MIGRAÇÕES

o dia começa!
meu pai está aqui
a vida e a morte andam juntas
feito ferida e casca.
repulsa e o nojo são os cavalos da loucura
cavalgando a poesia na pressa do existir.
me acostumei ao suor e ao fel
como as anêmonas e os peixes à sua solidão abissal
vejo o meu sangue no espelho quebrado
os meus ancestrais gritam em cada glóbulo
em cada hemácia recém nascida um pouco da tortura
dos corvos na carne abjeta.
sei que não sou de lugar algum
a raiz e nem a flor
nem mesmo a abelha que faz veneno e mel
sabe a razão do seu breve existir
ou mesmo conta os dias em cada pôr do sol
ou a sanha do tubarão entorpecido
é tormento praquele que será a comida.
jamais voltarei a olhar aqueles olhos de adeus
porque cada um sabe a urgência dos seus passos.
caminhos de ditadura eterna são o interior da serpente
ossos vísceras e vértebras
regem a peçonha na malemolência da língua.
meu pai está aqui
segura a minha mão e
me conduz pela sala
pelos quartos
sobre os livros empoeirados e mofos
pelas engrenagens do velho relógio
pelos quadros antigos
pelo quintal e jardim
entre espinhos sombra e a escuridão das palavras rotas.
todos os meus medos uivaram
desatrelando a velha canga
livramento do espinhaço sob o peso das asas molhadas.
é quase noite na inércia dos pensamentos
e meu pai segue ao meu lado
é preciso catalogar as misérias
cortar do corpo os brotos e figos podres.
olhos de peixe e calosidades
e indagar pelos cachorros perdidos e sem nome
dar-lhes nome e água para beber.
quem sabe isso os faça voltar a um estado de felicidade
quando as chuvas retornarem molhando a boca da terra
gatos e cachorros bodes e cabras
homens e meninos sem nome caminharão lado a lado
em sua cegueira são como aves migratórias
que perderam a rota voando em círculos.
tudo passa por mim como miragem
ilusórias são as horas os dias os meses os anos
a resposta é dissolvida e desaparece na memória
eu não me importaria tanto com a dor
não fossem esses pássaros famintos voando ao redor
com seus olhos de rubi e seus bicos de jade.
meu pai me perguntou: qual o seu nome? jamais pude responder
mesmo raspando a minha pele com uma faca
nunca descobri o meu nome
isso dói demais por me sentir como animal selvagem
acuado
farejando no ar a umidade de uma chuva vindoura
anunciada em nuvens escuras
aquela presença não decodificada
se avoluma em maré sanguínea e engole a lua e o sol
e todas as notas daquela canção.
é silêncio agora e o céu escuro é denso útero
de precárias tiranias
meu pai solta a minha mão
e eu experimento violenta e ofensiva tristeza
de estar só
tive mil vidas
terei mil vidas
e a substância adocicada que escorre dos meus poros
é o avesso de cada lágrima que eu não chorei.



imagem: Odd Nedrum