Uma amante de Machado de Assis?

Nem toda gente, porém, admirava as crônicas escritas na seção “Balas de Estalo” da Gazeta de Notícias. Havia um jornal, intitulado Corsário, que não via com bons olhos aquela coluna da concorrência e, certo dia, resolveu delatar a identidade de todos os pseudônimos que ali escreviam. Este período foi o ápice da chamada “imprensa amarela”, ou seja, jornais que procuravam conquistar seus leitores entre as camadas mais populares do povo, mediante exploração de escândalos, sobretudo ligados à intimidade das pessoas famosas. Propriedade de Apulco de Castro, o Corsário era um dos principais representante desse tipo de jornalismo e circulava todas as terças, quintas e sábados. Trazia como subtítulo as palavras “órgão de moralização social”, e, devido a violência de suas matérias, havia sido atacado, saqueado e incendiado por pessoas ligadas ao governo. No cabeçalho de toda edição, vinham estampadas algumas “datas gloriosas”, em que se liam:

“30 de outubro - Uma horda de vândalos, capitaneados por Trigo de Loureiro, arromba a golpes de machado as portas de nossa oficina. Roubaram e quebraram tudo que não era de fácil condução, lançando fogo aos destroços e pretendendo assassinar-nos.”

Não era exagero. Apulco de Castro seria de fato assassinado um ano após estes incidentes, diante da Secretaria de Polícia, por oficiais à paisana, chefiados pelo capitão Antônio Moreira César. O Corsário difamou tanta gente, que possuía mais inimigos do que leitores. Republicano feroz, foi o único jornal que teve coragem de dizer que a Condessa de Barral era amante de D. Pedro II. Também o Conde D’Eu não escapou à sua ferocidade. Certa feita, o príncipe francês viajou com a família para a Europa e alugou sua casa enquanto esteve ausente. O Corsário não perdoou tamanha sovinice:

“Sua alteza é mesmo uma fonte inesgotável de ratices econômicas (...). Por exemplo - aquele fato de sua alteza, quando foi para a Europa, alugar a sua casa de Petrópolis, com mobília, incluindo nela o tálamo conjugal e o berço em que seu filho, o futuro imperador do Brasil, dormiu tanto sono bom e em que fez tanta principesca necessidade. (...) Mais: quando o nosso imperial vovô vai comer uns feijões em casa com sua filha e seu genro, já leva pouca gente só de mau. Pois mesmo essa pouca gente tem de ir de lá tão longe, jantar a S. Cristóvão, porque sua alteza diz que a sua casa não é hotel, e não manda dar de comer aos homens. (...) Proceder sovina do príncipe-cortiço...”

Num outro artigo, em que aborda a viagem de um grupo de índios botocudos que seriam expostos em Paris, percebemos o tom violento com que certo Sr. Athanagildo Barata Ribeiro, o intermediário desta estranha negociação, é tratado. O articulista afirma que os aborígines, arrancados da floresta tropical, acabarão por morrer no rigoroso frio europeu:

“O empresário dos nossos compatriotas em Paris é um tal Athanagildo Barata Ribeiro, sujeito idiota, mas que tem juízo bastante para fazer uma patifaria destas. Nós temos de perguntar, primeiramente, quem é que garante o contrato feito pelo Sr. Barata Descascada com os índios. (...) Os botocudos que vão ser expostos em Paris são fatalmente votados à morte, e o responsável por isso é o governo. (...) Mas, levá-los para Paris, para os expor em um jardim, como se fossem figuras de cera, é uma patifaria que só podia sair do cérebro doentio de um tratante hepático como o tal do Barata Ribeiro, e ser patrocinado por um ministro liberal e larápio.”

Os próprios anúncios dos apedidos seguiam esta linha pouco educada e violenta. Os exemplos são inúmeros e apenas para ilustrar, transcreveremos um destes apedidos, onde um fazendeiro roubado por seu administrador lançava nas páginas do Corsário toda a sua raiva:

“Sr. Esmero. Burro, estúpido, besta, tratante, velhaco, mentiroso, ladrão, canalha, gatuno, traste, safado, lesma, patife, peste, esfaimado, caloteiro, ingrato, camelo, pague ao fazendeiro o que o senhor roubou quando estava como administrador, isto há mais de quatro anos.”

