O FILHO(A) QUE NÃO SEI SE TENHO

A característica mais comum das autoridades atuais é não só pôr-se como donos da verdade (inclusive a verdade particular dos outros – que diz respeito a suas vidas privadas), mas confirmarem esta tendência determinando que a verdade é a informação que eles impõem que seja, a que determinam que é. Nisto nada são diferentes dos inquisidores da Idade Média, tampouco o são dos carrascos do regime militar. É assim entre os policiais, que investigam apenas o pressuposto mais óbvio e forçam os fatos para confirmar sua intuição; é assim entre os advogados de acusação, que se põem como videntes quanto o caráter das pessoas, forçando também sem constrangimento os fatos; é assim entre os psicoterapeutas, que estão forçando a formação de uma sociedade sempre mais irresponsável, insolente, sem afeição natural, sem, sequer, remorso, sem moral e friamente violenta; é assim entre os médicos públicos, que não só não ouvem seus pacientes, mas também em nada se importam com as pessoas; e assim vai.

Por causa de um médico desses é que perdi a última chance de, já aos quarenta e um anos, ter um filho (a Fernanda Rafaela, a quem eu já homenageara com um poema no Recanto das Letras), pois ele não deu ouvidos a informação da minha esposa de que os três filhos que teve anteriormente nasceram de cesariana. E assim, como uma máquina programada para procedimento padrão, o obstetra do hospital municipal mandou que a gestante de quarenta e um anos retornasse uma semana depois com as dores para proceder ao parto normal. E, quando ela retornou três dias depois o feto já pode ser removido por sucção.

Anos atrás, porém, por volta de 1989, quando eu tinha em torno de vinte e três anos e não andava nos caminhos de Deus, tive um relacionamento com uma mulher de trinta e nove anos que, apesar de solteira como eu, não pretendia namorar e tampouco casar-se com alguém tão jovem. Entretanto, dizia que gostava do relacionamento discreto que mantínhamos, pois sentia-se respeitada por mim, acrescentando que se ficasse grávida eu não precisaria me preocupar porque ela jamais me incomodaria com cobranças, sendo que criaria a criança por suas próprias espanças, pois era auto-suficiente.

Entretanto, como é de conhecimento de meus familiares, amigos e colegas, sempre desejei ter filhos. Inclusive, já na adolescência dizia que desejava ter o primeiro aos dezoito anos, pois pensava que nessa idade já estaria casado, pois casar-me e ter família é o que sempre sonhei. E, no quartel, muitas vezes censurei colegas que relatavam o desespero de ter a namorada grávida. Muitos faziam planos sórdidos para livrar-se do compromisso de criar um filho, mas para mim isto não parecia uma carga, mas um privilégio. Inclusive flagrei certo dia um colega gabando-se de como socava o corpo da namorada na tentativa de levá-la a abortar. Jamais compreendi, seja o medo que tinham ou crueldade que demonstravam, a não ser se considerasse suas preocupações egoístas. Jamais também admiti a indiferença que os fazia tão cruéis, sem nada de amor por suas namoradas e, tampouco, por seus filhos.

Por isso, quando a mulher caxiense me disse que não me importunaria caso engravidasse de um filho meu, reiterei repetidas vezes que jamais abriria mão do privilégio de ser pai e poder participar da vida de meu filho, sendo que requereria meu direito se fosse necessário. Ela não discutiu o assunto, apenas disse que não usaria anticoncepcional, pois essa seria a última oportunidade que se daria de ser mãe, haja vista sua idade. Quanto a mim, jamais tomei qualquer precaução, pois me alegraria muito ter um filho e ela me parecia que seria uma mãe excelente, embora que anos mais tarde eu iria perceber que teria posto meu próprio filho na situação de ter pais separados, o que, eu, meu irmão e irmã fomos constrangidos a suportar e não gostamos nada.

E, de fato, ela ficou grávida, o que confirmou com os exames pouco tempo depois. Então vivi a feliz expectativa de aguardar pelo nascimento de meu primeiro filho. E nos víamos todos os dias, mas eu jamais frequentei sua casa, pois ela mantinha segredo de sua mãe, com quem morava.

Um dia, porém, não apareceu e sequer ligou. Dois dias mais se passaram e eu, absorto no trabalho, não percebi. No terceiro dia liguei para saber o que se passava, se não estaria doente ou com problemas. Ela disse que estava tudo bem, mas desculpou-se por não ter mais ligado e nem aparecido, dizendo que estava a pé, pois o ônibus da Viação Santa Tereza tinha “passado sobre o carro dela”. Esclareceu, porém, que estava tudo bem e que o carro já fora encaminhado para o conserto.

