AMOR AO VENTO

O vento vinha sempre, em ritual fadado, àquela praia de mar sem medo. Ali era livre, arrebatava paixões às ondas inquietas, que morriam na areia em ânsias e rendas... ondas sem medo de eternamente buscar o seu amor, mesmo sabendo que ele nunca seria delas ou de ninguém...

Ela vinha sempre ao cair da tarde, quando o vento se erguia maior e as ondas lhe ensinavam a persistência ritmada das marés acesas. Ficava até as estrelas se acenderem, em apoteose silenciosa, ou até uma lâmina de vento a trespassar a frio. Ficaria sempre, porque sabia que o amor viria no vento, o mesmo vento que encantava as ondas em cobiça ávida, numa condenação perpétua de não ser de ninguém... talvez, pensava ela para justificar essa certeza, talvez fosse missão redentora do vento trazer-lhe o Amor...

Nessa tarde a areia limpava as lágrimas da maré cheia e roubava do sol oblíquo poalhas de ouro quente. Ela chegou e desafiou o vento, que lhe roubava o ligeiro perfume da pele e lhe acariciava, insolente, os cabelos soltos. E as ondas, em esforço vão, morriam na praia, tão longe de alcançarem o amor do vento...

Ela nunca soube de onde veio aquela carta de amor. Encandeou-a o sol, feriu-a o vento, um instante absorveu-a... e de súbito, aquela carta,
à deriva na areia, desafiando-lhe o alcance. Olhou em volta e tomou-a sua, sem saber que era um pedaço de Amor.

O vento pareceu parar de repente, para ler também. Ela sentou-se e releu mil vezes, e de cada vez que a lia a sentia mais e mais sua, para si. Eram só palavras, escritas a azul, mas ela conseguia ver nelas todas as cores do universo. Palavras vivas, que a tocavam, lhe ciciavm melodias, a envolviam de calor, a tomavam em coreografias estonteantes...

Ao outro dia voltou e o vento voltou, e outra carta voltou a cair-lhe, rendida, aos pés.
Outras tardes vieram, e com elas pedaços de Amor em papel trazidos...

...até que o vento o trouxe a ele. Chegou em passo brusco, ira nos olhos, ricto cruel a fechar-lhe os lábios. Arrancou-lhe a carta dessa tarde das mãos, que ela ainda nem sequer tivera tempo de sentir sua. Chamou-lhe usurpadora, violadora de correspondência, profanadora de sentimentos alheios. O olhar dele caíu como um punhal na curva dos seios dela, onde um atilho de seda vermelha apertava as cartas anteriormente guardadas. Foi o culminar da fúria dele. Num gesto brusco extirpou-lhe o acarinhado rolo de folhas presas e acusou-a implacavelmente. Ao primeiro impacto ela vacilou, coloriu-se de embaraço, tremeu de ressentimento, temeu a ofensa. Depois cresceu nela um ímpeto de guerra, uma defesa exacerbada, uma hostilidade acesa. Quem pensava ele que era para a ofender assim?!... Quem lhe dava o direito de lhe roubar o que era dela por destino?... Quem o autorizava a achar-se dono de algo que o vento lhe trouxera?... E se assim lho trouxera era porque era do vento, não dele, não dele. Se ao vento as tinha dado, ao vento pertenciam, que por sua vez tinha o direito de as oferecer a quem lhe estivesse de feição!...
Ele ouvia-a atónito, apanhado duma surpresa maior que a dela. O sol tardio parecia servir-lhe de guarda-costas, entricheirado a oeste, e recortava-lhe a imagem delicada e ao mesmo tempo poderosa, num halo de ouro sublimado.

Só o vento sabe o que se passou depois. Dizem que foi um golpe preciso da sua força dinâmica que os empurrou um para o outro e lhe colou os corpos, num roçar de sensações reveladas. O beijo nasceu de dentro, cobrindo a terra de pudor e o céu de rubor.

O vento não é de ninguém... do amor só sabe o perfume e o sentido... As ondas souberam-no nesse instante e desistiram finalmente dele, rendendo-se à paixão do sol, que as penetrou para uma noite sem vento.