Dr. José Nunes da Ponte (retrato em construção)

A lembrança depois da morte

José Nunes da Ponte foi o primeiro açoriano a chegar a Presidente do Congresso da República, foi ainda governador civil do Porto e presidente da Câmara do Porto e ministro da República, deveria estar para a Ribeira Grande como Teófilo de Braga está para Ponta Delgada ou Manuel de Arriaga para a Horta, no entanto, tirando a promessa de dar à rua do Vale o seu nome, promessa há oitenta e seis anos esquecida, pouco ou nada se tem feito para honrar a promessa. Ou dignificar a sua memória. A não ser o descerramento, trinta e três anos depois da sua morte, de uma placa na casa errada. Ou a emissão de um selo com a sua efígie em Outubro de 2010.

Tratar-se-á da proverbial ingratidão da terra natal? De pequena inveja? De mesquinhez? Quem é que ele julga que é? Um filho de um vendeiro? Com a má fama dos vendeiros de errar nas contas em seu proveito? Neto de um barbeiro? Sobrinho de um sangrador? Se calhar.

Apesar da terra ser conhecida como mesquinha e invejosa, não quero crer que a minha terra, que é também a terra do Dr. José Nunes da Ponte, seja mais mesquinha do que qualquer outra de Portugal. Pelo que a resposta, a haver uma, não poderá ser unicamente encontrada aí, tem de ser vista à luz do contexto do final da I República e do Estado Novo?

Em 1924, no final da I República, que haveria a comemorar? Nada. Depois, já no Estado Novo, em 1957, que haveria de novo a comemorar? Aliás, a I República não se livrava da reputação, correcta, de balbúrdia. Pouco depois viria o sobressalto das presidenciais de 1958. Mais uma vez, que haveria a comemorar? Nada.

E se os republicanos moderados, que abominavam os radicais, não viam motivos para celebrar a República, os republicanos radicais, celebrando a República, também não viam razões para incluir nelas os republicanos moderados. Aliás, muitos ou poucos, não sei, dos republicanos moderados, iriam aplaudir o vinte e oito de Maio e até tornarem-se adeptos da Ditadura. Como foi o caso de Luís Nunes da Ponte, filho do Dr. José Nunes da Ponte. Pelo menos inicialmente.

Só agora, pelo Centenário da República, se pode reabilitar, suponho, as figuras gradas da I República, radicais ou moderados? Entre as quais, se inclui José Nunes da Ponte: o moderado? Talvez para uns. A explicação seria esta se não se desse o caso de o moderado Manuel de Arriaga ter sido homenageado e José Nunes da Ponte não.

Breve sinopse da vida do Dr. José Nunes da Ponte

Caso curioso, aquele que mais tarde viria a ser o Dr. José Nunes da Ponte nasceu e faleceu numa sexta-feira: nasceu numa sexta-feira de Outono, no dia vinte de Outubro do ano de 1848, e faleceu noutra sexta-feira de Outono, no dia cinco de Setembro do ano de 1924. Viu a luz do mundo na paróquia de Nossa Senhora da Conceição, na Ribeira Grande, e fechou os olhos para o mundo na paróquia de São João da Foz, no Porto.

José nasceu em casa. Como então se nascia. Mas, não se sabe exactamente em que casa nem em que rua. Talvez tenha sido numa casa da rua dos Foros ou numa das casas da rua de São Francisco. Sendo menos provável ou muito pouco provável que tenha sido na casa da rua do Vale. Assim, apesar de o darem oficialmente como tendo nascido na rua do Vale, como diz a placa de azulejos na casa número vinte e um, é correcto dizer que esta será uma das hipóteses menos prováveis. Chamando-se hoje esta última rua Vigário Matias.

Sabe-se, porém, em que igreja foi baptizado: na de Nossa Senhora da Conceição. E quando foi baptizado: vinte dias depois de ter nascido, a nove de Novembro, num dia vulgar da semana, numa quinta-feira. Sabe-se quem foi o padrinho e quem o baptizou: o padrinho foi o tio materno José Jacinto da Ponte e o padre foi o tio paterno José Jacinto Nunes.