Também Machado de Assis não deixou de ser atingido pela fúria de o Corsário, que adorava publicar picuinhas a respeito das pessoas ilustres. Justamente quando Joaquim Maria começara a escrever as suas “Balas de Estalo”, o jornal de Apulco de Castro o acusou de manter um relacionamento amoroso fora de seu casamento. A acusação teria algum fundo de verdade ou seria mera especulação? Seja como for, a denúncia era direta e deve ter acertado em cheio o amor-próprio de um homem tão discreto e sensível quanto Machado de Assis. Dizia o articulista:

“O Machado, amante de Inês Gomes, enamorado de Ismênia dos Santos e ex-oficial de gabinete de um ex-ministro, escreve balas de estalo! Ora, o Machado de Assis! Sr. Ministro da Agricultura: V. Exa. deve demitir o Machado, porque este empregado público desmoraliza-o, desmoralizando o governo de que V. Exa. faz parte, escrevendo balas de estalo!”

Heloísa Lentz de Almeida, em seu livrinho A Vida Amorosa de Machado de Assis, cita um possível caso em que o escritor traíra Carolina, mas não entra em maiores detalhes. Certa feita, uma mulher que freqüentava a alta sociedade começou a se interessar por Joaquim Maria. Era uma morena bonita, de olhar profundo e corpo bem talhado. Segundo a autora, ela fora educada nos Estados Unidos, onde aprendera todos os segredos da arte da sedução. Machado teria capitulado aos doces encantos dessa mulher irresistível e é possível que a própria Carolina soubesse do caso. Seria essa mulher a tal Inês Gomes, citada pelo articulista do Corsário?

Lúcia Miguel Pereira também se debruçou sobre o assunto, sem conseguir desvendar a identidade dessa mulher misteriosa. Chamou-lhe simplesmente de “a desconhecida”, afirmando que o caso entre os dois deve ter acontecido por volta da publicação das Memórias Póstumas de Brás Cubas ou pouco depois. Lúcia ouviu o episódio de dona Fanny Martins Ribeiro de Araújo, que conhecia o casal e era muito amiga de Carolina.

Algum tempo antes do cronista do Corsário acusar Machado de Assis de ser amante de Inês Gomes, outra revista ligava o nome dos dois, sugerindo que havia grande intimidade entre eles. A 4 de novembro de 1882, sob o pretexto de registrar o aparecimento dos Papéis Avulsos, que acabara de ser editado, o cronista Júlio Dast publicou na Revista Ilustrada de Ângelo Agostini uma nota que deve ter feito Joaquim Maria gelar da cabeça aos pés. Dizia o articulista:

“Sem fazer a crítica dos novos contos de Machado de Assis, eu prevenirei todavia a leitora que há em muitos deles uma história divertida e bem contada, há um ensinamento; o autor é um filósofo. Um filósofo que faz trocadilhos. Querem um? A senhora Inês, uma atriz do nosso teatro, que fala, como se diz, pelos cabelos, saiu uma manhã do banho escorrendo ainda água, quando encontra o poeta. - Oh, Inês... gotável! brada-lhe o poeta.”

O trocadilho é infame demais para ser atribuído a Joaquim Maria, que nem gostava desse tipo de jogo de palavras. Se lhe dermos crédito, porém, teremos de admitir que Machado era íntimo de Inês Gomes, a ponto de surpreendê-la saindo do banho. Mas quem seria essa mulher, pela qual o escritor chegara a arriscar a estabilidade de seu casamento?

Nascida em Portugal, Inês Gomes era uma atriz que atuava no Rio de Janeiro, mas nunca chegou a conseguir maior projeção na carreira. Alta, ainda muito moça na época em que teria conhecido Machado, dizem que suas mãos eram tão grandes que cabiam dez dedos em cada uma delas e seus pés enormes mais pareciam dois pedestais. Consta que Inês possuía um lindo par de braços e é possível que tenham sido eles os responsáveis por enfeitiçar o escritor, que nutria um verdadeiro fascínio por braços. Visconti Coaraci, que a descreveu em seu livro Galeria Teatral, afirma que ela era uma “verdadeira obra do Porto: rija e forte”, mas um tanto mal acabada. Se foi ou não amante de Machado de Assis, parece que o caso não durou muito tempo e tampouco conseguiu abalar a solidez de seu casamento.

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