Sendo que ela estava bem, como ela mesma disse e eu mesmo constatei por sua voz, não me preocupei, mas despertei no dia seguinte pensando no bebê, pelo que liguei para perguntar como ele estava. Ela respondeu que o havia perdido. Então questionei como ela não tinha se ferido, se o ônibus passara sobre o carro fazendo-a perder o bebê. Então ela esclareceu que não estava no carro no instante do acidente, que ele estava estacionado em frente a sua casa na Rua Bento Gonçalves e ela estava dentro de casa. Todavia, ao ouvir o estrondo da batida e correr para frente a fim de ver o que se passara, vendo o carro destruído, ela desmaiou e assim perdeu o bebê.

Para mim esta pareceu uma explicação mais que lógica, perfeitamente justificável, sendo que, por ser homem e por ter tão pouca idade, eu não tinha qualquer parâmetro nem mesmo motivo para duvidar. Sendo assim, ela desculpou-se outra vez por não mais ter aparecido e acrescentou que até o final daquela semana encontraria um tempo para nos encontrarmos novamente. Entretanto, mais alguns dias se passaram e outra vez liguei para saber como iam as coisas. E outra vez ela desculpou-se, desta vez por não ter encontrado tempo para nos encontrarmos, notificando que a partir de então seria ainda mais difícil nos encontrarmos, pois seu cunhado, músico da uma famosa banda da região, e sua irmã, tinham morrido num acidente na BR 116 de retorno da cidade de Vacaria, onde ele participara de um show com a banda no final de semana anterior, notícia esta que muito consternara a cidade de Caxias do Sul.

Ela era a única pessoa habilitada para criar os quatro filhos que o casal deixou, sendo o mais velho de quatorze anos e o menor de quatro. Sendo assim, ela se defrontava com alguns dias muito tumultuados, onde passaria por todos os trâmites até alugar o fino apartamento do casal no centro da cidade, com que custearia a criação dos sobrinhos, pois, para cuidá-los, muito pouco poderia agora se dedicar a venda de cosméticos, do que antes ela sobrevivia. Além do mais, por um bom tempo estaria envolvida com a burocracia referente a legalização da guarda das crianças. Por isso dei-lhe um bom tempo e liguei muitos dias depois só para ver como estava e como iam todas as coisas, oferecendo mais uma vez ajuda que, como das outras vezes, foi dispensada. Dessa vez ela marcou de me visitar em meu apartamento, sendo que na casa da mãe ela não queria que eu fosse. Entretanto, liguei muito tempo depois da hora que ele marcou e outra vez ela se desculpou, garantindo que logo iria, mas o dia todo passou e ela não apareceu. Algumas outras vezes liguei para falar com ela, mas nunca mais a encontrei. Então tudo caiu no esquecimento e por alguns anos nem mais me lembrei dela, até a manhã subseqüente a noite em que, em 1996, sonhei que tinha uma filha de uns dez anos com cabelos loiros de longos cachos. Ao despertar, ainda na cama, fiquei intrigado e a me indagar como poderia ter uma filha com cara de italiana. Logo, porém, lembrei da mulher caxiense e de todo episódio que vivemos. Aliás, a filha do sonho tinha oi rosto parecido com o dela. Entretanto, não seria sua filha, pois ela perdera o bebê e, portanto, não tinha como esse sonho ser um prenúncio da realidade.

Contei o sonho para a minha esposa no mesmo dia, descrevendo-lhe também todos os acontecimentos anteriores. Pela primeira vez revelei essa história a alguém e ela pôs em dúvida minha certeza de que a mulher caxiense perdera o bebê. Disse que a gestante perder o feto por susto é algo relativo e um pouco difícil, acrescentando que algumas mulheres não perdem nem que o mundo caia.

Por esse tempo um caminhão tinha batido forte na traseira do nosso carro. Sendo que o veículo causador tinha seguro contra terceiros, não tivemos nenhum custo para refazer praticamente a metade do automóvel. Entretanto, só para a seguradora aprovar um dos três orçamentos e autorizar o concerto levou um mês e outro mês se passou até que a oficina entregou o carro consertado. Isto que o caminhão não “passou por cima”. Imaginei então como teria sido se tivesse “passado”, como disse a mulher caxiense sete anos antes que se deu com seu carro.

