fosse meu irmão e como gostava de lhe dar o meu sentido abraço se assim fosse, na ausência de um braço que nunca impediria o abraço de duas almas desavindas à força, sem força.

E nesta cruzada dos sons do silêncio recordo instantes do que nunca vivi, do que sinto pela memória quase sempre cerimoniosa de quem lá esteve, na antiga colónia, antes portuguesa, de Moçambique, em Lourenço Marques, como no restaurante que já nem existe e no apelido que persiste.

Apenas falta saber qual a cor do desejo de quem quer para lá voltar. Eu apenas sei que deliro com a simples hipótese de um dia conhecer, de praticar uma forma encantada de fazer, compreender algumas das raízes que por lá ficaram, crescendo pela vida fora, nas desoras da inexorável mancha negra de um tempo que talvez não volte mais.

- Sabes filho, as memórias, até são boas
- Mas... andou lá na guerra?
- Ainda saí a tempo, mas foram três anos

E demais seria voltar a encontrar aquele batalhão do qual tomo conhecimento anual através dos almoços, antecedidos da missa em memória dos que já emigraram para outra dimensão e é certo, cada vez assistem menos. Mas ele já não assiste, regressando sempre numa altura em que a digestão das memórias apenas vai pedindo ano a ano como uma vitória inolvidável

- Eh Manel! Há quanto tempo
- Ângelo, Ângelo, esses teus eternos cabelos brancos, quantos anos, quantos anos!!!

como se viver fosse apenas uma breve e rápida passagem para os outros desígnios...

II
A rotina sempre bateu forte e em vez de deixar os sentidos em peregrinação por ambientes menos pesados sentava-me apenas a penar, na angústia de um futuro sem brio, sem que algum dos sonhos mágicos tivesse a concretização desejada. Mesmo aqueles passeios já distantes, absorvidos pela profundeza entediada da alma, tornavam-se rotina, como se houvesse sempre necessidade de inovar, mostrar ao ser humano que a simples disposição dos sentidos na sua suposta normalidade não é nada que permita evoluir ou sentir renascer o velho espírito da humanidade em absoluta liberdade

- Outras vidas, outros sentidos
- No meu tempo, não se beijava assim na boca
- O nexo, o sentido, a perplexidade
- Estás louco ou quê?

como se houvesse urgência em aproveitar os momentos finais de um qualquer apocalipse sem hipótese de evitar ou abandonar.

Maldita rotina, ou pensar no batimento cardíaco do som que o coração faz quando encosto a cabeça aos seios fartos, porque será que nunca me lembro dos seios indivisíveis? Conversa de memórias saudáveis, do colo de uma mulher, amante, amiga ou meramente espiritual, consensual na vibração certa, nos momentos quase sempre certos.

- Menino, não sejas parvo, não a deixes enganar-te
- Eu sei o que faço, eu sei o que faço
- Não confies, não se deve confiar

A vontade de um abraço suplanta muitas vezes estados de espírito que poor vezes superlativam a depressão nervosa , cortam a nem sempre natural curva descendente que leva à inexorável morte. Até podia ser uma sorte

- O seu nome por favor
- José
- Profissão e o que arremessou?
- Sim e quantas vezes aparecemos?
- Profissão se faz favor, não tenho tempo para brincadeiras

viver sem essas fortunas incalculáveis do vil metal que tudo governa e partir decididamente para a terra do despojamento material. Invade-me um sorriso iluminado quando imagino o dia em que a humanidade se vai livrar dos jogos de tiranos, de leis e religiões castradoras. É bom ser utópico e de certa forma egoísta como quando brindo a mim e aos que são como eu.

Ai o silêncio, a nefasta incapacidade de viver sem um pouco daquele calor humano simples, nada de intrigas, mentiras ou alguma profusão acelerada de movimentos descoordenados que levem a algum mal-entendido, a guerras de palavras sujas.

- E quem é o teu melhor amigo?
- Amigos não se qualificam, nem são melhores ou piores, apenas existem no coração, nos actos, na vontade

Eu só queria lembrar qualquer história de famílias desavindas, da necessidade de partir para conjugar o cérebro com alma residente do corpo fraco e inconsistente. Tantas são as condições propícias para o ódio, para a decrepitude dos actos infames que me pergunto qual será a forma, o curso universitário porventura, para que nas famílias quase sempre desavindas se pudesse instaurar o amor e o respeito, tão banal de falar de tão vulgar não praticar.

Imagino apenas aquele bife ao almoço, no Lourenço que já nem existe, num dia de febre alta e o regresso a casa. O bife e as batatas fritas, com as memórias de um Marques, de um Moçambique que ainda precisa de ser contado.

III
Aquele grupo de amigos desfez-se com naturalidade na básica necessidade de continuar numa vida estereotipada, das contas para pagar, da família, dos amigos já assegurados. Nada faria prever que dessa pouco produtiva sessão de afectividade viesse a nascer a mais profunda das amizades, que nem necessita de visualizações, toques ou retoques para se saber que vale mesmo a pena.

- Então amigo, como vai?
- Se eu sou amigo estou bem! Porque estou com um amigo! Como poderia estar senão bem?

Houve alguma hesitação? A crueldade não advém da necessidade, assim como a bondade não se pratica porque algum governo ou mente iluminada assim o decretou.

Relembrando então os amigos de parte menos certa, embora pontos brilhantes na ocasião de demonstrarem os afectos, chego à concreta situação de apenas conviver com aquelas pessoas de princípios inflexíveis, baseados na honra e na dignidade e que isso nunca os impeça de fazerem o teatro necessário para viverem pelo menos em paz

- Hoje não vamos falar de trabalho
- Está bem, está bem mas passa aí a vassoura!!!

e a negligência dos afectos, aquelas pequenas partículas, átomos, o que lhes quiserem chamar, há-de ser sempre uma nódoa bem negra, capaz de provocar a solidão, até a própria morte, apressada pelo desgosto da ausência, do vazio concreto, de nada existir para nos confortar o espírito.

Não quero que vejam o mundo pela minha visão, pela influência perniciosa de estilos e condições de contemplação, do vazio e da adoração. Apenas procuro o conteúdo que me tem escapado pelos dedos. Façam o favor de desencantar os sorrisos necessários à felicidade, a vossa e a de quem vos rodeia

- Olá minha querida!!!
- Quanta saudade de te beijar
- Anda cá meu amor doce!

para que um dia, quando as rugas dominarem, poderem fazer parte da lição em vez do museu do passado, aquele em que se omitem os erros de percurso, as saudades sem sentido definido.


Amizades Profundas 2
Manuel Marques
Enviado por Manuel Marques em 13/03/2007
Reeditado em 08/06/2021
Código do texto: T411530
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