Dois caipiras em Oxford

Por ter sido professor de inglês no ensino fundamental em Penedo e Traipu, alguns familiares pensavam que eu sabia inglês suficiente para acompanhar o sogro que viajaria a Oxford, na Inglaterra, onde iria submeter-se a uma cirurgia de alto risco. A opção em fazer essa cirurgia tão longe assim, deveu-se a seu médico que já havia morado lá durante dois anos, por ocasião de sua especialização. Conhecendo o hospital e a sua equipe, naquela cidade do primeiro mundo, onde educação e saúde são de altíssima qualidade, facilmente convenceu a família de que ali era o lugar ideal para aquela cirurgia, aneurisma abdominal, cujo risco seria menor, pelo avanço da medicina naquele país. Apresentou um breve orçamento, fazendo a comparação com o que seria se fosse em São Paulo, apontando as vantagens de Oxford, pelo conhecimento que já tinha do Radicliffe Hospital, onde fez a sua especialização. A família, considerando a disponibilidade financeira do momento, em razão da recente indenização que o pai havia recebido da CHESF, por ocasião da construção da barragem de Itaparica, que inundou toda a cidade, aceitou a sugestão do médico e resolveu mandar para a Europa aquele grande sertanejo da nossa Petrolândia. Para isto convocou o genro para acompanhá-lo, juntamente com o médico.

Uma semana de preparativos para a viagem, em Recife, onde o paciente já se encontrava hospitalizado, sob o acompanhamento do médico, o mesmo que viajaria conosco. O filho caçula, o mais empenhado naquela empreitada, era o que me acompanhava para as providências de passaporte e aquisição de dólares, fazendo ainda a conversão em libras, que utilizaríamos lá, ajustando ao orçamento apresentado pelo médico. Uma luta que valeria a pena, e para isto toda a família estava confiante em ver o seu ente querido voltar são e salvo.

Numa noite de grande esperança, em pleno mês de janeiro de 1990, embarcamos no aeroporto internacional dos Guararapes, numa aeronave da Air France, com conexão em Paris, aeroporto Charles de Gaulle, de onde seguimos para Londres, descendo no aeroporto de Heatrhow. Ali tomamos um ônibus para Oxford, onde sentimos aquele primeiro frio de 5 graus, algo muito impactante para quem é do nordeste brasileiro, principalmente do nosso sertão.

Ali comprovei a tão comentada pontualidade britânica, a cada exame que o sogro fazia, como preparativos para a cirurgia. Até mesmo a revisão pós-operatória, marcada para dez dias depois de ter deixado o hospital, foi algo extraordinário na nossa visão de brasileiro. Estava prevista para as 14.30h. Eis que, precisamente às 14.25h o médico Professor Sir Peter Morris, responsável pela cirurgia, já estava examinando o paciente. Com o seu bom humor, dirigia-lhe algumas palavras, mesmo sabendo que ele não entendia sequer um Yes ou No. Durante todo o período de internamento eu o acompanhei, carinhosamente, sentindo-me não um genro, mas como se fosse o seu filho. Além do médico que nos acompanhou, era eu a única pessoa com quem ele contava para falar no nosso português. Costumava dizer que ali vivia como um peixe fora d’água, e que o médico era o nosso “Paizão”, pois dele dependíamos para tudo. Era o nosso intérprete, psicólogo, motorista e, sobretudo, um amigão em quem podíamos confiar. Tinha já um profundo conhecimento do seu paciente, desde o diagnóstico do problema ainda em Recife até o hospital em Oxford, onde fez parte da equipe médica, na condição de primeiro assistente do Professor Sir Peter Morris. Logo pela manhã, ao cumprimentar o paciente, perguntava-lhe como havia passado a noite, ao que ele respondia: “estou bom e muito contente, pois ao acordar vejo um anjo de olhos azuis a sorrir para mim”. Isto porque as enfermeiras eram umas loiras muito bonitas e de olhos azuis.

Ao submeter-se ao teste ergométrico, para avaliação cardíaca, o médico inglês perguntou-lhe se sabia andar de bicicleta. Após a tradução do médico brasileiro, ele além de dizer sim ainda acrescentou: “Doutor, eu ando 6 léguas sem parar”. O médico britânico ficou admirado pela disposição do paciente em tanto pedalar, chegando a dizer que foi o melhor teste realizado naquele hospital, pois de tanto andar quase quebra a bicicleta.

Como não pernoitávamos no hospital, a noite era o maior período de nossas ausências, quando ele sentia total dificuldade de comunicação com as enfermeiras. Por isso, preparei uma lista com as possíveis necessidades mais imediatas, em português na primeira coluna e na segunda a correspondente em inglês. Orientei-o a indicar a palavra com o dedo e assim as enfermeiras prontamente o atendiam. Pelo tempo que assim procedeu, até daria para aprender algumas palavras, mas a sua baixa cultura não despertou nenhum interesse para tal. Como já disse, não aprendeu nem um Yes ou No. Entretanto, pela sua ansiedade de deixar o hospital, fiquei surpreso quando um dia ele me disse: “parece que eu vou sair amanhã”. Perguntei-lhe então como ele ficou sabendo, ao que respondeu: “eu ouvi o doutor dizendo aquela palavra”. - Que palavra? Perguntei-lhe. Ele respondeu com a pronúncia correta de “tomorrow”. Isto prova que facilmente aprendemos aquilo que é do nosso interesse. A sua ansiedade falou mais alto.

O nosso retorno, 21 dias após termos deixado o Brasil, se deu pelo mesmo trajeto: Oxford/Londres/Paris/Recife, chegando numa bela manhã, o que nos permitiu ver a encantadora ilha de Fernando de Noronha. No aeroporto dos Guararapes, maior número de familiares nos aguardava. Uma calorosa manifestação de apreço ao patriarca da família, que retornava alegremente ao convívio com aquela gente sertaneja. Mesmo em circunstâncias não favoráveis, foi o primeiro a empreender uma viagem daquele porte. Por isso, sempre que alguém o visitava, fazia um longo relato, com uma boa dose de humor, acrescentando que além de ter voltado completamente curado, viu muita gente diferente, que falava e ele não entendia nada, mas que “as risadas eram iguais”. Diante de tudo que viu, ele fazia questão de frisar que nada no mundo faria trocar pelo seu sertão.

O médico do Recife, com quem demos uma voltinha lá em Oxford no dia da saída, apontava alguns pontos importantes da cidade, dizendo recordar-se dos tempos em que ali viveu com os filhos, naquele ambiente altamente civilizado. Perguntava-nos se gostaríamos de morar ali. Seu Eloi prontamente respondia: “Para mim o melhor lugar do mundo é Petrolândia, nada me faz trocar pelo meu sertão”.

Via-se, com isto, o seu grande amor ao torrão natal, à sua gente e à sua maneira simples de viver. Um homem, cuja retidão de caráter e honradez, o seu solo e a sua família eram os seus maiores valores. Felizmente, estas são características predominantes do sertanejo, que ainda não se contaminou com as malícias das cidades grandes, onde impera o descalabro da corrupção, com maior prevalência no segmento político. E o pior é que toda administração pública depende da política. Somos governados por políticos. Vamos educar o brasileiro para que possamos amar este país, tanto quanto o seu Eloi amou o seu sertão, a sua Petrolândia.

Irineu Gomes
Enviado por Irineu Gomes em 08/08/2008
Reeditado em 30/12/2008
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