Portanto, se ela teve o carro consertado uma semana depois, o estrago não devia ter sido grande, pois em outra oportunidade só para consertar o paralama de outro veículo a oficina demorou uma semana para entregá-lo. Sendo assim, o estrago no carro dela deve ter sido menos que o do paralama daquele veículo. Portanto, o potencial do susto que ela levou tornou-se muito pequeno para matar o feto, fazendo-se quase improvável. Minha esposa, inclusive, observou que ela devia ter me passado a conversa para poder criar o filho sozinha, sendo que manifestara mesmo esse desejo. E eu me senti enganado, pois sempre aceitara de bom grado todas as suas explicações e jamais me ocorrera tal possibilidade.

Fiquei empolgado por pensar na possibilidade de ter um filho, que então já estaria com sete anos. Triste, porém, por não ter tido a oportunidade de participar de sua criação até então. Não querendo, porém, me iludir a toa e, tampouco, dar um passo precipitado, relatei o caso para algumas amigas só para ver se confirmavam o parecer da esposa. Todas concordaram que a gestante perder o feto por susto é relativo, mas esclareceram que algumas podem perder por um simples buuu! Em geral também concordaram que se as coisas se desenrolaram de tal maneira dificilmente o susto seria suficientemente grande para provocar um aborto na maioria das mulheres.

Restava então saber a real intensidade do susto que a mulher caxiense levou e se esse susto poderia mesmo tê-la feito perder o bebê. Entretanto, não me animei em investigar, pois nem mesmo sabia seu nome de família, além que tinha conhecimento de que um edifício ocupara o terreno onde estava a casa dela. Além do mais, por esse tempo também fui acometido da forte depressão decorrente da separação de minha esposa, o que desviou a minha atenção por muito tempo. Entretanto, passando-se mais dez anos, quando eu estava às vésperas de completar quarenta, refleti que eu não tinha nada, nem mesmo um filho, os quais eu vira tantos homens fazendo tudo para evitar. Eu, porém, realizara tantos sonhos, alguns impossíveis para a maioria dos humanos, plantara também árvores e publicara já dois livros, mas algo tão simples como ter filhos, que mesmo analfabetos realizam, eu não conseguira realizar. Tudo isso me fez relembrar a história que vivi com a mulher de Caxias em 1989 e me veio nítida na mente uma estratégia para descobrir seu paradeiro.

No início de 2006 viajei pela Região de cima da serra visitando livrarias a fim de fazer acertos e reposições de meus livros consignados. No ponto de taxi da esquina da Rua Visconde de Pelotas em Caxias do Sul consultei os taxistas sobre o evento marcante da morte do músico da famosa banda caxiense. Um senhor lembrou o caso e até me disse onde era o escritório da banda na Rua Bento Gonçalves. Nesse escritório tive o privilégio de falar com o proprietário da banda, o qual me indicou o irmão do músico falecido numa barbearia na subida da Rua Dr. Montauri, logo depois da esquina. Sem perda de tempo e muito feliz por ter encontrado o fio da meada, dirigi-me a barbearia a falar com o barbeiro que, ao ouvir minha indagação, apenas respondeu que não queria saber “daquela gente”.

Naquele mesmo dia relatei o caso para minha ex-colega e amiga Adriane, que trabalha em uma agência de propaganda em Caxias do Sul. Ela me disse que ia falar com algumas pessoas e ver o que poderia fazer. Todavia, ela é muito ocupada e até hoje não me deu qualquer parecer.

Não desejo causar constrangimento para a mulher de Caxias, por quem sempre tive grande consideração, e até acho que nem devia ter escrito e, tampouco, publicado este texto. Por isto, depois do comentário abaixo achei mais coerente tirar seu nome, bem como os outros. Questiono-me, inclusive, se, sendo o caso de eu ter algum filho que desconheço, ele não teria aparecido nas oportunidades em que fui notícia na TV, rádio e jornais por causa de meu trabalho e livros, como foi o caso em 1999 e em 2003. Entretanto, essa dúvida se dissipa ao lembrar que no caso da mulher de Caxias ela mesma disse que não me incomodaria por causa de um filho. Sendo assim, mesmo sabendo meu paradeiro ela não teria me procurado. Prossegue então dúvida quanto a se ela realmente me passou a conversa e, portanto, eu tenho um filho que não sei.

Resta a esperança de que algum leitor conheça a resposta. Pode ser até que, se existir, esse filho se identifique e me procure. Por isto redigi este texto e o publiquei. Se isso acontecer, terei realizado um grande sonho. Sei, porém, que essa possibilidade é muito remota.

Wilson do Amaral