Talvez até tenha recebido o nome de José em homenagem àqueles tios. José é o primeiro filho do segundo casamento do pai. O pai fora casado antes, mas por muito pouco tempo. Consegui registar, até ao momento, mais dez irmãos de José, com ele eram ao todo onze, mas desconheço quantos deles sobreviveram até à idade adulta. Devem ter sobrevivido sete dos onze: quatro raparigas e três rapazes.

Das raparigas, chegaram à idade adulta: Maria da Glória, Maria da Conceição, Maria Filomena e Maria da Luz. Dos rapazes: José, Damião e Manuel.

Existem descendentes directos a viver no Porto e ramos aparentados a viver na Ribeira Grande, quero dizer, que mesmo saindo da ilha para nunca mais voltar, manteve contacto com a família da Ribeira Grande e a da Ribeira Grande com a família no Porto.

Traços e rabiscos do perfil de José Nunes da Ponte

Disse dele o monárquico Luís de Magalhães, filho de José Estêvão, célebre tribuno do período da monarquia constitucional, por alturas da sua morte, em carta endereçada a Luís Nunes da Ponte que José Nunes da Ponte: ‘(...) Era austero sem secura; firme nas suas convicções, sem intolerância; dedicado à sua causa, mas sem ódios. Sonhador, sempre um adversário cavalheiresco e nobre. (...).’

Nada disso seria surpreendente, continuava Luís de Magalhães, conheciam-se de longa data e bem, já que haviam travado conhecimento ‘(...) logo no primeiro ano de Coimbra, já lá vão [iam] 45 anos.’

O tempo, em vez de os pôr de costas voltadas, como frequentemente sucede em casos semelhantes, manteve-os inabaláveis na sua amizade: ‘(...) E a nossa amizade pela vida fora, nunca nada a perturbou, nem mesmo a política, apesar de militarmos em campos opostos. (...).’

E, porventura, para o caso do historiador, descontando as palavras que a convenção social de então impunha dizer a propósito do momento, termina a carta afirmando que: ‘(...) Como amigo, e como português, choro a perda de um grande homem de bem (...).’

Traçado um breve retrato de José Nunes da Ponte, ético, moral e de carácter, resta-nos a curiosidade de saber como seria o seu aspecto físico. Dele conhecemos poucas imagens.

Talvez uma primeira imagem de José Nunes da Ponte, seja uma fotografia em que ele aparece trajado de batina ao lado da esposa. Depois, há um desenho a carvão, que fez capa da revista Os Pontos, de 20 de Junho de 1897. Uma cópia está na posse dos descendentes que vivem no Porto. José Nunes aparece com um ar determinado. Diz em título: ‘Illustre clinico e Presidente da Commissão Executiva do Partido Republicano do Porto.’ Na lapela, à esquerda do observador e à direita de José Nunes da Ponte, identifico União, mas não identifico o resto (será a menção a uma loja maçónica?), parece-me ver a palavra Negreiros. Parece-me. Não tenho a certeza.

Encontra-se levemente de perfil, virado para a esquerda do observador, tem o nariz ligeiramente adunco, e bigode, como será sempre apresentado, testa alta, um bico de cabelo, sendo este ondulado. A ter sido feita na altura em que saiu na revista, José Nunes seria um homem a caminho dos quarenta e oito anos de idade.

Além do desenho a carvão, um postal de propaganda eleitoral, com as cores verde e vermelha da bandeira e branca ao meio, mostra-o sereno, alguém em quem se pode confiar. Continua magro. Mesmo que a fotografia tivesse sido tirada em 1911, José Nunes já andaria na casa dos sessenta

Recentemente chegou-nos às mãos, uma cópia digital de uma outra caricatura a carvão de José Nunes da Ponte. Deve ser do início da implantação da República, pois a legenda refere: ‘Allons enfants de la patrie/ Le jour de la gloire est arrivé!’ (Vamos filhos da pátria! O dia da glória chegou!). Uma figura em pé, segurando a haste da bandeira bicolor republicana com a mão direita, cuja esfera armilar é a sua própria cabeça. Usa o barrete frígio republicano.

Para o ano de 1915 ou de 1916, ‘há uma bela foto do meu bisavô [testemunho do bisneto, Dr- Luís Nunes da Ponte] com a família no verão de 1915 ou 16 em casa da nora Ana Corte Real Nunes da Ponte, casada com seu filho Luís, na Casa do Souto (Marco de Canaveses) que foi de minha avó Ana, depois de meu pai e agora é minha e de meus irmãos.’ E ‘(...) um quadro a óleo e a cores da mesma época, onde sobressaem os olhos muito azuis. Esse quadro estava na Casa do Souto antes mencionada. Por partilhas o quadro ficou para minha irmã Ana.’

