Aventuras de uma adolescente na década de 50

Dona Maria Maral: a Dindinha

Creio que foi em 1951, um ano depois da morte de minha mãe. Eu e minha irmã Leonete fomos viver em Belém, na casa de nossa irmã mais velha Maria, casada com seu Levindo, mestre de obras e carnavalesco que saia todos os anos para desfilar em uma escola de samba chamada “Não posso me amofiná”, nos três dias de carnaval. Leonete concluiu o curso cientifico, o 2º grau de hoje e retornou para Irituia onde mais tarde casou-se com Pedro Borges, um pequeno latifundiário na época. Eu permaneci em Belém com minha irmã Maria. Nessa época estudei no ginásio Pará-Amazonas e modéstia à parte, apesar de muito pobre e ir de tamancos para as aulas, era uma das primeiras, senão a primeira da classe, tanto que quando fiz o exame de admissão para o então curso ginasial tirei média 9.8 e ganhei uma bolsa de estudos do próprio colégio para estudar de graça. Em 1953 minha irmã ficou viúva com dois filhos para criar e com a única herança, um terreno que ainda teria de ser dividido com os filhos do primeiro casamento do seu Levindo. Sem muitas alternativas para sobreviver, minha irmã aceitou trabalhar como costureira na casa de uma senhora chamada Maria Amaral.

Eu fui a tiracolo. Depois de algum tempo, com a venda do terreno e divisão do dinheiro, minha irmã comprou uma casinha e por outras razões que não lembro bem, foi embora da casa de D. Maria Amaral a qual por pena de mim e por querer “educar-me” pediu para que minha irmã me deixasse morar com ela. Eu devia ter uns 11/12 anos. Sai da casa de D. Maria com 19 anos, já com meu primeiro emprego como orientadora de clientes na antiga LOBRÁS - Lojas Brasileiras, anteriormente chamada de “4.400”. Dessa época tenho algumas lembranças muito interessantes e significativas, como por exemplo, a convivência com os filhos adotados pelo coração de D.Maria Maral e das arteirices que nós aprontávamos mesmo diante da vigilância cerrada que ela, a Dindinha, como nós a chamávamos, exercia sobre todos.

Dindinha cuidava das sobrinhos Raimunda Telma, a Dadá, da Telma, da Isete e eu. Da parte do marido dela, o tio João Amaral havia mais a Dejanira, o Guilherme, o Ricardo, o Edir e o Haroldo. Mais tarde, chegaram mais o Zuca, a Clodes e o Trindade, este um garoto gordo, estrábico e com o hábito muito feio de olhar as meninas tomando banho pelas frestas do banheiro. Aliás, é bom dizer que no dia em que descobri o guri me olhando, dei-lhe uma baita surra de tapas e pontapés.

Dindinha era extremamente rigorosa. Escreveu não leu, o pau comeu! Apanhávamos mesmo! Tio João era um pouco mais maleável, pagava para não brigar com ninguém, principalmente com Dindinha. Ele morava em Soure, na ilha de Marajó, onde era dono do maior armazém de secos e molhados da cidade. Dindinha ficava em Belém cuidando dos negócios do casal. Todos os finais de semana embarcava no navio Presidente Vargas e ia para Soure encontrar-se com titio. E todas as semanas, duas de nós, as meninas, íamos junto. Eu detestava ir para Soure, preferia ficar em Belém longe dos olhos tiranos de Dindinha. Mas isso não tinha jeito, quando chegava a minha vez, tinha de ir...

No navio ficávamos trancados no camarote, um horror! Em Soure não havia nada para fazer, nem à missa podíamos ir sem o seu olhar vigilante. Entretanto, fazíamos todas as tarefas domésticas, as quais ela nos ensinava pacientemente. Quando não fazíamos direito, um cabo de vassoura nas nossas pernas se encarregava de aguçar a nossa boa vontade em aprender qualquer tarefa.

Apesar de rigorosa, dona Maria Amaral era uma pessoa extremamente bondosa. Ajudava quem precisava, acolhia em casa doentes, como um português de nome José Maria e uma espanhola simpaticíssima chamada Nicolácia de Paracuelos. O primeiro tinha um câncer no estômago e a segunda uma chaga na perna esquerda, a qual era cuidadosamente lavada todos os dias por Dindinha, para fazer o curativo. Lembro-me de outras pessoas acolhidas por ela, inclusive meu pai quando adoeceu gravemente de que doença não lembro bem.

Não fosse pela ajuda de Dindinha, eu talvez não fosse o que sou. Com ela aprendi valores como solidariedade, justiça, integridade moral, amor ao trabalho e à verdade e tantos outros. Se tivesse que escrever sobre “meu tipo inesquecível”, certamente ela seria a primeira da lista.

Em casa a mesa era farta, fazíamos as seis refeições que hoje são mantra para os nutricionistas. Dindinha dizia que uma boa alimentação economizava em remédios. Quando começamos a trabalhar e a estudar a noite sempre havia um lanche reforçado quando chegávamos do colégio. O lanche da escola era sagrado, assim como uma suculenta sopa no jantar.

Era Dindinha quem escolhia nossos sapatos, a fazenda e os modelos dos nossos vestidos. Eu não gostava muito disso, mas tinha que aceitar, esperando que mais tarde pudesse fazer minhas próprias escolhas. Foi um tempo bom, embora com muitas restrições as quais às vezes, tentávamos burlar quase sempre com penosas conseqüências.