Existem fotografias, no espólio do Parlamento Nacional, que mostram um José Nunes da Ponte de fraque, elegante, por altura em que foi Presidente do Senado da República em 1918. Ia fazer setenta anos ou já os fizera, estava de pé, ao lado das mais altas dignidades da altura, à espera de uma carruagem que transportava o chefe do governo de então. Parece-me. É um José Nunes sereno. Digno. Ainda outra fotografia, que saiu nos jornais locais, da ilha, mas creio que é uma que parte da do postal. Ou então não acrescenta nada ao postal.

Pelas imagens, sabemos que não seria alto, contudo era magro, em particular, a pintura mostra que tinha cabelos loiros e olhos azuis.

Acerca destes aspectos físicos, temos o testemunho do Dr. Luís Nunes, bisneto, que ouvia do seu pai, neto de José Nunes, que o conheceu em vida: ‘(...) Louro de olhos azuis. Acho que não era alto. Era magro.’

Na casa dos sessenta, mais razões teremos para o ver sereno na aparência e na essência. Um ser humano muda ao longo da vida. E José Nunes poderá ter sido um estouvado na sua juventude em Coimbra, ou em Ponta Delgada, ou na sua meninice na Ribeira Grande e depois ter mudado. Como acontece a tantos de nós.

Para ilustrar este seu lado sereno, nada como ouvirmos uma história que circula na família: o episódio da bomba na casa da Foz. Deu-se, talvez, na casa do filho Luís Nunes da Ponte, a duzentos metros da casa da filha, junto à foz do Douro, ‘ (...) com vista desafogada sobre o mar e rio. Penso que foi nesta casa do filho Luís que foi colocada a bomba, penso que em 1920-21.’ Continua o Dr. Luís Nunes da Ponte: ‘(...) meu pai, Carlos, então com sete, oito anos é que nos contou a história: estavam todos à mesa (almoço ou jantar) quando explodiu a bomba e a criada aflita veio informar o "Sr. Doutor". Ele terá perguntado se havia mortos ou feridos. Informado que não, que só destruíra a porta de entrada, meu avô terá dito: vamos então acabar o almoço (ou jantar) e depois vou ver. (...) no Diário das Sessões (...) posteriores ao episódio, há intervenções de vários deputados condenando esse atentado carbonário e solidarizando-se com o Dr. Nunes da Ponte.’

Pelo que se lê da sua poesia, era um homem sensível, um migrante que saiu da sua terra com pouco mais de dezasseis anos para nunca mais regressar inteiro a ela. Apesar de, ponho as mãos no lume à vontade nisso, ter regressado em espírito as vezes que só alguém que passou pelo mesmo que ele saberá reconhecer. E para tal, os documentos escritos pouco ou nada mais adiantam. Apesar de indicarem pistas. Biografar pessoas não é o mesmo que fazer história de acontecimentos. A interpretação de comportamentos tem a ver com os nossos próprios comportamentos e dos que nos rodeiam? Um pouco. Mas não muito e com todo o cuidado para não se escorregar.

Continuo a referir o testemunho anterior. Veja-se a prova para o que afirmei: ‘No tempo do meu avô (brigadeiro) ele mandava vinho do Porto para as ilhas e de lá mandavam ananases. Creio que pelo Natal e creio que o meu bisavô o haveria de ter feito.’

Se José Nunes da Ponte não vinha do continente à ilha, os da ilha iam ao continente. Uma notícia de jornal, leva-nos a pensar que tal tivesse ocorrido. Ou seja, de que haveria, além de cartas trocadas entre, por exemplo, José Nunes e o primo João da Ponte, visitas dos da Ribeira Grande ao continente e ao Porto. Diz assim a nota:

‘Passageiros vindos no último paquete para estas ilhas (…) Manuel B. Velho de Melo Cabral, João da Ponte e família (…).’

Mário Moura
Enviado por Mário Moura em 01/02/2011
Reeditado em 27/01/2014
Código do texto: T2765335
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.